Fim, ou pelo menos é assim que me parece agora, porque na verdade o fim é só um. No entanto sempre pensei por ciclos, e neste sentido acabar agora esta série de cinco artigos sobre o Fernando Pessoa, que na verdade é a terceira série de cinco neste blogue, leva-me agora a concluir que terminei uma fase da minha vida, a partir da qual há de começar uma nova. Mas não sei como é que isso faz sentido exceto que não consigo deixar de pensar assim. Por exemplo, quando eu estava no sexto ano de escola, no último dia de aulas decidi gastar todo o dinheiro que tinha no cartão eletrónico, precisamente por ser o último dia pensei, que diferença faz? Mas depois de três breves meses de verão voltei à escola e encontrei os mesmos dois ou três cêntimos ali guardados, e encontrei uma nova necessidade de carregar o cartão, uma necessidade que eu não teria caso não tivesse gastado tudo só por gastar... Enfim, porque é que digo isto? Em parte porque tal como disse antes estou cansado de introduções para estes artigos de Fernando Pessoa, e noutra parte porque com este Livro do Desassossego a minha grande vontade é de divagar e devanear, sempre na tentativa de chegar a uma verdade qualquer, ou talvez só a uma daquelas frases que se percebe completamente, que se sente na carne mesmo muito depois de a termos lido e sublinhado e esquecido, e até mesmo muito depois de nos termos desfeito do livro no qual as lemos, e da pessoa que éramos quando lemos o livro.
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra – ou, antes, de luz e de menos luz –, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos tetos que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança – estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nele, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei, sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Não percebo nada de fenomenologia, devia perceber mas não percebo. Seja como for, arrisco-me a dizer que é sobre qualquer coisa assim que Fernando Pessoa, ou neste caso Bernardo Soares, fala aqui. Os seus textos neste livro são muitas vezes como que sobre nada, sem assunto, sem tema, sem qualquer história. O impulso dele para ter escrito isto parece ter sido apenas ter acordado cedo e olhado para a sua cidade, identificando nela uma luz que lhe parece própria, como se não só a luz mas também o significado das coisas viesse das coisas em si, e a cidade no início do seu movimento do dia a dia tivesse a sua luz própria porque o seu existir faz mais sentido do que o existir do sol. E em tudo isto o autor sente uma grande esperança mas caracteriza-a como literária, talvez no sentido de falsa ou meramente estética. A experiência à qual ele tem acesso parece ser então uma esperançosa manhã de primavera, seguramente um dia mais bonito do que em alguns outros dos seus poemas. Mas enquanto que um heterónimo apenas sente a natureza, e o outro sente-a em exagero, e o outro pensa em pensar senti-la, este Bernardo Soares sente tudo como que se cada sensação fosse um ensaio filosófico. Todas as experiências e sensações estão como que vinculadas, como se sentir tudo aquilo fosse um contrato que o autor assinou sem livre vontade, condenado a ver um mundo em movimento, criado constantemente pelos homens, enquanto que ele não tem mais a fazer exceto observar os termos do contrato, e esperar que o dia, que ainda mal começou, acabe.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim – mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há de morrer.
Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas – é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo? A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
O parágrafo anterior termina sóbrio mas a simples mudança de linha traz-nos um autor em conflito. Anteriormente ele decide esperar, mas aqui surge-lhe logo a questão de que esperar é impossível, de que ele não tem nada pelo qual esperar. Afinal esperar implica deixar passar o tempo, implica envelhecer, implica ficar mais perto da morte, mas só mesmo porque há algo importante que queremos fazer no fim dessa espera. Só que para o autor não há nada, o dia começa e ele não tem nada para fazer, o dia continua e ele não tem nada para fazer, o dia acaba e ele não tem nada para fazer no dia seguinte. O tempo passa e ele envelhece, fica mais próximo da morte, pelo menos mais do que estava quando começou a escrever, e por cada sensação que o alegra surge logo um pensamento que o entristece, porque tudo o que nasce, morre, e todos os racionalismos acerca da incapacidade de sentir não são mais do que um funeral.
E é precisamente nesse funeral que o autor observa a cidade agora debaixo de uma luz alta, talvez indicando a hora do meio-dia e portanto um outro livro inteiro foi escrito na mente do autor no intervalo entre um parágrafo e o outro. Mas seja como for, o autor é quem é, tal como a cidade é o que é, até porque uma coisa é parte inerente da outra, embora talvez o autor não se sinta fazer parte. Mas enquanto ele existir não se esquecerá da cidade, e também a cidade nunca se esquecerá dele, embora ele talvez não se tivesse apercebido disso em vida.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu, não sendo consciente, era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecer. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Este parágrafo corta pela página com um impulso proustiano. O tema é universal e recorrente em Fernando Pessoa, este fenómeno da infância, a única altura da sua vida na qual o segredo oculto das coisas não existia porque todas elas tinham o sentido que tinham inerentemente, sem quaisquer segredos ou razões de ser, simplesmente não havia um intervalo entre o objeto percecionado e a experiência subjetiva dele. Uma coisa fluía facilmente para a outra, e esse era então o melhor tempo da vida do autor, era o tempo em que experienciar a manhã trazia-lhe alegria, e é só. Agora experienciar a manhã traz-lhe alegria também, mas com ela a vem também a tristeza, sempre breve. E quando ele diz que a criança que foi emudeceu parece aludir a esta coisa da continuidade, isto de com o passar dos anos sermos exatamente a mesma pessoa exceto pelo facto de sermos totalmente diferentes, tal como disse uma vez, penso eu, George Orwell, cuja expressão, depois de a ter lido nunca mais me deixou, e cujo sentido me parece fazer todo o sentido aqui.
De qualquer das formas, agora o autor já não vê o mundo com aquela mesma inocência, agora o intervalo entre a coisa e a experiência da coisa é ele próprio, o próprio autor é uma barreira impossível entre si e o resto do mundo. Isso é daquelas ideias típicas de Pessoa que não fazem muito sentido, mas com a explicação dele parece-nos tudo mais coerente aos sentidos. A ideia de ele próprio ser a barreira que levanta para com o mundo é explicado quando ele se sente ver por detrás dos seus próprios olhos, múltiplo até quando quer ser único e simples, e a passagem do tempo surge novamente, inexorável, quando o sol se obscurece e o verde das árvores e das flores desaparece nesta constante mudança que é o tempo. Também o autor muda constantemente, ainda que talvez não queira ou não se aperceba, e ao fim de um longo devaneio que talvez durou a sua vida inteira ele apercebe-se agora a observar a cidade a partir da janela de sua casa, a relembrar a sua infância e a reconhecer-se no momento presente como um eterno estrangeiro, como quem regressou de uma longa viagem para não ser relembrado por ninguém, nem sequer por ele próprio. O autor é inevitavelmente ele com a mesma força com que não quer ser ele.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a memória das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma – a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.
Quando se é incapaz de experienciar as coisas, então ver uma coisa uma vez é tê-la visto para sempre, e ter pensado uma coisa ou ter lido sobre ela vai dar ao mesmo que experienciar na realidade. Nesse sentido, ou pelo menos em momentos como este, o autor não parece ter grandes arrependimentos, ele já viu de tudo, já soube de tudo, e até do futuro tem memórias, muito como se a partir de agora a sua vida estivesse determinada apenas a ser mais do mesmo, como se conseguisse perfeitamente antecipar o seu amanhã apenas para o aguardar com uma grande angústia, e um grande tédio, e um grande tem-de-ser...
No último parágrafo o autor surge com um pensamento forte, com esta vontade íntima de morrer... É uma coisa triste, não é uma coisa muito normal ou saudável, mas é uma coisa quase que universal. Para ele estar debruçado ao parapeito a observar a cidade como se fosse um quadro, a respirar o ar fresco de um dia qualquer, isso traz-lhe pensamentos sobre morrer no sentido de não mais existir, é uma vontade de não querer, é um desejo de morrer não com toda a violência da carne, mas sim como uma simples passagem de um estado de existência a um estado de não-existência. A sua metáfora é a de despir um traje pesado, uma daquelas imagens que agora me parecem tão óbvias mas à qual não chegava antes de a ter lido aqui, e a sua descrição para toda a vida é o “esforço voluntário de ser” que é uma daquelas expressões que eu até gostaria de roubar mesmo... Porque é mesmo isso, para ele esta coisa de existir, de acordar, de abrir a janela, de olhar para a cidade, de pensar e de escrever e de falar com as pessoas, tudo isto é um constante esforço voluntário, é preciso pensar em fazer tudo antes de o fazer, enquanto que para as pessoas normais parece que ou não lhes é um esforço de todo, ou o esforço não lhes é voluntário... Parece que não têm escolha exceto ser como são, tal como o sol é como é e a cidade é como é, construída por todas as existências voluntárias nela contidas, incluindo o autor, que apesar de ter suspirado sobre essa vontade íntima de morrer decidiu apenas escrever sobre ela para depois continuar.
E agora quanto a mim não sei, também eu não percebo muito disto, também eu não sei se sou tão normal como toda a gente, também eu faço estas coisas normais da vida com um constante esforço voluntário, ou até com uma atitude de não querer saber, de deixar que o tempo passe como passava quando eu era criança... Mas por agora deixo estar, por agora hei de me contentar por ter feito estas coisas que fiz e por ter ainda uma ou duas outras coisas para fazer. E hei de as fazer com este esforço voluntário mas sempre na expectativa de encontrar qualquer coisa que simplesmente me faça sentido e para a qual fazer um esforço não seja tão difícil assim, tal como as palavras deste escritor, para quem a beleza do mundo, se lhe ficou aquém na sensação, não lhe ficou aquém nas páginas.
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