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Mármore

Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver.

Era assim que escrevia o Bernardo numa página à parte, em pleno contraste com tantas outras páginas soltas e enamoradas de ilustrações coloridas, nas quais eram inteligíveis as suas várias tentativas de idealizar uma rapariga de cabelo castanho-claro, ou talvez vermelho, e com uns olhos grandes que pareciam evocar uma aura de mistério e de aventura, e com os braços estendidos na sua frente, terminando em mãos delicadas que se enlaçavam uma à outra, como se as suas palmas fossem uma concha do mar que guarda uma pérola imperfeita, como se cuidasse de um pássaro caído que tem pena de libertar, como se desafiasse um gesto tímido... Mas tal criação ficava sempre aquém daquilo que o Bernardo visualizava na sua mente. Na verdade não passava sequer de um protótipo mas havia algo ali, uma intenção, uma faísca com tanto potencial para deflagrar no escuro da página branca... se porventura ele fosse melhor artista. E embora a obra carecesse de forma não carecia de identidade, porque no canto da página, distante e quase que abandonada, estava uma só palavra, um único nome. Cassilda.

E agora? Como continuar? O que fazer da história? O Bernardo não sabia e quando a inspiração lhe trazia mais do que uma ideia de cada vez ele não se conseguia decidir. A página seguinte ainda estava em branco e em branco iria ficar, pelo menos durante algum tempo... Ele permaneceu debruçado sobre a mesa, embalado pela calma do seu escritório, aquele santuário de solitude que o separava do mundo exterior ao envolvê-lo numa neblina plácida que o deixava só com o silêncio de estar sozinho. No entanto, e apesar da calma interior, a sua secretária era um campo de batalha. Não parecia existir qualquer lógica por entre toda aquela miríade de papéis, alguns deles muito importantes, outros meros apontamentos e rascunhos, mas ainda assim ele sabia navegar pela desordem que criara. Sabia, por exemplo, a localização exata de cada folha de papel, quase que por instinto, e ao esticar o braço para alcançar um lápis conhecia-lhe a cor apenas pelo toque. E às vezes ele até tinha sonhos em que escrevia o que falava a Cassilda, só não sabia a quem é que ela iria falar... Mas também por outras vezes sentia-se completamente ignorante. O seu método era todo um processo lento e violento, despoletado à sorte por momentos de inspiração nos quais descobria ideias infinitas e tão impossivelmente geniais que não poderiam ser da sua autoria. Só que quando se sentava para as capturar apercebia-se de que já as tinha perdido, era como se tivesse roubado uma pedra preciosa que lhe caiu do bolso e ficou algures pelo caminho. No final desse processo as ideias que ele conseguia resgatar eram vagas, e as imagens, ténues. Talvez uma imagem valesse mais do que mil ideias, e imagens eram precisamente o que ele tentava capturar quando lhe faltavam as palavras. A verdade é que não se podia dizer que ele sabia desenhar assim tão bem mas podia-se dizer que tentava. Fazia-o principalmente como intervalo da escrita e secundariamente como uma experiência de pintar os seus pensamentos, só mesmo porque eles construíam ideias tão nítidas na sua mente. Porque quando lhe faltavam as palavras não lhe faltava a imaginação. E ao ver o seu trabalho assim, ainda tão aquém do produto final, o Bernardo começava a considerar que até o mínimo esforço era ingénuo. Mas no entanto, não desistiu. Das imagens não esperava muito, e quanto às ideias esperava apenas conseguir descrevê-las em palavras que valessem algumas imagens.

De tanto imaginar o dia futuro em que esse caos se dissiparia o Bernardo ficou de cabeça pesada. Fechou os olhos, e ao suportar a testa com a palma da mão, deixou que a luz do escritório lhe inundasse as pálpebras como se fosse o sol poente, e só assim é que se apercebeu do quão cansado estava. Então, muito subitamente, desceu-lhe sobre o ombro um toque meigo. Ele foi logo afligido com um aperto na garganta mas ela não notou, ou ignorou apenas. No seu cansaço o Bernardo fora apanhado desprevenido, e contra essa distração um gesto delicado foi um punhal. Ele apenas retribuiu a delicadeza ao cruzar o seu braço ao peito para alcançar a mão dela, repousada sobre o seu ombro dorido. De relance ele conseguiu discernir a saliência do ventre dela, assim como aquele jeito instintivo que ela tinha de descansar a sua outra mão ali, naquela meia-lua tão perfeitamente redonda, oculta por um vestido escuro, de um tom tão indiscernível que se desvanecia nas luzes do escritório. Ela não disse uma única palavra e nem fez nada exceto contemplar o projeto, todo aquele vasto delírio de papéis, uns tão fundamentais e outros nem tanto, todos repletos de aparas de lápis em espiral, escondidas por entre páginas soltas. Mas também a ela o projeto não era completamente ininteligível. Ela sempre conseguiu entender a criação dele, mesmo em constante mudança, e ao notar fragmentos rasurados ela descobria em que frases é que o Bernardo não soube bem o que dizer ou hesitou entre uma e outra palavra, e essa indecisão será para sempre um segredo entre eles. Então ela ficou parada por um momento com um brilho tranquilo nos seus olhos, a apreciar todo aquele esforço. Da sua figura emanava todo o conforto de quem sabe o que vê, o que sente, o que vai fazer a seguir e o que vai acontecer quando o fizer. Ela simplesmente sabia, e essa sapiência, qualidade tão solene e tão serena, era aquilo que ele mais apreciava. Aliás, mais do que simples apreciação, ele às vezes até se apanhava distraído por entre devaneios despertados por estranhos acessos de inveja tantálica... E como que por humildade perante tal sabedoria, o Bernardo deixou-se apenas ficar cabisbaixo. Mas ela, talvez só mesmo porque lhe apeteceu, debruçou-se, enlaçou os braços no pescoço dele, e desapertou-lhe a gravata.

Quatro meses. Foi assim que eles vieram a contar os dias, uma lua de cada vez desde o início do verão até agora que ele findava. E foi pela mesma medida que o Bernardo marcou o início oficial da sua história de uma só personagem. No entanto, ele foi logo de início confrontado com o apercebimento de que tinha muito menos imaginação do que pensava, pois descobriu que esse processo não era minimamente sequencial. As palavras não se sucediam harmoniosamente umas às outras, e as ideias, que às vezes lhe surgiam numa investida, só o levavam até certo ponto, a partir do qual o abandonavam. Ainda assim, recusando-se a retroceder, ele tornou-se incapaz de se desfazer do pouco que já tinha escrito durante esses quatro meses... E se ainda viesse a precisar dos apontamentos? E se lhe chegasse a inspiração? Ter estudado o caminho no mapa mas ser incapaz de o encontrar na rua seria pior do que desistir... Assim, o Bernardo continuou sem continuar, e viu a sua ideia crescer sem crescer, espalhada pela superfície polida da secretária. Não obstante, o segredo era que nem sempre escrevia quando se retirava para escrever. Acontecia que, vezes sem conta, ele sentava-se, olhava para todas as páginas em branco e perdia-se em divagações consigo mesmo. Perdia a noção do tempo, caía o escuro pela janela e o Bernardo passava assim mais uma noite de verão. Alternativamente, quando essas ocasiões de solidão faziam-no relembrar memórias antigas, ele acendia um cigarro. Nesses dias já não lhe era assim tão habitual fumar, a não ser justamente nessas exceções esporádicas em que fumava só para ter algo que fazer quando não fazia nada. E toda a calma desses momentos fazia-o relembrar a calma de momentos antigos, momentos que procurava repetir em detalhe. Fumava um cigarro como quem celebra sozinho uma cerimónia privada ao final da tarde, contemplando uma paisagem de sol ou de chuva, e ao guardar esse momento na sua memória de jovem artista, o Bernardo pensava no tempo perdido, que passa breve como um cigarro aceso.

E ela, quase que empoleirada sobre os ombros dele, observava. Parecia encontrar um certo valor naqueles desenhos, algo de honesto e frágil, mas tendo ficado ligeiramente saciada de ilustrações medíocres e esperançosa de reconhecer a escrita como naturalmente melhor do que a pintura, pressionou o artista e insistiu em ler qualquer coisa, qualquer excerto ou passagem, só porque sim... O olhar estoico dela foi momentaneamente convertido em alegria, e traçou um sorriso tão leve que quase escondia um pequeno tom de escárnio jovial ao ver que o Bernardo estava prestes a corar. Os dados foram lançados e o artista soube que tinha de responder, tinha de mostrar qualquer coisa real... Por um lado, não tinha segredos, mas por outro, hesitava. Ela permaneceu inexorável e com aquele mesmo ar sereno, consciente de que não tinha nada a dizer que não fosse dito melhor com um sorriso desinteressado. Não deixou chance para que ele se esquivasse, chance essa que em muitas ocasiões passadas ele teve... O Bernardo perdeu aquele debate silencioso e a sua hesitação rendeu-se face à derrota. Ele apresentou-lhe a ilustração na qual escrevia, algo que qualquer observador designaria como uma simples árvore mas que para ele era uma macieira colossal, plantada com raízes firmes e antigas que se apertavam contra o solo árido como se sempre tivessem existido. E nos ramos infinitos dessa árvore solitária dormiam maçãs perfeitamente redondas e azuis, estranha mas belamente azuis. Quase que se diria que eram safiras se o seu azul não se desfalecesse tão ligeiramente, exceto numa única maçã, caída e abandonada no canto da página, tão próxima do observador. Quanto ao plano de fundo esse estivera melhor na imaginação do artista do que nos seus traços. Era suposto representar o céu noturno mas ficara tão escuro que parecia evocar uma sensação de desespero. Mas mais importante, no fundo da página, mais fundo do que onde as raízes da árvore se perdiam, ele escrevera um pequeno texto.

– Uma árvore na lua?

Não... e sim. Não fora essa a intenção do Bernardo mas depois de ela ter revelado o seu melhor palpite ele não conseguiu ver mais nada à frente. O fundo escuro, de tão absoluto, não era o céu noturno mas sim o universo. Só faltava incluir algumas estrelas e galáxias distantes, e outras luas até. O plano branco onde as raízes da árvore se agrilhoavam era a superfície da lua, e as letras que compunham o breve texto até podiam ser as suas várias crateras. Visto assim, o desenho não era tão mau. Ele imaginou sentar-se naquela lua, com a cabeça repousada no tronco da árvore para poder apreciar as estrelas sem pensar em mais nada. Não encontrou maior significado do que esse e nem queria. Mas com as estrelas tão distantes, ficaria sozinho. Foi então que considerou o desenho da sua protagonista e decidiu que a árvore seria a casa dela. Assim aquela pergunta impulsiva dela tornou-se a inspiração dele. Cassilda, a rapariga da lua.

Essa súbita inspiração despertou nele uma vontade de a beijar, uma vontade à qual ela, por instinto, se antecipou. E o coração dele logo se exasperou como um louco. Ela sempre tivera lábios bonitos e ele sempre os apreciara da mesma forma, e ainda lhe era comum sentir aquele tão estranho aperto no peito quando a beijava, um aperto quente que sentiu naquele preciso momento ao ser relembrado de todos os outros beijos numa maré impossível. Mas foi um único momento que lhe ficou na mente. Era um daqueles dias de inverno e de chuva em que ele tinha liberdade de dormir pela manhã fora mas ela não. E ao acordar com o som de passos leves, com a luz do corredor deixada acesa, ou talvez com a ausência do calor dela por entre os lençóis, ele sentiu-se protagonista de um sonho no qual lhe seria revelado um ritual de intimidade. Ela estava em frente ao espelho, de pescoço inclinado, a adornar as orelhas com um par de brincos, tal como a musa de um pintor famoso, ou talvez a estátua de uma deusa antiga, e quando ela se sentou na cama para calçar as meias de seda, com aquele seu jeito suave e prolongado, ele fingiu que dormia. A oportunidade de presenciar cada um daqueles pequenos momentos era-lhe irresistível e ficava com a distinta impressão de que revelar-se acordado seria perdê-la. Por isso ele observava e, ainda sonolento, apertava-se-lhe o peito ao vê-la tão bonita e, por qualquer milagre, tão dele. Ela era perfeita e parecia-lhe impossível conceber uma filosofia estética segundo a qual ela não o seria. A pele dela permanecia delicada e tão ligeiramente beijada pelo sol, exatamente como da primeira vez em que ele a percorreu com as pontas dos dedos e não encontrou nela um único defeito, nem sequer um daqueles defeitos minúsculos que nos agradam ou dos quais aprendemos a gostar quando gostamos de quem os tem. Mas o que ele mais admirou sobre ela sempre foi aquela sua presença, aquele jeito indescritível que ela tinha de saber o que dizer por poucas palavras, aquele jeito de dizer muito sem dizer nada. Ironicamente, ele era quase o oposto, era indeciso, aventureiro apenas por iniciativa dela quando ela se demonstrava desafiante com um sorriso arcaico, mais audacioso nos seus olhos escuros do que nos lábios cheios. E com a memória desse sorriso veio a memória de todos os dias longínquos em que se atormentava na ânsia de passar a noite com ela... Tinham-se acabado os dias solitários em que chegar a casa cedo era uma mera formalidade, os dias em que o Bernardo não tinha nada para fazer exceto aguardar pelo dia seguinte. Ele ansiava chegar a casa e depois ansiava que ela chegasse e depois ansiava tê-la adormecida nos seus braços, ficando finalmente só com aquele aroma do seu cabelo negro. Eventualmente também o jovem artista adormecia e aquela fragrância silvestre fazia-o sonhar com vastas árvores de fruto cobertas com o orvalho matinal numa qualquer parte sossegada do mundo. Mas identificar esse tal aroma era onde a sua memória falhava. Procurava por esse sentido como se vasculhasse cada canto de cada livro em busca de mapas que revelassem uma terra do outro lado do mar onde viviam mulheres como ela. E se ela tinha vindo de tão longe assim, qual foi o destino que a trouxe tão perto? Ele ia-se perdendo a relembrar velhos lugares, velhos hábitos, velhas memórias, mas esses tempos de juventude iam já longe, assim como todas as suas coisas de jovem. A única coisa juvenil da qual ainda não se tinha separado era aquele nervosismo antecedente a tais momentos de intimidade... Ele abriu os olhos e regressou a si, ainda a pensar naquela ideia de uma árvore na lua, deixada para trás como uma carta na mesa de cabeceira.

Ela sorriu até que a folha de papel, que o Bernardo agora via como a mais refinada das telas, lhe fosse devidamente atribuída. Então ele adotou um olhar distante mas pensativo, assumindo-se crítico das suas próprias palavras, inseguro se ainda as reconheceria como suas. Ela, sem hesitação e sem medo de tropeçar em qualquer palavra, começou.

– Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver. Hoje é como se fôssemos só nós no mundo, só eu e tu. Vamos atirar pedras ao mar e ver o sol brilhar dentro de todas as gotas d'água, vamos correr pela areia para que o vento nos conte segredos que só conta às ondas, e quando nos cansarmos deitamo-nos e ficamos de mãos dadas a apreciar o que estiver pintado no céu. Quando chegar o pôr do sol vamos escalar as rochas para dizer adeus ao sol. E aperto-te a mão com mais força para não termos medo. Olha para o céu estrelado e lembra-te deste dia de verão. Vou-te ensinar a agarrar as estrelas... Como se fossem maçãs.

As últimas quatro palavras foram improvisadas e mesmo assim, fizeram mais sentido para ele do que alguma vez fariam para ela. Talvez ela, ao ler o livro terminado, não se irá lembrar de que aquelas palavras foram suas... Ele escreveu um apontamento, acrescentando essa breve comparação dela, e ao último traço deixou cair o lápis sobre a mesa, relaxou os ombros, que até então estiveram curvados, e suspirou. Ela fez algo semelhante, pois descaiu-se e abandonou a sua máscara de conforto para revelar um ar decididamente cansado, um ar daqueles que se tem no final de um dia longo. Pareceu ter ficado agradavelmente surpreendida ao ler aquele discurso ininterrupto, um fluxo de consciência aparentemente aleatório cujo significado iludia o próprio autor. Ele só escrevia o que imaginava e desenhava o que escrevia. Era todo um esforço que não ambicionava mais do que apelar ao gosto desinteressado de quem gostar, porque não era sobre nada nem sobre ninguém. Não havia nenhum segredo oculto mas ela agia como se houvesse. Talvez para ela saber disso fosse saber a verdade. Se não havia história não havia mundo mas ela leu como se vivesse naquela lua, como se com cada palavra que lia adivinhasse logo a próxima. E então, arrastando a mão pelo ombro dele num gesto pesado, ela retirou-se. E só quando os seus passos deixaram de ecoar pelo corredor é que ele se lembrou de que, durante a leitura, ela sorrira.

O Bernardo deteve-se no escritório por mais algum tempo, entretido com a futilidade de reorganizar as dispersas páginas do seu projeto. Nunca o conseguia fazer na totalidade, aliás, nem sequer chegava perto. Não sabia como o fazer mas sentia que tinha de o fazer. Ficava sempre perante uma coleção de fragmentos estranhos cuja origem era quase um mistério, e tentar restaurá-los ao seu devido lugar era como, depois de deixar cair uma jarra de água, tentar restaurar os pedaços assim como a água. No entanto, aquela instância em particular foi ligeiramente diferente. Ele sentia-se aliviado com a reação dela, com aquele plácido encantamento com a sua proeza, se literária, se artística, ele não tinha como distinguir. No final de contas ia dar ao mesmo quer ela gostasse mais de uma arte do que da outra, mas naquele momento soube-lhe bem ouvir o seu manuscrito desleixado ser lido em voz alta como simples prova da sua existência.

Entretanto, ele foi reconsiderando o que queria alcançar com a sua história. Tinha muitas ideias, algumas que gostava e das quais se orgulhava, outras que inventara só por motivos estéticos, e ainda outras que, sendo inteiramente honesto consigo mesmo, não sabia o que significavam. Por enquanto o seu projeto não passava de um rascunho, mas nas raras ocasiões em que relia uma ou outra passagem sentia-se convencido de que alguém haveria de gostar daquilo que ele tinha a dizer. Considerou todos os artistas perante todas as suas obras e imaginou-os presos à página ou à tela, sempre em silêncio e em profunda meditação, mas consumidos por uma constante guerra no interior, enfrentando dias e noites de debate com uma única ideia, um único traço, uma única palavra. Tudo para que depois desse intenso processo de reflexão o artista possa associar a sua pessoa à sua arte e fazer dela o seu legado, através do qual oferece ao mundo o seu próprio nome para que a história da humanidade faça dele o que bem quiser. Mas talvez a batalha do Bernardo era um pouco menos heroica. De todos os grandes artistas muito melhores do que ele nenhum foi perfeito. Talvez a indecisão que ele sentia perante a sua própria obra fosse algo muito mais comum do que podia imaginar, e por isso talvez devesse desmistificar as noções irrealistas que tinha acerca daquilo que um artista devia ser e devia antes aceitar que ser humano é ser imperfeito... Começava a entreter a ideia de que talvez a história da humanidade era demasiado tempo para que se lembrassem do seu nome. Ficar na memória daqueles mais próximos era-lhe suficiente, não como um génio intemporal ou revolucionário, mas como alguém que foi capaz de inventar uma história bonita. E talvez, só talvez, ela possa vir a gostar dessa história... Sim, isso era mais do que suficiente, e para ele, isso era tudo.

O dia tinha chegado ao fim mas como seria o dia seguinte? Ansiava jantar com ela como era costume fazerem naqueles que relembrava como os bons velhos tempos. Até concebeu o ambiente, um sítio leve e sossegado, com as luzes diminuídas para fazer sobressair a chama das velas. Poderia procurar por um restaurante sofisticado, um daqueles que em tempos lhe eram completamente inacessíveis como se não existisse nada para além da porta de entrada. Agora tinha o poder de escolher um desses lugares, o melhor restaurante da cidade até. Poderia vestir um casaco daqueles que quase nunca se retira do armário, e ela, um daqueles vestidos que às vezes retira do armário só para se relembrar da última vez que o usou e para ver se ainda lhe serve. Mas detalhes à parte, o princípio mantinha-se o mesmo, uma longa tradição de partilhar um pequeno momento no final de um momento maior. Era uma idiossincrasia nascida nos tempos de estudante quando se refugiavam naquele quarto claustrofóbico e jantavam juntos, antecipando a subsequente liberdade do verão que eventualmente traria consigo o final da vida académica, algo que ambos ansiavam cheios de vontade mas, pelo menos da parte dele, por entre toda essa vontade escondia-se um certo desassossego. Quanto ao detalhe das velas, esse surgira numa tarde tempestuosa que teria arruinado todo o encontro se o Bernardo não tivesse sido diligente. Então, quando a chuva lá fora obscureceu o céu e trouxe consigo uma noite de inverno, e sem luzes funcionais como se o mundo tivesse acabado, eles jantaram à luz das velas e ao som de um vento que assobiava ao ritmo da chuva. E por um momento ele pensou em como não se importava nada que aquele dia durasse para sempre. Ele estava apenas aquecido pelo seu próprio nervosismo, e ela, ligeiramente desconfortável com o frio, chegava-se a ele. Quando as velas se extinguiram já a noite tinha caído sobre a cidade mas eles permaneceram acordados. Não era preciso luz para ver o que era tão simples, e quando os seus dedos se entrelaçaram ele sentiu que estava no único lugar do mundo onde pertencia de verdade, como se aquele quarto fosse todo o mundo e o mundo fosse todo deles... E assim foi. Claro que nem todas as noites foram iguais mas noite como aquela foi só uma e por isso é que lhe ficou na memória. As outras noites trouxeram consigo a banalidade do quotidiano, e o Bernardo veio a descobrir que isso era bom. Foi só quando aprendeu a estar com ela que aprendeu também a estar sozinho. E quanto às coisas pequenas, tais como a brevidade de um cigarro passageiro, essas tornaram-se absurdas, completas perdas de tempo para quem o tempo era subitamente valioso. E a partir daí, a vida do jovem artista tornou-se menos solitária.

Lá fora os candeeiros de rua iluminavam as árvores no passeio, adornadas de folhas verdes e animadas pelo vento, aquelas últimas brisas mornas de um verão que ainda se fazia sentir. E se não fosse pelos prédios em frente, o Bernardo quase que conseguiria ver o rio distante, o rio que imaginava plácido e com uma lua cheia pairando à superfície das águas. Entretanto, ele continuava a reestruturar o seu projeto, a tentar dividi-lo em segmentos mas desanimando-se quando muitos deles ficavam essencialmente vazios, o que o fazia questionar-se se algum dia aquela ideia tão abstrata ganharia forma. Em vez de dividir, decidiu amontoar tudo numa pilha, só para ficar menos desagradável de se ver e para no mínimo criar a aparência de um manuscrito real. Dominava-lhe a sensação de que aquele fora um dia produtivo mas racionalmente sabia que não tinha progredido muito, e de que aquela torre de papel não era assim tão robusta. Além disso nem queria pensar em todo o tempo que perdeu ali, curvado sobre a mesa, sem conseguir escrever uma única palavra, quer em frase, quer em apontamento. Às vezes sentia que não existe tal coisa denominada de progresso. Por cada detalhe que decidia, surgiam dois por decidir. No entanto, era inegável que ele tinha agora mais páginas do que quando lhe surgira a ideia original. À parte disso, ele só queria que aquele verão acabasse e que começasse o próximo porque a essa altura ele teria certamente acabado o livro. O grande problema era o intervalo entre um verão e o outro. Na verdade era quase um paradoxo. Não se lembrava de ter chegado aonde estava mas também por outro lado avançava tão devagar que parecia completamente inerte... Apeteceu-lhe desenhar um caracol e dizer-lhe olá só por se sentir igual a ele.

O Bernardo levou as mãos ao pescoço para desenlaçar a gravata mas não a encontrou. Achou que a tinha perdido mas ao olhar em volta lembrou-se de que ela a tinha desenlaçado antes. Ele ter-se-ia prontamente retirado do escritório mas ao verificar a estante, na eventualidade de ela se ter esquecido aí da gravata, contemplou a sua modesta coleção de livros. A maioria dos volumes tinham marcas de uso na lombada, mesmo aqueles que ele só lera uma vez. Ficavam ali, em perfeita ordem, a recolher pó e a envelhecer sozinhos, sem que o Bernardo se lembrasse dos seus conteúdos. Mas lembrava-se de onde tinha comprado cada livro, de onde estava quando leu esta ou aquela passagem, associando a essas memórias toda uma série de circunstâncias tão características da sua vida, relativas a cada um desses momentos em particular. Mas a história no interior era-lhe uma mancha abstrata... Para quê então guardar cada livro? Colecionava-os como se não tivessem palavras dentro, como se fossem apenas retângulos decorativos para admirar naquela ordem perfeita... ou quase perfeita. Um volume estava no local errado, uma irregularidade que, depois de notar, foi tudo o que ele viu. Restituiu-o ao seu devido lugar e saiu do escritório.

O corredor estreito estava invulgarmente escuro mas o Bernardo conseguiu guiar-se pela luz que esvaía pela porta semicerrada do quarto. A cama estava desfeita no lado dela, delicadamente preparada para que se aposentasse, e a fraca iluminação era quase absorvida pelas cortinas altas. Criava-se um aspeto quase artificial, como o cenário de um filme, e todos os objetos, desde os candeeiros nas mesas de cabeceira até ao espelho de maquilhagem, não passavam de adereços de ninguém, simplesmente ornamentais. Por um segundo ele até imaginou que se olhasse para trás iria descobrir que faltava uma das paredes... Em cima do móvel no seu lado do quarto estava uma camisa branca, limpa e impecavelmente dobrada, que ele não teria reconhecido como sua se por cima dela não estivesse a gravata que usou durante o dia. Da casa de banho provinha a única luz intensa, e ao espreitar pela fresta da porta, ele encontrou-a, a olhar-se ao espelho e a lavar a cara. Ela encontrou os olhos dele pelo reflexo e sorriu um daqueles sorrisos tão íntimos como inocentes. Mas quando ele voltou a olhar, tendo-se distraído apenas para desapertar os botões da camisa que vestia, ela já não estava. E alguns minutos depois, a luz que escapava por entre a fresta da porta trazia consigo redemoinhos de vapor. Tal subtileza era quase um convite, e por detrás daquela porta a chuva constante em mil ecos era um sussurro melífluo aos seus ouvidos. O Bernardo estava em casa, estava no seu próprio quarto, aquela porta tinha ficado despreocupadamente entreaberta, e no entanto ele sentiu que nem com toda a permissão do mundo seria capaz de encontrar alguma sensatez na sua próxima ação. Foi seduzido por uma força rebelde, quase que maliciosa, e foi incapaz de resistir à chance de presenciar algo que imaginava ser proibido. Ao tocar na porta com a ponta dos dedos, arrastando-a silenciosamente, a sua imaginação foi logo consumida por uma essência edénica... mas a realidade era muito mais simples do que tudo isso.

O que encarou do outro lado da porta era uma visão à qual já devia estar habituado mas que sempre lhe suscitava um constante fascínio. A água quente banhava a pele dela, o cabelo negro caía-lhe pela nuca numa linha uniforme, e emanava todo um perfume que viajava pelo ar com os impossíveis aromas de jardins antigos. O vidro que os separava estava ofuscado pelo vapor e pelas gotas d'água que o adornavam, mas não o suficiente para ocultar aquele mesmo gesto que ela tinha de repousar a mão sobre a saliência do seu ventre, como se desta vez traçasse uma lua cheia. Por sua vez, o Bernardo voltou-se para o espelho e, através do reflexo, admirava o jeito que ela tinha de lavar o cansaço dos ombros. Começou-se a sentir como se espiasse algo tão raro, tão longínquo, tão proibido, e no entanto ela estava ali com toda a naturalidade do mundo... Ele esfregou a cara, fazendo-se ouvir o som áspero do final do dia. Segurou a lâmina contra a bochecha mas as luzes pesavam-lhe nos olhos cansados. Decidiu adiar para o dia seguinte. Colocou as mãos em concha, deixou que a água corresse e depois lançou-a sobre a cara, tão sofregamente, como se a bebesse na pele.

O dia terminava e então, não havendo mais nada a fazer, o Bernardo deitou-se na cama, envolto e dissoluto pela teia branca que eram os lençóis perfumados. Pouco depois de se reclinar na almofada começou a ser-lhe difícil manter os olhos abertos, e quando até a luz diminuída do candeeiro se tornou demasiado intensa para aguentar, ele fechou os olhos e sentiu-se cair de costas em águas profundas, daquelas que se espreita como que para um abismo. A cama onde se deitara tinha naufragado contra as rochas traiçoeiras da noite, e por um instante ele ficou com receio de abrir os olhos e não encontrar nada exceto o escuro. Mas surgiu algo que o trouxe de novo à superfície. Sentiu aquela mística presença que ela tinha, mesmo em silêncio. Ele estendeu o braço, convidando-a como uma ninfa que se retirava para o seu leito. E através de um gesto tão instintivo que não podia ser mera coincidência, ela encontrou o mesmo espaço exato de todas as noites algures entre o ombro dele e o peito, no qual se repousou.

Naquele momento se ela tivesse prestado atenção ao coração dele teria escutado uma verdadeira canção de embalar, uma melodia que só pode ser tocada pelo sossego azul de duas almas. Mas em tantas outras ocasiões ela teria escutado as mais variadas peças de música. Os tambores agitados quando ele a viu pela primeira vez, os bronzes eufóricos quando ao início da tarde ela chegava casualmente, os hinos de alegria quando ela se riu da primeira piada que ele lhe contou... Porque em tempos ela foi apenas uma ideia abstrata, e depois tornou-se uma personagem mascarada que, por uma qualquer afortunada contingência do tempo, vagueava pelos mesmos corredores que ele. Mas agora ela era ela. Quanto a ele, faltava-lhe a voz. Então, durante aquele silêncio resignado, ela puxou pela mão dele e pousou-a sobre o seu ventre. E quando ela se chegou a ele deixou-o com o súbito impulso de fechar os olhos e sentir o aroma daquele cabelo negro. Se ele pudesse ficaria assim para o resto da vida, naquele minuto perfeito entre a noite e o sono, incapaz de distinguir entre as memórias antigas e os sonhos bons. Era como se naquele preciso instante todas as dúvidas, todas as inseguranças e todas as incertezas do futuro fossem reduzidas à indiferença. Ele sentiu que estava em casa, finalmente em casa, no fim de um longo, longo dia. Mas todas as coisas boas chegam ao fim.

– Tiveste um dia bom na escola?

A pergunta dela veio num tom tão casual que ela nem sequer parecia particularmente interessada numa resposta. Era uma daquelas perguntas que se faz só por fazer. De qualquer das formas, ele não sabia o que dizer, respondeu-lhe apenas com silêncio porque qualquer outra resposta ficaria aquém da verdade. Mas se lhe tentasse responder a sério, o que diria? Por não haver nada que valesse a pena contar em voz alta era como se o dia nem sequer tivesse acontecido. Ocorriam-lhe detalhes insignificantes, coisas tão ínfimas que não conseguia enunciar sem se sentir envergonhado consigo mesmo. Podia descrever-lhe como fora a viagem, o que acontecera pelo caminho, as peculiaridades de cada pessoa por quem passara nas ruas da cidade, ou podia descrever-lhe as salas e os corredores da escola mas sempre que o tentava fazer apercebia-se de como cada detalhe do seu dia terminava num caminho sem saída. Podia contar-lhe um sonho que teve mas isso seria uma coisa quase fútil, isto de descrever um sonho com a crescente frustração de que quanto mais detalhados tentamos ser, mais ambíguos ficamos, mais o sonho se perde em abstrações da memória, e pior ainda, resta aquela insatisfação de que nos é impossível descrevê-lo de maneira que um outro alguém o veja exatamente como nós o vimos.

Em vez de tudo isso, ele optou por permanecer em silêncio. Tentava manter os olhos abertos mas revelava-se cada vez mais incapaz de o fazer. Ela ia descansando contra o peito dele, trazendo na sua orelha a sensação de que para a ter assim ao anoitecer até valia a pena ter um dia mau. Não havia razão de estarem ali, ele e ela, mas também não havia razão de não estarem. Quando teria sido a última vez que estiveram assim? Ele tentou relembrar-se mas por estar tão sonolento foi-lhe impossível, e ficou com saudades de um dia ainda antes que esse dia lhe entrasse no ato de relembrar. O melhor seria reviver os eventos em sequência inversa mas não sabia por onde começar, e ao perder a noção do tempo não conseguiu abandonar a distinta sensação de já ter tentado. E enquanto que ele se perdia nesse labirinto, ela não tinha nada a dizer. Quase que radiava uma aura serena como se até dormir fosse algo que ela fazia com elegância. Mais uma vez, ele ficava com uma inveja estranha, queria estar ainda mais perto dela, impossivelmente perto, queria ocupar o mesmo espaço que ela e ter os mesmos sonhos. Ele vagueou o dia todo, tão desnorteado e confuso, mas agora ali, aconchegado a ela, perguntava-se se aquilo seria um final feliz. Talvez era esse o significado de estar em casa no final de uma grande viagem mas ele procurava por algo mais como se ainda houvesse mais noite... Mas o verão acabava e a lua brilhava tão perto.

Ele tentou proferir qualquer coisa mas não conseguiu. Por cada palavra bonita que lhe ocorria, lembrava-se de dois motivos para permanecer calado, mesmo sabendo que se iria arrepender de cada momento de silêncio. E assim, uma súbita intenção surgiu-lhe do nada, foi consumido por uma ambição rara. Queria beijá-la outra vez e abraçá-la mais perto, mas agora foi incapaz de a alcançar. Tornou-se um náufrago num mundo onde só existe mar, como se estivesse a mil anos-luz dela e a dez mil anos-luz de si mesmo. Se a cama de marfim onde se deitavam fosse uma nau perdida num redemoinho, ele seria resgatado apenas pela graça dela. Ou pelo menos tinha de acreditar que sim... Podia tentar encontrar as palavras para lhe contar o quão bonita ela era e que sonhou com ela, mas naqueles momentos nunca sabia o que lhe dizer. Sentia-se totalmente perdido e cego. Olhava para ela através de um espelho obscuro, conhecia-a apenas em parte, e desesperava... O que aconteceu àquele dia, pensou ele, o que aconteceu àquele sonho? Para onde foi o tempo perdido da minha juventude?... E tais questões chegaram-lhe como a metade mais estranha de um segredo, como um devaneio sem sentido com o qual, tão cansado, adormeceu.

Ela teve a última palavra. No que foi quase um gesto virginal, ela caiu em si, fechou os olhos e suspirou.

– Nunca tenhas vergonha.

§


Isto foi o primeiro capítulo de Telémaco.

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