Se fosse para te falar agora mesmo, o que poderia dizer? Começa pelo início, digo eu a mim mesmo, mas o início é o quê? Não tive uma vida triste mas nunca tive um dia feliz. Procuro pelas minhas memórias mais antigas mas a própria procura escapa-me, e não consigo viajar mais longe do que o início do primeiro semestre. Como é que terá sido esse tempo para ti, pergunto-me... Eu lembro-me de encontrar o sol matinal no meu quarto, quebrado em mil raios pelos ramos de uma árvore à janela cujas folhas verdes assobiavam ao vento. Às vezes esqueço-me de mim próprio antes disso, como se a minha infância não tivesse sido mais do que um sonho, e até custa acreditar que aquele quarto era como que o mesmo que este. Mas aquele dia foi ocasião de estar alegre. O quarto estava vazio de mim mas cheio de possibilidades. Em cima da minha secretária estava um pano esquecido que me fez aperceber de que o quarto tinha sido limpo recentemente, deixando uma nuvem de verniz no ar, um aroma simples e clássico, algo que eu imaginava tão característico dos quartos de escritores e filósofos antigos. A comparação viera-me à mente porque naquele tempo ser um deles era o que eu mais queria, e como tal considerava-me demasiado sério e ocupado para me entreter com aquilo que as pessoas à minha volta queriam, tudo coisas que eu considerava insignificantes. Mas tais insignificâncias entretinham-me mais do que alguma vez admitiria... Considero uma imperfeição que a verdade desta minha memória esteja sempre dependente do meu estado de espírito. Há dias em que ao recordar esses tempos passados encontro-me como um intelectual sem coração, e há outros dias em que penso em mim como um menino de escola à espera que alguém lhe passe um bilhete secreto a meio da aula. Só que... não sei. Toda a memória é tão ténue que talvez não seja só minha, talvez a partilhe com uma infinidade de eus. Um deles sugere-me uma teoria, o próximo diz o oposto, e o seguinte sai-se com uma teoria mais bizarra ainda... Acreditei em tudo ao mesmo tempo, e quando comecei a duvidar acabei sem saber de nada, exceto que vieste fazer deste quarto vazio a tua casa. Sei porque é verdade, mas não me acredito porque é impossível. Se alguém fosse àquela minha memória para me dizer que este momento estaria para acontecer eu não me acreditaria. Tudo o que sobra é que, para o bem ou para o mal, essa memória antiga foi o dia em que me tornei quem sou agora.
E se me lembrasse de como eu era em criança, terias curiosidade em saber? Acharias graça? Em criança eu não era diferente das outras crianças no sentido em que era feliz por não querer saber de mim. Fui inocente por um momento, vi o mundo sem perguntar a partir de onde. Não fui solipsista porque quando era pequeno foi quando me senti mais grande. Não quis saber de nada exceto de às vezes perguntar uma série de porquês que não queriam resposta. Todo o tempo sempre passou por mim sem início e sem fim. Vivi cada dia como se fosse o primeiro. Fui feliz mas só por um bocadinho. Agora foi-se tudo pelo portão do tempo, aquele que ao fechar só deixa ficar saudades. Saudades e inveja... Porque tenho inveja da criança que fui. O mundo era-lhe tão simples porque nunca o viu como uma parte à parte dele. Mas teve de crescer e quando cresceu escondeu-se numa caixa de vidro para ver o mundo em reflexos. Não sei se me perdi ou se nunca existi. Sempre me disseram, nunca envelheças... E se eu soubesse o que sei hoje teria seguido esse conselho. Quando me procurei já estava velho e todos os reflexos eram-me estranhos. Fiz desta caixa de vidro uma fortaleza da qual nunca mais quis sair. Passei tanto tempo encurralado pelas suas muralhas, comecei a viver nesta fortaleza abandonada cujas torres eu escalava para contemplar o meu reino de memórias mortas. O tempo não esperou por mim e que arrogância a minha de achar que ele esperaria... O tempo passou sem que eu plantasse memórias novas. Na minha ignorância nem sequer tentei. Não ter cicatrizes é a minha fraqueza. Não sei de que cor é o meu sangue.
§
AS FOLHAS DE CHÁ
Eles desembarcaram numa lua onde não havia nem montanhas nem gigantes, nem mestres nem discípulos. Era um lugar tão sereno que parecia carente de qualquer existência. Mas isso só fez com que a Cassilda quisesse ir mais além, ela simplesmente não iria descansar enquanto não encontrasse a origem de todo aquele silêncio, que se fazia ouvir como uma melodia. O rapaz, como já lhe era característico, hesitava. Qualquer coisa na tranquilidade daquele lugar fazia-o sentir que aquela lua era um lugar por onde não se deviam intrometer, um lugar onde não eram desejados, um lugar que era melhor deixar sozinho e ver de longe.
– Só queremos explorar um bocadinho. Não estamos a fazer nada de mal... – repetia a Cassilda.
Prosseguiram. Não havia forma de a parar nem de a convencer a voltar atrás. O silêncio crescia, frio e pálido, como estar sozinho em casa numa manhã de inverno em que só depois do vidro embaciar de orvalho é que se sente as mãos geladas. Mas o silêncio escondeu-se por um instante assim que eles chegaram a um caminho de terra com uma casa pequena no fim. Entraram sem sequer bater à porta e encontraram a fonte de toda aquela serenidade. Era uma senhora que se sentava à janela como se estivesse disposta a esperar ali para o resto da vida. E por muito calma que a senhora se demonstrasse, o rapaz não conseguiu deixar de notar que a cara dela tinha uma expressão débil, e a sua pele era quase azul. Era uma senhora doente mas que escondia a sua doença com dignidade, e por isso mesmo o rapaz encheu-se de pena dela.
– Olá! – disse a Cassilda.
– Olá. – respondeu logo a senhora, nem sequer ligeiramente surpreendida pelos intrusos.
A senhora permaneceu em silêncio, a olhar primeiro para ela e depois para ele, e entretanto a sorrir apenas com os cantos dos lábios, a revelar um sorriso de quem se lembrou de uma coisa engraçada que não quer partilhar com mais ninguém.
– Este mundo é tão grande... Mas onde é que está toda a gente? – perguntou a Cassilda.
– Vieste ao sítio errado se estás à procura de alguém que não eu. Já há muito tempo que não vem aqui ninguém. Desculpa desapontar.
– Não foi isso que quis dizer...
– Eu sei.
A senhora sorriu mais, e pela primeira vez, a Cassilda corou.
– Então deve ser triste para si, sempre aqui sozinha.
– Não, nem por isso. Mas não significa que não possa desfrutar da vossa companhia por um bocadinho, se aceitarem a minha em troca.
A Cassilda sentou-se em frente à senhora com uma pressa deselegante que a senhora desculpou por nem ter ficado ofendida, e voltou a sorrir ao notar que o rapaz é que ficara envergonhado com tal indelicadeza.
– O que é que a senhora faz por aqui?
– Hoje em dia fico só à espera, a ver as flores. Já não tenho força nem jeito para sair lá para fora. Por isso sento-me aqui, no meu canto do mundo, neste meu banquinho de prata.
A Cassilda ficou encantada ao contemplar um campo cheio de flores amarelas e azuis, ainda mais só por saber que a senhora gostava delas. Era como se aquela janela não revelasse mais do que uma luz branca e vazia antes do momento em que a senhora pintou a paisagem com as suas palavras. Agora era um campo real, vasto e cheio de erva e girassóis que namoravam com a luz de um sol impossível. E a erva, de tão verde, pedia que se deitasse nela para ver o azul do céu.
– E se nós a ajudássemos? Podemos levá-la até lá fora por um bocadinho, ao colo se for preciso.
– Não, pequena, não te esforces. Na minha idade as flores fazem-me adoecer, mas não é por mal, é apenas porque chegou o meu limite delas. Tive de as deixar mas isso não significa que deixei de gostar delas.
– Mas como é que a senhora é tão feliz se o que me conta é tão triste?
A senhora desviou o olhar e encolheu os ombros. Depois ouviu-se um assobio. A senhora tinha uma jarra de água que começara a ferver e então atirou sobre ela umas folhas de chá. A água ganhou cor e sabor, e a senhora insistiu em servir os seus intrusos antes de se servir a si própria. A chávena aqueceu, trazendo uma sensação confortável nas palmas das mãos do rapaz se ele as afastasse assim que começasse a doer. Se antes havia todo um frio pálido, agora havia um calor laranja. O vapor serpenteava da superfície calma da chávena até se dissipar como se nunca tivesse existido. E o rapaz não conseguiu deixar de pensar que eventualmente tudo aquilo, aquela visita, aquela viagem, aquelas flores lá fora e a janela que os separava... um dia, iria tudo desaparecer.
– Foi a senhora quem plantou aquelas flores? – perguntou a Cassilda ao sorver o seu chá.
– São bonitas, não são? – respondeu a senhora, sem dizer que sim nem que não.
– Sim, só é pena estarem tão longe.
– Às vezes o que está mais perto é o mais difícil de ver. E com os meus olhos antigos se olhar para uma de perto não consigo ver qualquer outra.
– Mas assim só gosta de cada flor um bocadinho. Não é melhor gostar de uma, só uma em especial, mas muito?
– A jovem acha que na minha idade eu nunca fiz exatamente isso?
A Cassilda estava prestes a continuar mas engoliu o que ia dizer a seguir, e então assumindo o papel de aprendiz, deixou-se ouvir.
– Já vivi a minha vida toda. Tenho o meu passado e não me hei de esquecer dele mas também não irei abdicar de cada um dos meus amanhãs. Os meus dias são assim e eu gosto deles, mas não penses que vivi sempre assim. A verdade é que não tenho arrependimentos. Fiz asneiras mas se não as tivesse feito não reconheceria o meu reflexo no espelho. Podes ficar aqui até anoitecer a perguntar se fiz isto ou aquilo, se tive esta ou aquela experiência, e eu, para o bem ou para o mal, hei de dizer que sim. Mas parece-me que essas mesmas coisas que me irás perguntar serão coisas que nenhum de vós ainda fez.
Se aquilo era uma lição então era uma lição que a Cassilda não precisou que lhe fosse repetida. Ela parecia ter compreendido tudo e a sua sede de viajar, já tão forte, foi ainda mais reacendida naquele momento. Até teria partido dali sem sequer dizer adeus à senhora e ela não se teria ofendido. Mas ele, quando confrontado com os olhos meigos da senhora, desviou os seus olhos tímidos para o oceano laranja que era o chá.
– Para vocês jovens não tenho nada mais exceto isto. Saibam que só uma coisa é verdade, saibam que tudo isto há de passar. Mas isso aplica-se ao bom e ao mau. Porque tudo passa mas o que importa é que não passe em vão. Lembrem-se de que por onde quer que passem na vida vão dizer olá e adeus a muitas pessoas. E é em cada uma delas que está o tempo perdido. Por isso procurem-no... Então agora digam-me, porque é que estão aqui a perder um dia tão bonito a falar com uma velhinha?
– Não poderíamos ir embora assim à pressa. O chá ainda nem arrefeceu, minha senhora.
– A menina acha que saber que dois jovens saudáveis e saudosos como vocês estão a viver a vida me iria fazer triste? Julgas-me assim tão frágil? Pois talvez o seja mas em verdade te digo, nem tudo o que é frágil é fraco.
– Então vou fazer como a senhora diz. Vou passar por aquele campo de flores só mesmo porque sim, só mesmo porque me apetece e porque quero guardar a memória deste dia na ponta dos dedos.
A senhora sorriu como que a dar a lição por terminada, uma lição que a Cassilda tinha compreendido tão bem... mas ele não. Então a senhora decidiu ensinar-lhe uma lição especial, algo ao qual a Cassilda nem sequer prestou atenção.
– Bebe, bebe tu também, rapaz. Vou partir do princípio que a tua timidez é só sede. Bebe o teu chá mas não procures nele o teu passado. Ainda és muito jovem para isso. Por isso bebe e procura no fundo dessa chávena o teu futuro. Porque disso é que ainda tens muito. O teu futuro é tão vasto como a minha inveja pela tua juventude... Bebe e depois desaparece daqui, vai com a tua amiga por aquele carreirinho, passa por cima da erva, cheira as flores, e a cada dia lembra-te de que tens sempre muitos caminhos por onde ir. E lembra-te de que o tempo não conserva, o tempo muda e o tempo mata... e o tempo renasce.
§
– Era disto que estavas à espera?
Ele puxou pela cadeira, fazendo com que ela chiasse pelo chão frio, e sentou-se com um suspiro como se estivesse sumamente consolado após uma refeição grande. Depois deteve-se por uns momentos a olhar para o Bernardo, arregalando os olhos à espera de resposta. Quando não obteve uma fez-se de mudo, olhando em volta enquanto batia com os dedos por cima da mesa. Mas eventualmente aborreceu-se e quebrou o silêncio.
– Deixa-me ajudar-te a encontrar a tua língua. Queres saber o porquê.
– Isso seria um começo.
– Só diz isso quem não faz a mínima ideia por onde começar.
Era verdade, era verdade há já muito tempo, e o Bernardo não se sentia tão perdido assim como naquele momento exato, precisamente ao ouvir aquelas palavras feias serem ditas em voz alta. Não sabia o que andava a fazer da vida há tempo suficiente para se esquecer de quando é que essa incerteza começara, e nem sequer sabia o que estava a fazer naquele lugar estranho. O Eduardo tinha dito que bastava estar calmo para que as palavras lhe viessem mas o Bernardo estava agora perfeitamente calmo e racional, e no entanto não tinha nada a dizer. Apenas esperava que o homem se dignasse a falar porque, encurralado atrás daquele vidro, não teria nenhum motivo para mentir.
– É pena, é pena mesmo... Estava à espera de fazer um bocadinho de conversa amena, um bocadinho de está frio, está chuva, um bocadinho de oh, por aqui?... Não achas estúpidas essas coisas, essa mania de iniciar uma conversa ao constatar factos óbvios? Está frio e chuva? Não tinha reparado, senhor, acabei de entrar no elevador com o guarda-chuva a pingar mas não reparei na chuva! Obrigado por essa verdade, vai ser para sempre o meu maior tesouro... Não achas isso irritante? O que aconteceu a apreciar um momento de silêncio?
– Não foi essa a minha pergunta. – respondeu o Bernardo, irritado mas também cada vez mais confuso.
– Não quero entrar por semânticas, muito menos com um gajo como tu, mas tecnicamente não fizeste pergunta nenhuma. No entanto, deixa estar, eu perdoo-te... Vieste aqui para saber o porquê. Bom para ti. Mas e se não gostares da resposta? Estás preparado?
– Sim.
– Errado! A resposta correta é não. Fazes-me lembrar um daqueles rapazes que acrescentam o número de meses às suas idades para impressionar os mais crescidos. Queres que te confie um segredo que os adultos não podem saber? Queres que te mostre o sítio onde os adolescentes vão para fumar cigarros e atirar isqueiros e garrafas de cerveja à parede? Queres que te mostre para onde foi a tua inocência? E se o fizer, prometes que não contas a ninguém?
– Não percebo nada do que dizes, só sei que estás a divagar. Responde ao que quero saber ou vou-me embora.
– Báh! Divagar?! Insultas-me... Não por ofensa à minha humilde pessoa mas sim por me desapontares. Porque não há no mundo coisa pior do que isso, o desapontamento. Estava à espera que fosses inteligente até porque, só aqui entre nós, se tiver de ouvir mais uma conversa imbecil vou fazer uma asneira, uma asneira má, muito má mesmo... Mas enfim, és um homem muito ocupado, eu compreendo. Por isso eu vou-te dizer toda a verdade de uma só vez. Assim ficas despachado... Tu perguntas porquê, eu pergunto porque não.
O homem calou-se como se a conversa estivesse categoricamente encerrada. Ele falara com tanta vontade mas depois dessa sentença pareceu levantar-se da cadeira, quase que a pedir licença para dizer até à próxima e desaparecer. Mas a única coisa na cabeça do Bernardo era o escuro.
– Isso não é resposta nenhuma. Não é nenhum argumento nem nenhuma razão. Para respostas assim prefiro uma conversa banal sobre a chuva. A tua resposta é toda uma infantilidade.
– E que mais é que querias que fosse? Oh, não ouviste dizer? O mundo não é mais do que isso, uma birra infantil. Diz-me uma coisa, os teus estudantes continuam-se a portar bem quando sais da sala?
Mais uma vez o Bernardo não soube como reagir. Ficou estúpido... Não tinha a certeza o que esperar daquele homem mas nada o teria preparado para um desvio assim. O homem olhava intrigado, à espera que o seu desafio fosse respondido, e quando viu que o Bernardo não chegaria lá ofereceu a solução como se fosse uma questão de aritmética.
– Eles portam-se bem enquanto estás lá, pelo menos partindo do princípio que és bom professor, mas quando sais da sala eles gostam de se portar mal, gostam de correr o risco de serem apanhados. O senão é que só sabe bem portar mal quando o teu regresso é incerto e iminente. Se saíres daquela sala para sempre então qual é a piada de se portarem mal? E para os mais certinhos, de que serve terem-se portado bem entretanto? Vai dar tudo ao mesmo, no fim é tudo igual, é sempre um grande zero.
§
E assim criaram um momento agradável, aproveitando o que restava do sol e da brisa fresca, uma paz tão sublime que inspirou o rapaz a aparecer no jardim para se sentar nas escadas e acender um cigarro. Ficou só a ver, distante, com um cigarro que se queimava por entre as pontas dos dedos. E a Emília, mesmo dedicando toda a sua atenção à Margarida, sentia os olhos do rapaz, e sabia que quando aquele cigarro se apagasse, ele se iria aproximar. Então tentou pensar em qualquer coisa simpática para lhe dizer, qualquer coisa que o animasse. Não lhe ocorreu nada mas não fazia mal, sempre acreditou que cada momento trazia consigo as suas palavras. E depois o cigarro chegou ao fim.
– Então tu não querias vir para os baloiços comigo? – disse ele ao sentar-se no outro baloiço ao lado da Margarida.
– Não, tu és mau.
– Porquê? Porque o tio diz?
– Sim.
– Então deve ser verdade...
Assim que o baloiço abrandou a Margarida saltou em frente e correu pelo jardim, a explorar e a dançar ou, o que quer que aquilo fosse, era uma boa ideia para afastar o frio iminente. O céu escurecia e as luzes da piscina tornavam-se a única defesa contra a noite. O inverno era agora uma questão de tempo... A Emília sentou-se no baloiço e, pela primeira vez em muito tempo, ela e o rapaz ficaram lado a lado, a tomar conta daquela criança que brincava à vontade.
– Desculpa se te estraguei a noite. Não devia ter dito aquilo. – disse ele depois de um silêncio tímido.
– Pois não.
– Então concordas com eles?
– Concordo contigo, concordo que não devias ter dito aquilo.
– Eu acho que ele merecia. Quem é que ele pensa que é com aquelas frases feitas? Tudo estúpido, tudo vazio...
– Tens a certeza que estás a pedir desculpa?
– Hmm... Tens razão. Sinceramente já não sei nada. Só sei que estou zangado, não sei com quem, mas estou zangado.
– Então talvez devias deixar de estar zangado.
– Ai sim? Se é assim tão fácil o que é que sugeres que faça?
Ela não teve resposta. Para perguntas assim nunca teve. Respondeu só com um encolher de ombros enquanto se deixava embalar pelo movimento do baloiço. A Margarida continuava a correr pelo jardim, completamente absorvida no seu próprio mundo, naquele intervalo de fim de verão no qual o sol já tinha adormecido, mas como as estrelas se demoravam ela entretinha-se antes com os pirilampos.
– Não sei se sabes mas há um nome para isso, para esse teu jeito de ser. Mas não sei é como é que consegues. – disse ele, esboçando um sorriso verdadeiro pela primeira vez.
– Não sabia. Nunca encontrei grande significado em nomes. O que é um nome?
– Se tivesses continuado a estudar saberias. É assustador no início, isso eu admito, mas assim que te habituas torna-se muito melhor do que estar aqui. Não sei como é que aguentas, eu teria enlouquecido... Já agora, porque é que não continuaste?
– Há sempre um milhão de motivos pelos quais não fazemos uma coisa. – disse a Emília com um outro encolher de ombros.
– Dá-me só um então.
– Sei lá. Parece que não estava nas cartas para mim. Não é assim que se costuma dizer?
– E aceitas isso?
– Se não aceitar, revolto-me contra quem?
– Contra quem tiver a culpa. Os teus pais, a tua aldeia, o teu mundo, o teu destino se for preciso...
– Talvez seja por isso que estás tão zangado.
Até então ele falara sempre voltado para a Emília, que por sua vez não tirava os olhos da Margarida, mas ao ouvir aquele palpite o rapaz calou-se por um momento para pensar. Quando finalmente reencontrou as palavras olhou em frente como se falasse sozinho.
– Sabes, às vezes até queria o mesmo para mim... Devia ter desistido da escola e ido trabalhar com o meu pai. Seria muito melhor do que andar aqui perdido. Sei encontrar uma frase específica num livro de mil páginas mas não sei ver o caminho à minha frente. Não me leves a mal mas, pela tua simplicidade, até tenho inveja de ti.
– A minha vida não é invejável.
– Hmm, talvez não seja essa a melhor palavra mas que é qualquer coisa interessante é. Para mim é como se tudo isto que estou a fazer não valesse a pena porque não faço ideia para onde vou no fim. Quanto mais sei menos sei. Não sei nada.
– Eu também não sei para onde vou, na verdade nem sequer sei o que te dizer... exceto talvez isto. Faz qualquer coisa boa.
§
– Enfim... Mas mudando de assunto, há uma coisa que já te queria perguntar há algum tempo. Conta-me lá a tua história. – pediu o Eduardo muito casualmente.
– Qual história?
– A do teu livro.
– Ah, isso. Ainda não sei bem o que dizer. Um dia lês.
– Não me parece. Para isso é preciso que escrevas.
– Eu sei.
– Não sei se sabes. Já andas nisso há muito tempo... A história da humanidade está cheia de gente que fez muito mais em muito menos tempo. Tu sabes isso melhor do que eu. Só não sei bem é o que andas a fazer dos teus dias. Chega uma altura em que o rapaz que diz que quer ser astronauta deixa de meter piada, percebes? Ou fazes o que tens a fazer ou desistes.
Todo esse discurso foi completamente inesperado. O Bernardo não fazia ideia do quão informado ou até mesmo o quão interessado o Eduardo estaria naquele seu projeto. Talvez ao longo dos anos lhe tivesse contado algumas dessas intenções para o futuro, ainda que muito de passagem, como quem no final do dia não consegue resistir e refere os seus planos para o fim de semana. Era justamente o tipo de pormenor que o Bernardo não tinha memória de partilhar mas devia tê-lo feito, e em mais detalhe do que pensava, porque agora o Eduardo mostrava-se quase omnisciente, e todas as suas palavras eram tão incisivas, afiadas pela verdade. O Bernardo ficou sem resposta, primeiro durante um silêncio frio e depois durante uma outra interrupção quando o empregado regressou, colocou o vinho e a água sobre a mesa e retirou-se sem uma palavra. Entretanto, o Eduardo olhava pela janela como se nas ondas do mar estivessem escritos os seus próprios pensamentos.
– O que estou a tentar dizer é que... Às vezes é fácil uma pessoa esquecer-se do que é suposto fazer. São muitas as ideias, é muita a inspiração e a ambição para o que quer que seja, depois vai-se a tentar fazer a coisa em si mas parece impossível, parece que fica tudo perdido pelo caminho. Eu sei que não é fácil, para mim é igual. Só queremos saber que estás bem encaminhado. Nós preocupamo-nos contigo. E estamos todos muito ansiosos por ler. Por isso, o que estou a tentar dizer é, não nos deixes na expectativa... Faz o teu melhor.
Ele sorriu, ergueu o copo a jeito de brinde e bebeu um trago em perfeita imitação do jogador de bilhar. Mas em vez de desatar em gargalhadas aflitas ficou de olhos semicerrados, contemplando a distância da sombra da cidade. As suas palavras iniciais tinham sido mordazes mas a explicação subsequente adquirira um tom apologético e quase penitente para tentar sarar a ferida. Ainda assim, tanto um sermão como o outro tiveram o distinto tom de terem sido ensaiados. Eram algo que ele planeara dizer, talvez fosse essa toda a razão da sua visita, e agora, absolvido da mensagem que se comprometera a entregar, começava a relaxar na cadeira. Mas seguiu-se um momento de silêncio, uma pausa quase constrangedora durante a qual ele pareceu recear alguma reação da parte do Bernardo, reação essa que, para o bem ou para o mal, nunca chegou.
§
– Talvez não mas cá por mim ficaria aqui até amanhã de manhã se o senhor se dignasse de nos contar algumas das suas desgraças. E estou confiante de que falo pelo meu amigo também.
Por acaso falava. O Eduardo sempre tivera aquela tendência de atrair vagabundos e de perder horas em conversa com eles, tanto ao abrigo de uma casa como de uma ponte. Mas também tinha um talento de encorajar esses vagabundos a falar abertamente, de os fazer perder a noção do tempo por entre relatos das suas histórias de vida com mais eloquência do que eram normalmente capazes, como se contassem a um velho amigo provérbios que eles próprios só pensaram em metade antes de serem interrompidos por um mundo indiferente. E aquele era deveras um homem cheio de histórias, se verdadeiras ou falsas, isso era impossível de averiguar, e nenhum deles tinha vontade de o fazer. Para um homem como aquele a verdade e a mentira existiam numa espécie de intermitência na qual a mentira, se é sentida na pele, então é verdade, e a verdade é sempre maleável caso estes ou aqueles detalhes inventados sirvam para aperfeiçoar a história... Não era de longe a primeira vez que algo assim acontecia desde que os dois amigos se conheceram, mas naquela instância, apesar de mais velhos e mais sábios do que nos tempos de universidade, regrediram a jovens estudantes que aprendiam com a sabedoria de um mestre.
– Hmm, as minhas desgraças... Se quer que o diga, as minhas desgraças são mais sobre o que fiz do que sobre aquilo que me aconteceu. Foram muitos os erros, uns atrás dos outros até que toda a gente deixou de ter esperança em mim. E sabe o que é isso? Uma coisa é, já fiz a minha parte, não quero mais saber, agora safa-te. Outra coisa é, eu desisto de ti, não vais dar em nada, de ti não espero nada, já não vales a pena... Em primeiro lugar foram os meus professores. Decerto que chegou o dia em que eu não apareci na aula, como era costume, mas em vez de marcarem falta e escreverem outra carta, deixaram passar, e que alívio lhes deve ter sido não ter mais dores de cabeça. Depois foram os meus pais. Disseram-me que já tinha idade para me fazer à vida, por muito pouca que ela fosse, pouca a idade e pouca a vida. E por último foram os meus amigos. De início eu gostava de os entreter, de esbanjar com eles e partilhar tudo, mas quando fiquei de bolsos lisos eles foram-se todos embora. Os de verdade não sei se alguma vez os tive. Houve ali um momento em que eu conhecia toda a gente e toda a gente me conhecia a mim... mas ninguém se dizia meu amigo. E sei no que está a pensar. Sim, já roubei. E até já fiz pior.
– Pior como?
– Mendiguei. Em verdade vos digo, mendigar é muito pior do que roubar, isso acreditei antes como acredito agora, isso para mim é a única verdade... Se o jovem se encontrar numa situação em que precisa de roubar, isso é uma pena, mas uma miséria tão escura que precisa de estender a mão ou a boina para que alguém deixe cair uma moedinha qualquer? Isso é uma coisa muito triste.
– Não sei se concordo consigo aí.
– Estou-lhe a dizer! Para roubar é preciso força, é preciso ser capaz de alcançar o que quer, precisa de o obter por quaisquer meios disponíveis. E se o conseguir, então é legítimo, para todos os efeitos é seu. Mas pedir? Vai arriscar o seu bem-estar, vai arriscar a fome da sua barriga na caridade dos estranhos? Aqueles que se perderem umas moedas pelo caminho ficam menos tristes do que se as derem a um infame como eu?
– Eu sei ao que se refere mas nem toda a gente é assim. Eu não sou e não conheço quem seja.
– Porque é um bom jovem, é um exemplo positivo de um jovem, mas olhe que já conheci muitos exemplos negativos de jovens. E estou-lhe a dizer, eu que já cometi os dois pecados, já mendiguei e já roubei, digo-lhe que roubar é melhor... O mais engraçado disso eram os turistas. Nunca sabia bem o que fazer com eles. Alguns eram demasiado simpáticos a pontos de serem estúpidos e a esses dava para me rebaixar e mendigar porque em todas as línguas uma mão estendida significa o mesmo. Mas outros eram tão maus que fingiam não me compreender, até me olhavam com desgosto, quer dizer, quando me olhavam, quando não fingiam que eu nem sequer estava ali... Uma vez mostrei as minhas feridas nas pernas a um turista que tirei à sorte de uma manada deles, e os outros que passaram ao lado olharam-me com nojo e acertaram o passo. Só não sei o que é pior, ser nojento ou ser ignorado. Quando é assim que escolha tinha eu? Foram antipáticos comigo, tive de os roubar.
– E roubou mesmo?
– Pois teve de ser, como não? Chega uma altura em que um homem não tem mais nada a perder. Honra? Dignidade? Báh! O que é isso? Palavras de vento! A roubar não se é digno, não digo isso, mas é-se muito menos digno a mendigar. E o mais engraçado disto é que em tempos eu tive o mundo todo. Quando a sorte me chegou eu disse que sim e foi tudo meu. Tudo o que queria comprava logo, e aos montes, dois, três, quatro de cada vez. Às vezes comprava coisas que nem sequer cheguei a tirar da caixa. E viajei pelo mundo fora, de um canto ao outro. Por cada ilha por onde passei, desembarquei e fui acolhido. Fizeram-me festivais inteiros e o que não me podiam oferecer, eu pagava do meu bolso. E em troca dessa hospitalidade sempre recebi gente em minha casa, tanto compatriotas como forasteiros, quem quer que fosse, até encher todo o átrio, todos os quartos e o jardim inteiro. E sobre mulheres... O jovem percebe.
– Por acaso não, ou certamente não tanto como o senhor.
– Percebe, percebe... Ele pensa que me engana... – disse o jogador, de novo diretamente ao Bernardo, a piscar o olho como se o Eduardo não tivesse ouvido o comentário.
– A sério que não, palavra de honra! Mas continue. Não pode deixar uma história assim a meio. – riu-se o Eduardo.
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Era como se ele tivesse perdido a vida toda em busca daquele templo recôndito, e agora, tendo-o encontrado, não sabia o que fazer dele. As árvores monumentais cercavam-no, a própria floresta tinha vida própria e obedecia aos desvarios do vento. Quando ele deixou de avistar o fundo da escadaria apercebeu-se de que lhe fora negada a promessa de qualquer retorno. Foi consumido por uma ansiedade profunda, uma aflição que talvez tinha antecipado antes, mas que agora que chegava fazia-o sentir-se completamente despreparado e impotente, com aqueles fragmentos estilhaçados nas mãos como prova do seu grande crime. Escaparam-lhe as forças e se tentasse dar mais um passo iria cair num nada sem fim. Mas apesar disso, e com uma determinação que não era inteiramente sua, ergueu-se e deu mais um passo em frente... Mas um outro alguém apareceu, um vulto que marchava em passos fortes, com uma presença tão assertiva que nem sequer o olhou de soslaio. Usava uma armadura dourada, perfeitamente esculpida por um artífice talentoso, mas decididamente corrompida pela violência do tempo. A sua cara estava ocultada por um capacete do mesmo ouro e adornado por uma crista de vermelho rubi. Ele continuou desimpedido, com o tilintar da sua armadura a ecoar por aquela cúpula no fim do mundo, a percorrer aqueles degraus que não fizeram mais do que recolher poeira na promessa do seu regresso. Porque ninguém estivera ali durante mil anos... O soldado regressava a casa.
O pôr do sol veio de repente. O soldado aproximou-se da mulher como se a cada passo o sol se extinguisse para sempre. Ele removeu o capacete e, depois de uma hesitação, olhou para ela. Não se reconheceram, tinha passado demasiado tempo desde o último encontro. E no entanto, apesar de serem estranhos, eram a mesma pessoa. Então foram relembrados de algo que os unia, algo maior e simplesmente complementar, e as suas caras, tão abstratas, tornaram-se familiares. Abraçaram-se, e o ar ameaçador daquele soldado, a sua força, o seu cansaço, toda a brutalidade do seu passado, tudo isso foi dissolvido pela delicadeza daquela mulher. E por um momento, o soldado foi inocente. Encostaram a testa um ao outro, ele fechou os olhos e não acreditou na doçura do regresso. Era bom demais para ser verdade. Mas durante aquela breve união o vestido da mulher começou a prolongar-se como se vertesse, melífluo e infinito, a tingir aquela escadaria de seda vermelha. Ali distante, a meio da escadaria, ele esperou, ansioso que uma ponta do vestido chegasse a si. Ajoelhou-se para a segurar por entre os dedos e imaginou de que antiguidade esquecida teria vindo aquele tecido... O casal lançava-lhe um olhar inexpressivo e cada vez mais esbatido, como se estivessem debaixo d'água. Foi então que o céu escureceu, a lua brilhou tão perto, e o Bernardo acordou.
Ele permaneceu deitado mas sem qualquer intenção de voltar a adormecer. Sentia uma náusea peculiar, mas ao encontrar a luz do sol a esgueirar-se pelos limites da janela apercebeu-se de que era de manhã e então a náusea aligeirou-se. No entanto, ele estava sozinho. Ela tinha ido com a lua. Se ela ainda ali estivesse talvez ele ter-lhe-ia contado o seu sonho, mas quando imaginou a conversa notou que o início dele o iludia. Já não se lembrava de como o sonho começara nem do seu significado, que no momento lhe fora tão vívido, mas surgia-lhe agora como as ondulações que ficam no cais quando um barco parte. Tentou relembrar-se mas a neblina pairava na sua mente. Não valia a pena... Ergueu-se e abriu as cortinas para encontrar uma manhã de verão que se espraiava pela rua. O sol aquecia os passeios, o céu prometia nunca mais trazer a chuva, as árvores de folhas ainda verdes agitavam-se calmamente com a brisa, e os pássaros faziam-se ouvir, mesmo através do vidro. Ele abriu a janela e contemplou a sua rua como se fosse parte da sua casa. A brisa chegou-lhe à cara e quando passou levou consigo o que restava daquela náusea. Então ele parou por um momento, a respirar fundo e de olhos fechados, como se estivesse cheio de pensamentos filosóficos e profundos quando na verdade não pensava em nada. Ficou apenas com aquele alívio de acordar depois de um sonho estranho para descobrir que afinal o mundo normal ainda existe... O dia era de possibilidades, tudo estava bem com o mundo.
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