Em continuação com o meu artigo anterior, comprometo-me agora a uma interpretação de um outro poema do mesmo poeta... mais ou menos. Porque os vários heterónimos pessoanos são todos iguais e diferentes, e diferentes e iguais. Qualquer leitor encontra temas recorrentes nos vários poemas porque de certa forma todos estes poetas se propuseram a resolver as mesmas questões que tanto atormentavam o poeta original. Mas a solução encontrada por Alberto Caeiro é algo diferente na medida em que é quase invejável ao próprio Fernando Pessoa, ainda que talvez não seja invejável aos outros heterónimos. Por outro lado, talvez eu esteja a projetar porque em tempos esta poesia foi deveras invejável para mim. Ao contrário do poema anterior, do qual nem sequer tinha memória de ter lido e apenas sei que o li porque anotei marcas e sublinhados na margem da página, este poema é um que li, que gostei e que apresentei numa aula qualquer num dia que me vem agora à memória como idílico. Mas em típico estilo de Alberto Caeiro, não me lembro de nada racional do que disse sobre o poema nessa tal aula... Só me lembro dos versos, lembro-me da última estrofe em particular, e como com todas as boas memórias, mais do que meramente um tempo ou um lugar, o que me recordo é de uma sensação... Há algo na simplicidade deste poema que parece ter a sua própria luz, não num sentido metafórico de sabedoria ou de revelação, mas sim num sentido literal de calor... Então o que é que estou a dizer aqui? Acho que, mais do que interpretar, o meu objetivo com este artigo talvez seja recordar, até porque em muitos aspetos os versos de Alberto Caeiro falam por si.
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
É engraçado que o poeta afirme ser um guardador de rebanhos no primeiro verso, tendo em conta que no primeiro verso do primeiro poema que constitui esta coletânea ele diz precisamente o oposto. Mas a aparente contradição é logo resolvida pelo simples facto de que os rebanhos não são animais... são pensamentos. Assim, continuando com a analogia do pastor, este poeta está em pleno controlo dos seus pensamentos, é ele que os cria e os mantém e os deixa sair quando quer. O próprio Pessoa, e talvez mais agressivamente o Álvaro de Campos, são o exato oposto disto, ou seja, os seus pensamentos são impossíveis de controlar, e são esses pensamentos que os impedem de experienciar as sensações, os poetas é que são os rebanhos a seguir a vara e o cajado dos pensamentos. Mas Alberto Caeiro, para além de estar em pleno controlo dos seus pensamentos, nem sequer precisa de se esforçar muito para os controlar, até porque a sua solução para a eterna dicotomia do sentir e do pensar é derrubar a muralha entre ambas e construir uma ponte sobre as ruínas. Para este poeta, sentir e pensar não são uma dicotomia em constante conflito, são antes uma e a mesma coisa. Assim, o maior desejo do próprio Pessoa está alcançado – a capacidade de viver sem um único pensamento inquietante. Porque viver de qualquer outra forma é uma ansiedade permanente, é pensar no mesmo problema vezes sem conta, é tentar adormecer com o barulho de conversas desagradáveis na cabeça, é não conseguir deixar de pensar nas implicações daquela notícia do jornal, é estar atento aos maiores mistérios do universo e ficar desapontado quando os seus segredos afinal não são mais do que silêncio, é ter receio da morte e medo da vida...
A grande revelação é que para Alberto Caeiro nada disso importa. Ele é um verdadeiro mestre das sensações porque as sente de imediato com o próprio corpo, e a sua mente não é mais do que uma faceta do seu corpo. É tudo físico mas com tanta naturalidade que é quase espiritual. E além disso, trata-se de um aparente regresso à natureza, uma descoberta de cada sensação simples como que da primeira vez, algo que talvez seja mesmo. Será que passar pelo mesmo caminho todos os dias é passar pelo mesmo caminho todos os dias? Os dias são iguais mas diferentes, e o caminho? Talvez a sua mudança seja menos óbvia do que o eterno fluir de um rio ao estilo de Heráclito, mas não será o mesmo princípio? Tanto quanto sabemos a terra pode ser diferente a cada dia, arrastada pela chuva e pelo vento que por sua vez faz dançar as ervas de maneira diferente. Será possível que haja dois dias diferentes em que a terra pela qual passámos foi exatamente a mesma? Em que o vento soprou exatamente do mesmo jeito? Em que o sol nos chegou aos olhos exatamente com o mesmo calor e tivemos os mesmos pensamentos à mesma hora e ao mesmo momento?... O poeta nunca se aborrece com as sensações porque elas são todas diferentes... mas é preciso uma espécie de sabedoria infantil para saber disso.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Com estes versos, a inocência da filosofia de Caeiro, mais do que cantada, é simplesmente dita, e não há explicação mais extensa ou necessária do que dois versos. A única forma de pensar nas coisas simples do mundo é captá-las através dos sentidos, que são a nossa mais natural e imediata ligação ao mundo. O resto, aquilo que é relativo ao intelecto e à filosofia, é tudo um emaranhado de confusões e de conceitos. Dito em termos populares, são tudo palavras caras. A verdade mais imediata, e talvez por isso a única verdade incontestável, é conhecer o mundo através dos sentidos e não esperar dele um significado mais profundo do que esse. Para quê querermos tantas respostas tão complexas quando na verdade o mundo é tão simples? Para quê insistirmos em respostas definitivas quando em crianças queremos saber mais das perguntas do que das respostas?
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
E surge então a terceira e última estrofe deste nono poema na coletânea. O primeiro verso faz-me logo relembrar um dia de verão que, como é natural a este poeta, é descrito como um dia de calor, apelando à sensação mais do que ao calendário. E agora fico eu com uma sensação semelhante porque ao reler essa estrofe sou relembrado de fragmentos de dias passados, talvez sem qualquer relação real à memória de descobrir este poema, mas que agora ficam para sempre associados um ao outro pela mera sensação. E é curioso notar que Alberto Caeiro não é imune à melancolia, porque esta ideia de se sentir triste no final de um dia bom, essa sensação quase receosa e tão humana, também o afeta. Mas ele logo a refuta, simplesmente não se deixa consumir por ela, não deixa que a tristeza desça sobre si como a noite. Então ele estende-se na erva, algo que o Fernando Pessoa talvez não seria capaz de fazer, e o Bernardo Soares muito menos, e apenas desfruta daquilo que lhe resta do sol naquele dia feliz.
Então a verdade é simplesmente estar ali, deitado na erva que é estar deitado no mundo que é estar deitado na realidade. Não há mais epistemologia do que isso. E em grande eloquência, o poeta inclui uma rima bonita nos últimos dois versos, só que, em vez de terminar o poema assim, algo que seria mais tradicional, ele termina antes com uma simples declaração da sua felicidade, algo que encerra o poema de forma muito mais eloquente do que a rima. Aliás, e quase como se a rima em si fosse um acidente, e terminar o poema com a sensação de felicidade foi sempre o objetivo original. E assim, saber a verdade é para ele algo tão simples como sentir a felicidade que, mais do que uma sensação como todas as outras, não é algo que o poeta meramente sente... é algo que o poeta é.
Comments
Post a Comment