Dos três heterónimos, Álvaro de Campos é o mais estranho e talvez o melhor. Se eu tivesse de tecer um perfil psicológico, diria que a poesia deste heterónimo representa o lado mais profundo e agressivo do homem real. Em certos aspetos o próprio Fernando Pessoa foi um homem introvertido, talvez não necessariamente tímido, ou talvez sim, mas foi um homem que pensou muito mais do que aquilo que disse, e sonhou muito mais do que aquilo que fez, w foi um homem cuja manifestação no mundo ficou sempre aquém dos seus pensamentos sobre o mundo. Então foi em Álvaro de Campos que ele encontrou a válvula através da qual conseguiu libertar todos esses pensamentos, em grande fúria e violência. Esses adjetivos remetem logo para poemas como a Ode Triunfal e a Ode Marítima, poemas cujos versos mais, digamos, curiosos, talvez justifiquem que nos manuais de português os poemas apareçam incompletos... Isso foi algo que eu só descobri na universidade, a ler Fernando Pessoa quando devia estar a ler coisas sobre o meu próprio curso, e senti-me como um verdadeiro académico a descobrir algo que me fora até então ocultado.
Estou outra vez a divagar, este poeta sempre me fez divagar... Mas também talvez deva divagar com a minha interpretação deste poema, e até com qualquer interpretação de Campos em geral. Porque na minha opinião, mais do que o estilo propriamente dito, a grande qualidade da poesia de Campos é justamente a sua liberdade. Parece-me que os seus versos surgem com uma força completamente livre, um fluxo de consciência que possuiu a caneta do poeta, que revelou os versos na página ainda antes que a tinta os revelasse. E talvez por isso é que quando penso em Campos penso sempre no Livro do Desassossego... Porque os seus vários estilos de escrita, as suas metáforas impulsivas e bizarras, os seus fins abruptos, as suas deliberadas quebras de gramática, tudo isso são semelhanças que julgo encontrar em ambas as obras, o que me leva a concluir que Campos é de facto o heterónimo mais próximo do homem original.
Por último, porque é que escolhi o poema que escolhi? Ocorreu-me escolher outros poemas quaisquer, outros mais breves que me facilitassem a vida em termos de transcrição e interpretação, ou poemas até menos conhecidos para que este artigo fosse mais original. Mas há um motivo pelo qual Tabacaria é dos poemas portugueses mais famosos de sempre. Por isso, eis a minha interpretação dele, para quem a quiser.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
O início do poema é icónico – todas as melhores palavras começadas por N, tão omnipresentes na fase decadentista de Campos e no Livro do Desassossego... O poeta nega a sua própria existência, presente ou futura, ele simplesmente não se reconhece no espelho tal como não se reconhece no mundo. É como se essa primeira estrofe descrevesse instintivamente e plenamente o estado de espírito do poeta nesse preciso momento, ou seja, ele sente que não é nada num sentido que se possa chamar de real mas está cheio de algo irreal, ou seja, está cheio de sonhos. Esse último verso é frequentemente citado sozinho e referenciado como uma frase bonita, uma frase de inspiração, mas eu não o vejo assim. A ideia de o poeta ser um sonhador não me surge aqui como algo bom, surge-me mais como uma frustração, uma ânsia nascida do facto de as ambições e as fantasias do poeta não corresponderem ao mundo. Ter sonhos talvez seja meramente a fantasia com a qual o poeta se contenta perante o vazio da sua existência, ter sonhos é a única forma que o poeta tem de não ser nada. Porque quem está cheio de sonhos está vazio de vida.
A segunda estrofe, em contraste com os sonhos do mundo, insere o poeta num local real do mundo, um local que para ele é tão especial por ser o local onde ele se encontra, onde ele existe, aludindo à prisão do solipsismo. Mas visto de fora, esse lugar é só mais uma das muitas janelas do mundo, iguais a todas as outras, anónimas e vazias de vida mesmo que alguém lá viva. Ele senta-se no seu quarto a observar a rua movimentada com toda a naturalidade de um dia qualquer, um dia em que toda a gente saiu à rua para cumprir os seus deveres, mas o poeta pensa nessa naturalidade como um grande mistério. A vida normal simplesmente não lhe faz sentido, os seus pensamentos não chegam àquela rua, juntar-se aos outros transeuntes é-lhe quase impossível... E nos últimos dois versos, o poeta associa a vida naquela rua à morte, que numa metáfora recorrente em Fernando Pessoa, é descrita como humidade crescendo pelas paredes, uma imagem feia de uma morte lenta que tudo corrói, um processo absolutamente inevitável... Porque ninguém foge ao destino, aquela força perpétua descrita com a típica eloquência presente em toda a obra pessoana, esta justaposição de opostos representando toda a gente com as suas vidas aparentemente cheias e ocupadas e reais mas que na verdade são todas vazias... Afinal, como é que pode haver sentido em ir à tabacaria num qualquer dia da semana se não há sentido na existência do próprio mundo?
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Às vezes a verdade é feia, e às vezes só há uma verdade e ela é feia. O poeta reconheceu a verdade e neste dia resignou-se a ela. Talvez nada valha a pena, e essa resignação perante a vida vem-lhe à mente com uma simples lucidez, um daqueles momentos de verdade em que não fazer nada é tudo o que nos faz sentido. Se o poeta quer sentir as coisas então talvez neste dia não consiga, e a esse propósito a ideia de irmandade é deveras reveladora, é um termo porventura mais forte do que qualquer outro, mais do que mera apreciação ou interesse... Falta-lhe a capacidade para simplesmente se relacionar com o mundo. Ser normal é-lhe um grande impossível.
Mas se ele não tem irmandade tem pelo menos lealdade. A tabacaria que ele observa da sua janela torna-se objeto do seu interesse e gradualmente torna-se o tema central do poema, algo que de certa forma não terá sido sempre o caso, uma vez que o título original para o poema era Marcha da Derrota. Era portanto um título muito mais verboso e pessimista, mais coerente com o estado de espírito do poeta. Mas essa mudança de título, mais do que icónica e eloquente, é simbólica.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
O primeiro verso é reminiscente dos versos que iniciam o poema. É dotado de um certo fluxo de consciência, um deslize da caneta, uma simples afirmação decisiva e universal. Porque se o poeta falhou em tudo, então entrar em detalhes sobre os seus falhanços é insignificante. A sua vida não teve sentido, e uma vida sem sentido talvez não seja vida nenhuma. Até os seus conhecimentos, a sua maior fonte de conforto e segurança no mundo, não lhe serviram de absolutamente nada. A revelação de este poeta ter visitado o campo e não ter encontrado qualquer valor na natureza parece colocá-lo em direta oposição a Caeiro, aquele que resolveu a sua inquietação metafísica, se alguma vez a teve, com as simples belezas da natureza. Mas para Campos é tudo igual. O mundo ou é feio ou é vazio, mas mais do que tudo, nada faz diferença. Os seus grandes propósitos morreram com cada desapontamento. E então ele cansa-se de olhar pela janela.
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas –,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
No início desta longa estrofe, o poeta, depois de tentar encontrar algo em que pensar, parece tentar pensar em si mesmo, até porque uma mente introspetiva, quando solitária, não tem nada que fazer exceto pensar, mesmo quando, mais do que pensar, devia viver. Mas pensar em si mesmo é em simultâneo tudo o que ele consegue fazer e algo que ele simplesmente não consegue fazer. Porque o poeta não sabe quem é, o que é, ou quantos é. E para ele não há grande diferença entre um génio que influencia toda a história da humanidade e um louco preso num manicómio. Se há alguma diferença entre um e o outro então ele não a encontra. Talvez as paredes do seu quarto sejam o seu manicómio privado, e a história do mundo não seja mais do que os cidadãos que entraram naquela tabacaria naquele dia. Até porque é a eles que pertence o mundo, o mundo é de quem tem força para o querer. A esse propósito o poeta evoca três homens imortalizados na história pelos seus grandes feitos, e dos três nomes, o mais interessante é o de Cristo, porque anteriormente o poeta referiu já não ter irmandade com as coisas. Este verso parece ser então revelador da intensidade de sentir de Campos, este poeta que tentou sentir tudo de todas as maneiras mas que neste dia ficou exausto. Ele morreria pelo mundo com a mesma intensidade com que quer sentir o mundo... Mas sentir ele não consegue, e em dias desses nem morrer vale a pena.
Nos versos seguintes eu julgo confirmar a minha interpretação relativa à tristeza que é alguém ter em si todos os sonhos do mundo. O poeta considera-se algo elevado em imaginação, mas todos os seus grandes feitos são sonhados, são quimeras, e mesmo assim, são imbuídos de uma ironia mordaz. Porque ele proclama ter ouvido a voz de Deus, elevando-se a um profeta, mas numa reviravolta pessimista, conta que apenas ouviu a voz num poço tapado, uma voz cheia de ecos estranhos e impossíveis de compreender, uma voz vinda de um lugar feio e sujo... E então a vida toda passou-lhe ao lado, o poeta esperou que lhe abrissem a porta numa parede sem porta assim como esperou que lhe destapassem o poço de onde vinha a voz de Deus. Ou perdeu a vida toda à espera de uma grande oportunidade ou até essa oportunidade foi uma ilusão. Talvez ninguém viria para abrir a porta impossível ou destapar o poço divino, ninguém pararia no meio da rua para ajudar o poeta... O poeta não acredita em si mesmo, o poeta não é nada.
A sua vida é vazia mas cheia de sonhos. Naquele intervalo entre o acordar e o sair da cama, o mundo é todo dele. Mas o ato de sair da cama faz com que o poeta caia na realidade de uma só vez. O mundo deixa de lhe fazer sentido, torna-se tudo estranho e estrangeiro. Nos momentos de tristeza, um sonho febril tem mais lógica do que o mundo inteiro, e acordar a meio da noite para vomitar é estar vivo. Ter em si todos os sonhos do mundo é querer dormir para sempre.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão como tenho deitado a vida.)
Esta é talvez a estrofe mais bonita e mais curiosa de todo o poema. Pessoalmente, eu gosto de interpretá-la como um aparte, um aparte irresistível. Presumo que o poeta tenha hesitado depois da estrofe anterior, levantou-se da cadeira e deambulou pelo quarto até que, ao olhar de soslaio pela janela, avistou uma criança a sair de uma loja, talvez até da própria tabacaria, tão ansiosa por comer uns chocolates acabados de comprar. E a simplicidade de comprar chocolates e de ficar feliz com isso causou ao poeta uma inveja bonita, o tipo de inveja de quem também quer mas, sabendo que nunca pode ter, deixa apenas que os outros fiquem felizes. Porque comer chocolates é metafísica, o resto que se diz da metafísica é irrelevante, e as religiões, se ensinam a viver no mundo e a ser feliz, então não ensinam mais do que comer chocolates... E é isso que o poeta quer mas, sendo tão incapaz de o alcançar, compara a sua vida a alguém que compra um chocolate, o retira da folha de estanho e perde logo o apetite, porque ter apetite também não vale a pena. A vida do poeta é uma folha amachucada no chão da cidade, e um chocolate caído que devia ter sido oferecido a alguém mais merecedor.
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Se da vida do poeta não resta nada, se ele não é Napoleão, nem Cristo, nem Kant, então restam só os versos, mesmo que ninguém os venha a ler ou a compreender, versos que são minimizados pelo próprio autor como mera caligrafia rápida, linhas escritas à pressa, coisas registadas só porque sim como o resto da sua vida foi negada só porque não. Ele despreza os seus próprios versos e despreza-se a si mesmo, mas encontra pelo menos alguma nobreza no facto de não chorar por si mesmo. Despreza-se mas não comisera, e talvez isso seja uma pequena vitória. Mas se é, então o poeta não celebra. Ele continua com as metáforas mordazes, desta vez a identificar-se com roupa suja na qual haverá talvez mais humanidade do que nele próprio.
E o seu coração é um balde despejado... O poeta procura inspiração onde não pode haver inspiração, exceto talvez para a mestria de metáforas devastadoras. O poeta é vazio, o mundo não é nada... O poeta fica com vontade de regressar à janela e então ele vê a rua com uns olhos que poucos transeuntes seriam capazes de compartilhar. Porque eles simplesmente vivem no mundo, aceitam tudo uma coisa de cada vez e sem pensar muito nela. Mas o poeta está condenado a pensar em tudo, a analisar tudo, a deter-se com o porquê de tudo. E embora tudo exista e lhe chegue aos sentidos, nada lhe chega ao entendimento. A sua própria pátria é estranha, e não haverá lugar no mundo onde ele se sinta em casa... E a beleza da língua portuguesa nos seus versos é só caligrafia.
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Este primeiro verso é engraçado porque parece de alguma forma negar todas as negações que o poeta fez de si mesmo. Aqui ele afirma ter cumprido as quatro grandes ações que uma pessoa deve cumprir ao longo da sua vida, mas ainda assim a sua vida é vazia, tão vazia que ele até inveja os mendigos... Porque talvez a vida dos mendigos traga mais sofrimento do que a do poeta, mas se houver algum significado nesse sofrimento então certamente que valerá a pena. Os mendigos parecem dotados de uma força incrível para perseverar e sobreviver, algo muito contrário ao poeta que imagina a única possível existência feliz como a cauda de um lagarto que, depois de ser removida não vive, remexe-se apenas. E essa é uma das imagens que tanto nos faz adorar o poema, é toda esta força e honestidade das metáforas, tudo coisas feias que vieram à mente do poeta num verdadeiro momento de tristeza, e que por isso são bonitas.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Esta ideia de máscara é algo que parece aproximar este heterónimo do poeta original. A ideia de multiplicidade do eu aparece aqui com uma intimidade maior do que em Reis por exemplo, e não me recordo de essa ideia sequer aparecer em Caeiro. Talvez seja por isso, assim como pela fama do poema em si, que Tabacaria seja livremente atribuído ao nome de Fernando Pessoa. A dada altura há uma continuidade entre todos os heterónimos, ecos nos versos de cada um, rimas na filosofia do verso mais do que nas sílabas, e esta é uma delas. O poeta nunca se conheceu até que chegou o dia em que teve de se procurar e não se encontrou. Depois perdeu-se até que se resignou a descansar à porta de uma loja qualquer, a receber restos de misericórdia da parte dos donos apenas por não ter mais onde ir, e só não o matam por ele não incomodar ninguém.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas com tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Agora, tão perto do final do poema, o poeta volta a sua atenção de novo à tabacaria, nomeadamente ao dono dela que o poeta é incapaz de ver como um homem da sua cidade. Vê-o apenas como, citando uma metáfora pessoana, um cadáver adiado que procria, um homem vivo que um dia morrerá. Qualquer sinal de vida, qualquer ação de qualquer transeunte, qualquer movimento na cidade, qualquer manifestação de vida, tudo isso leva o poeta a concluir que a morte é a única certeza na vida. Aquele homem que está mesmo ali vai um dia morrer, a sua tabacaria vai morrer, tudo o que compõe aquele pedaço do mundo vai um dia morrer, o próprio poeta vai morrer, a sua carne, as suas coisas, os seus versos... Se o mundo é temporário então tudo no mundo é temporário. Não há nada que não seja contingente, não há nada que não seja secundário ou irrelevante, não há ninguém no mundo que possa afirmar não ter tempo porque o próprio tempo vai um dia acabar.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
Agora acontece algo de estranho – o poeta parece ganhar algo que se assemelha de ambição. Não sei ao certo que palavra usar, não posso dizer felicidade, nem sei se posso dizer vontade de viver. Não sei o que o poeta sente mas o mais imediato parece ser que, ao ver um homem presumivelmente agir no mundo com uma simples compra de tabaco, o poeta ficou com vontade de fumar também. E então, em algo que hoje em dia não seja talvez tão esteticamente comum ou moralmente aceitável, ele acende um cigarro e experiencia-o numa espécie de devaneio filosófico. O cigarro traz consigo um sabor que exige a atenção do poeta de tal forma que o resto dos seus pensamentos desaparecem com o fumo. Porque a vida na cidade passa sem parar, a humidade nas paredes cresce inevitavelmente, e o fumo do cigarro não é diferente, é só mais uma metáfora para o passar do tempo.
E de forma que poderia fazer lembrar Alberto Caeiro, o poeta rejeita a metafísica e todos aqueles pensamentos inquietantes que caracteriza como resultado da má disposição, algo que desde que viu o homem entrar na tabacaria parece estar a melhorar. Ele sente-se porventura relativamente bem, quase como se o pessimismo anterior estivesse agora a passar. Então ele relaxa na sua cadeira e propõe-se a continuar a fumar enquanto puder, algo que com alguma ironia, parece ser sinónimo de viver, ainda que de forma bastante passiva, aquela característica típica do ato de olhar pela janela com um pensativo cigarro por entre os dedos.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
Mais um aparte, semelhante ao da pequena dos chocolates. Desta vez o poeta não estava à janela, por isso a memória da filha da lavadeira parece ter sido um momento proustiano que o sabor do cigarro lhe trouxe, libertando no poeta não só uma memória mas também uma possibilidade de um futuro feliz, um futuro que, questões de heteronímia à parte, nunca se concretizou. Mas é um momento deveras revelador, esta coisa de entreter uma fantasia de casar com uma mulher que pela sua simplicidade talvez fizesse o poeta feliz. A pequena dos chocolates, os clientes da tabacaria, a filha da lavadeira, e a ceifeira do outro poema também... Tudo gente tão simples que o poeta tanto inveja...
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Ele fica à janela a observar o mesmo homem com muita atenção, e quando o vê sair reconhece-o como um tal Esteves que, por não ter metafísica também não deve ter inquietações. Depois, naquilo que o poeta descreve como uma espécie de ato de Deus, esse tal Esteves olhou exatamente para o poeta num daqueles gestos que às vezes fazemos quando o vento nos sopra nas orelhas em jeito de convite. Então o Esteves olhou, reconheceu o poeta e acenou. O poeta, numa reação que não lhe parece característica, gritou-lhe adeus. E então, coisa estranha, essa breve interação trouxe-lhe uma nova vida, uma espécie de consciência de que, mesmo que a vida não lhe faça muito sentido, e mesmo que não tenha esperança que a vida um dia lhe venha a fazer sentido, ele ficou feliz. E talvez mais importante ainda, o dono da tabacaria ficou feliz por o poeta fingir estar feliz.
E chegando agora ao fim, começo mesmo a pensar que este poema é mais do Fernando Pessoa do que do Álvaro de Campos... Os ecos do poeta original vão surgindo quase que num crescendo, e esta mistura de descrições do estado de espírito do poeta com descrições mundanas dos seus arredores são reminiscentes do Livro do Desassossego. Faz-me pensar que os eventos aqui descritos foram todos reais e, ainda que tão mundanos e insignificantes, ainda que a pequena dos chocolates tenha pensado em mais coisas além de chocolates, ainda que a filha da lavadeira não quisesse casar com o poeta, ainda que no dia seguinte o Esteves sem metafísica nem se lembrasse de ter acenado ao poeta, ainda que o dono da tabacaria estivesse a sorrir por outra coisa qualquer... mesmo que tudo isso não tenha significado nenhum, a verdade é que, ironicamente, teve muito significado. E é daí que vem a importância da mudança do título. O poema começou como um impulso para escrever tristezas e melancolias, tudo coisas feias, mas, como é missão da arte e como sempre foi natural ao próprio Fernando Pessoa, toda essa tristeza foi transformada na beleza imortal de uma tabacaria em Lisboa... Porque o mundo é os detalhes, e o autor deste poema imortalizou os detalhes daquele momento e daquele cigarro em versos que, mesmo que venham um dia a desaparecer deste mundo, ainda não desapareceram... E isso é tão verdade como comer chocolates.
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