Este poema também foi fácil de escolher, mas não necessariamente pela beleza dos versos em si. Desta vez escolhi-o simplesmente porque a terceira estrofe trouxe-me um momento proustiano, ressuscitou-me uma memória há muito perdida mas nunca completamente esquecida. E como além de meramente escrever aquilo que me vai na cabeça também ocasionalmente escrevo para relembrar, posso dizer que a missão foi cumprida. Na verdade toda a poesia de Fernando Pessoa, e talvez toda a poesia em geral, funciona um bocadinho assim, ou seja, é muito fácil esquecer os versos, mas sempre que regressamos a eles, até mesmo vários anos depois, somos relembrados de tudo imediatamente, num só momento que enche uma fração de segundo com mais memórias do que cabem em dez anos... Quanto a mim não passaram dez anos desde a última vez que visitei este poema, mas por acaso passaram sete. Isso até custa dizer, custa acreditar que passou assim tanto tempo... Escrevi dez na frase anterior só por soar bem usar um número redondo, mas depois fiz as contas e vi que o número real não lhe fica longe. Mas talvez possa alicerçar sobre esse detalhe toda a filosofia de Ricardo Reis, para quem o tempo corre como um rio, para sempre, um rio cujas águas não faz sentido perseguir nem relembrar com muita força depois de passarem. Porque a cada momento estamos mais velhos, mais próximos de uma foz que, tanto quanto sabemos, pode até nem existir. E se estou hoje mais próximo dessa foz do que estava há sete anos atrás nesta minha memória acordada por este poema, então estou também sete minutos mais próximo do que estava quando comecei a escrever isto.
A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos e ramos secos.
O frio leve treme.
O poema começa com uma descrição eloquente da natureza. Em Caeiro também temos muito disso mas a sua eloquência é muito diferente, é mais simples e direita, mais leve e, no melhor sentido do termo, completamente desinteressada. Em Reis notamos logo uma eloquência mais tradicional, mais literária, conseguimos ver, quase que só a olhar para a forma das estrofes, que o que os versos foram muito meditados antes de serem escritos, e foram bem tratados depois de terem sido escritos. Numa palavra, uma página de Caeiro seria de uma caligrafia descuidada num papel encorrilhado, muito como o trabalho de casa que fazíamos sobre os joelhos quando nos sentávamos à porta da sala antes que a professora chegasse. Por outro lado, uma página Reis seria cuidada, num papel limpo e liso, preenchido com versos cuja cara demonstra todo o tempo que foi preciso para que nascessem. Aqui esses versos são justamente uma descrição daquilo que o poeta viu à sua volta, todo o fenómeno do dia ligeiramente dourado por um sol de inverno, um sol frio mas talvez não tanto como os dias que inevitavelmente se seguem. Vemos então um último desfrutar do sol antes do inverno que o esconderá, ou seja, é um último desfrutar de algum conforto leve trazido por uma memória antiga, antes que se dê o seu inevitável esquecimento.
Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses
Aqueço-me trémulo
A outro sol do que este –
Nada é para sempre, nem mesmo o passado, mas é precisamente a ele que o poeta quer regressar. E não é só um tempo passado que o chama, é também um lugar – a Grécia Antiga. Já é conhecida a afinidade que Reis sempre teve para com esse tempo da história, o berço de metade da civilização ocidental e de toda a filosofia, mais concretamente o berço do estoicismo e, como já veremos, do epicurismo, estas filosofias de ética que Reis sempre quis praticar. Aceitar o destino tal como ele é e procurar viver uma vida de prazeres moderados são essencialmente os dois pontos centrais de toda a poesia deste heterónimo, trata-se de procurar uma plena e absoluta neutralidade. Por um lado isso soa bem mas parece assentar-se num aspeto inerentemente negativo porque pressupõe que tudo de bom acaba e que muitas vezes acaba mal, o que é verdade, mas que precisamente por isso mais vale nem ter nada sequer, o que é questionável... Então Reis procura ser feliz no único lugar onde se sente confortável, imaginando na pele o calor de um sol impossível, o calor de uma Grécia que nem na realidade existiu porque não existem os deuses. Se Reis acredita mesmo neles ou não isso nem interessa muito, é mais como se acreditasse no que quisesse mas deixando-se permanecer ciente da realidade alternativa cujo sol ainda o faz tremer. E como tudo é melhor na imaginação do que na realidade, também esta Grécia não foi na realidade tal como ele a imagina, porque o sol de uma fantasia é sempre frio.
O sol que havia sobre o Pártenon e a Acrópole,
O sol que alumiava os passos lentos e graves
De Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhor
Chego agora então à estrofe que me fez escrever sobre este poema, a única estrofe da qual me lembrava, ainda que muito ligeiramente. O contexto geral disso, os meus tempos de universidade, tem sido mais ou menos aludido gradualmente, tanto aqui como nos ensaios anteriores sobre Fernando Pessoa, e a este propósito especificamente relembro que escrevi um ensaio sobre Epicuro para o segundo módulo de filosofia antiga, e decidi citar esta terceira estrofe. Se como epígrafe, se como epílogo, já não sei, já há muito que me desfiz do ensaio, mas ainda não me desfiz da memória que tenho dele. Uma outra que tenho a ela associada foi quando, no início do semestre, o professor nos perguntou um a um sobre qual seria o tema do nosso ensaio. Grande parte da turma foi respondendo Aristóteles, e com razão porque ele era o filósofo mais expediente de se estudar, mas eu escolhi diferente, e quando chegou a minha vez e respondi Epicuro, o professor sorriu. O motivo para isso foi simplesmente variedade, foi não ter de ler cinquenta ensaios iguais, mas o motivo para Reis é diferente, Reis parece reconhecer a importância que alguém como Aristóteles teve na história da filosofia, aqui obviamente representada pelo Pártenon aquecido por um sol de antigamente, um sol que já não aquece o mundo de Reis mas que aqueceu o mundo ao qual ele quer agora regressar. E se o favoritismo é dado antes a Epicuro é porque foi este que criou a filosofia que Reis adotou, esta aceitação calma do destino tal como ele nos é dado, não pelos próprios deuses mas pelo destino em si, que até aos deuses é supremo. Ser epicurista seria então imitar aquela que se entende como a característica principal dos deuses, e aquela da qual os seres humanos, no seu desespero existencial, mais carecem – o desinteresse.
Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno e vendo a vida
À distância a que está.
Nesta ultima estrofe, cuja sequência espero que não fique quebrada pela minha divisão, o poeta revela que é só através da filosofia epicurista que um homem tem a hipótese de se fazer deus, desde que consiga aceitar o destino tal como ele é. No entanto, isso parece oposto à natureza humana, que é contrária por si só, que é inquisitiva à maneira de Aristóteles, que quer sempre conhecer mais para fazer sentido do mundo. Mas se o mundo for irracional ou se não existir no mundo mais sentido do que ele próprio então toda a procura por sentido será fútil e decididamente irracional. Sobra então o epicurismo como fonte de uma tranquilidade que só o desinteresse pelo mundo nos pode trazer. Neste poema, não referente aos prazeres mas mais à aceitação do destino, Reis assemelha-se a Caeiro mas parece concluir esta inexistência do sentido do mundo de forma estritamente racional e quase que fria... Ou ele não parece inteiramente convencido e apenas tenta transparecer essa certeza, ou então parece quase pessimista, simplesmente resignado à verdade de que não há verdades. Enquanto que Caeiro aceita esta ideia com uma certa alegria quase que infantil e genuína, Reis é mais sóbrio, procurando elevar-se a um desinteresse pelo mundo que só pode vir de um Olimpo superior ao mundo, a partir do qual se vê o mundo em toda a sua glória, ou falta dela, ou sem nada de mau que lhe afete minimamente... O objetivo parece ser simplesmente viver além do mundo, o que fisicamente é impossível mas, pelo menos para Reis, não o é filosoficamente.
E agora quanto a mim perco-me a relembrar o que poderei ter escrito naquele meu ensaio sobre o Epicuro... Sei que tirei boa nota mas isso interessa pouco, sei também que não devo ter dito nada de particularmente interessante que não estivesse já escrito na famosa Carta a Meneceu que o meu professor imediatamente recomendou que eu lesse. À parte disso não me sobra dizer muito que não fosse uma repetição, faltando-me talvez dizer apenas que, se o mundo não tem mesmo um sentido além dele, se não podemos fazer nada mais do que, como diz o poeta, vê-lo à distância a que está, então talvez não valha mesmo a pena seguir pela via de Aristóteles. Mas também por outro lado, se a via de Aristóteles resulta, até porque parece de facto resultar, então torna-se muito difícil acreditar que não haja nada por detrás, que o mundo não tenha quaisquer segredos distantes mas alcançáveis... E se não há mesmo nada disso então talvez até valha a pena procurar na mesma.
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