Skip to main content

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido I – Do Lado de Swann”

Estou a ler Marcel Proust pela segunda vez... Há quem diga que é comum da parte dos seus leitores iniciarem uma segunda leitura logo após a tortura que é a primeira. Quanto a mim posso dizer que seja esse o caso. Quando li este primeiro volume pela primeira vez decidi que não tinha interesse em ler os outros seis, mas depois mudei de ideias e li-os. Mas li quase como que só para poder dizer ter lido. Então o objetivo seria não mais pensar no livro mas isso afigurou-se estranhamente impossível. Surgia uma crescente curiosidade em ler sínteses ou resumos e ficava-me sempre aquela surpresa depois de ler sobre um acontecimento do qual já não tinha memória. Por isso é que me proponho agora a uma segunda e muito, muito mais demorada leitura, para que possa compreender o livro pelo menos o suficiente para dizer qualquer coisa interessante sobre ele.

Em relação ao título deste artigo, do qual planeio fazer uma série, decidi usar o termo que usei porque nenhum outro me pareceu mais correto. Não tenciono escrever uma análise porque não sei analisar um livro desta extensão e estilo, não tenciono escrever uma interpretação porque não é fácil ler por entre as linhas de um livro de três mil páginas. E já agora, não sei ao certo qual é a diferença entre uma análise e uma interpretação... Também não posso dizer que este artigo se trate de uma crítica porque não faço questão de recomendar, ou não, o livro. Por esses motivos, uma meditação pareceu-me o mais correto, ainda que talvez soe estranho ou pretensioso. A verdade é de que, à maneira de Proust, não sei como escrever sobre este livro de outra forma do que pensamentos livres, quase que à sorte, muito à semelhança da memória.

“The Crimson Rambler” de Philip Leslie Hale

O próprio Proust descrevia Em Busca do Tempo Perdido como um livro que tem, nas suas palavras, a forma do tempo. Tanto quanto sei, a melhor descrição para essa breve sinopse é de que o livro está escrito da mesma maneira que a nossa memória relembra. Sempre que nos recordamos de uma memória antiga nunca a recordamos no início propriamente dito, até porque não pensamos no tempo de uma forma assim tão linear. Recordar não consiste numa história, consiste numa sensação. Se eu sair de casa amanhã e sentir o sol e a brisa exatamente do mesmo jeito que os senti nos meus tempos de universidade, não vou pensar exatamente no meu primeiro dia de universidade, vou certamente pensar num dia qualquer, num dia em que eu já conhecia aquela casa e aquelas pessoas, um dia em que o meu estilo de vida já era o meu quotidiano confortável. E depois claro, posso continuar a relembrar mais para trás ou para a frente, até ao primeiro dia ou até ao último. Mas pensar em trás, frente, primeiro e último não faz muito sentido. Afinal, o meu primeiro dia na universidade foi o último dia do meu verão, e mesmo que ao sair de casa eu me relembrasse do meu primeiro dia da universidade, eu não estaria a pensar no primeiro dia propriamente dito... Temos tendência a pensar no passado em fases porque torna-se mais fácil organizar cada momento num calendário mental. Mas a memória é diferente, na memória não há fases, há momentos. Não sei como fazer grande sentido disto exceto dizer que me parece fazer um sentido intuitivo.

Recordar é então o tema central em Proust. A vasta extensão do livro deve-se em parte porque o autor não sabia se queria escrever um romance, um livro de ensaios ou uma autobiografia. Na sua indecisão, ele optou pelas três. O livro é de facto um romance, pode-se dizer que tem um início, meio e fim, e conta-se a história do protagonista desde a sua infância até à idade adulta, quando os anos lhe começam a pesar nos ossos assim como na memória, e conta-se também as histórias do vasto elenco de personagens que o rodeiam. No entanto, há também um tom ensaístico que invade o livro. É muito frequente a narrativa ser algo interrompida por uma troca da primeira pessoa do singular para a primeira do plural, complicando a identidade do narrador que tanto divaga por entre devaneios sobre temas como a arte, a história, a política e a sociedade mas, mais importante, sobre a psicologia de cada personagem, detalhadamente capturada pelo autor, ou narrador, ao descrever as mais variadas idiossincrasias que todos temos. E, na minha opinião, além da beleza literária propriamente dita, é aí que o livro brilha.

Quanto ao teor autobiográfico, esse suscita divisões entre académicos. Por um lado há certas diferenças que separam a vida do autor da vida do narrador, e se a intenção de Proust fosse uma autobiografia, ele poderia não ter perdido assim tanto tempo com as outras personagens da história. Mas por outro lado, a primeira pessoa do singular percorre quase todo o livro. Aliás, algumas páginas da tradução inglesa estão cheias de traços... Para além disso, várias pessoas e momentos da vida do protagonista nasceram precisamente da vida do próprio Proust. Como síntese destas duas dinâmicas talvez se possa dizer que, de um certo ponto de vista, toda a arte é autobiográfica. Mas ser autobiográfica não é o mesmo que ser uma cópia. Talvez se possa dizer que, tal como a memória nos faz descobrir novas sensações de um passado antigo, também a escrita faz algo semelhante, nascida de uma eterna dança entre a realidade e a ficção.

§

COMBRAY I

Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se-me tão depressa que não tinha tempo de pensar: «Vou adormecer.»

Se alguma vez quiseste saber como é que se começa um livro de três mil páginas então não procures mais. É esse o início desta história de sete volumes, e a primeira sensação com que ficamos dela é de intimidade. O protagonista demonstra-se muito honesto e absolutamente disposto a partilhar a sua vida. É quase como se estivesse muito ligeiramente embriagado pela memória... E esta primeira parte do livro consiste essencialmente numa constante recordação. O nosso protagonista, agora algo idoso, parece estar deitado na cama mas, incapaz de adormecer, deixa-se pensar livremente, começando pela sua infância no local fictício de Combray, que afinal talvez não seja fictício... Esse lugar é baseado em Illiers, uma terra conhecida à família Proust, um lugar no qual o nosso autor passou a sua infância. E numa espécie de síntese hegeliana entre realidade e ficção, hoje em dia o lugar chama-se Illiers-Combray.

Arriscar-me-ia até a dizer que este primeiro segmento do livro foi aquele que o próprio Proust sempre quis escrever, aquele fragmento de autobiografia gradualmente transformado em ficção. Aqui o nosso protagonista, cujo nome o autor esconde propositadamente, pelo menos neste primeiro volume, inicia o seu monólogo interior. Os seus primeiros devaneios são sobre o ato de tentar adormecer, o ato de acordar a meio da noite e reconhecer o quarto à sua volta, ou de acordar e não saber onde está... É-nos imediatamente concedida toda uma intimidade com um protagonista que ainda não conhecemos mas que vamos ter mais do que tempo suficiente para conhecer ao longo dos sete volumes. E o mesmo acontece com as outras personagens. Proust não escreve no sentido tradicional no qual uma personagem, quando aparece em cena, é descrita em detalhe de uma só vez, num parágrafo que podemos fazer acompanhar de uma nota na margem. Em vez disso, os detalhes de cada personagem vão-nos sendo revelados ao longo de vastas páginas. Por isso, quando nos aparece um nome novo nunca sabemos bem se se trata de uma personagem à qual devemos ou não prestar atenção acrescida. O melhor então é mesmo deixar que seja o livro a ditar o ritmo. Não faz sentido ler à pressa à espera que “a história comece” porque este livro não é propriamente linear. A história não começa num sentido tradicional dividio em atos. Esta é uma história que, tal como a vida, simplesmente vai acontecendo.

Ao tentar adormecer, o protagonista é gradualmente consumido por pensamentos da sua infância em Combray, uma infância tranquila e sempre sob a vigilância dos seus pais e avós. Em criança, o protagonista foi sempre muito protegido, principalmente pela mãe e pela avó, tendo-se tornado dependente delas, algo que se revela ainda mais vincado no segundo volume. Mas a personagem que aqui nos aparece em maior relevo, se bem que, à exceção do título isso não seja óbvio, é Charles Swann. E o motivo pelo qual Swann, a personagem titular, aparece aqui descrito na infância do protagonista, é porque as visitas dele a casa da família obrigavam o jovem protagonista a ser enviado para a cama mais cedo e sem receber da sua mãe um beijo de boa noite.

Isso é algo que afeta profundamente o nosso protagonista que, numa tentativa frustrada, pede a Françoise, a criada, que entregue uma carta urgente à mãe, mesmo a meio do jantar. Mas isso é uma tentativa infantil e óbvia, e como tal, a carta não é respondida. Mas após Swann se ter despedido, o protagonista interceta a mãe no cimo das escadas, ainda tão desesperado por aquele beijo de boa noite. Ele teme uma reação do pai mas, curiosamente, não há nenhuma. O pai resigna-se e sugere que Françoise prepare uma segunda cama no quarto do filho para que a mãe lá durma. Isso porque as frequentes inquietações do jovem protagonista, aliadas à sua saúde débil, são sempre motivo de preocupação. Então a mãe acompanha-o no quarto e decide ler-lhe histórias até que ele esteja calmo o suficiente para adormecer.

Entretanto, naquilo que se pode dizer ser o presente, o protagonista continua a relembrar Combray e, no momento mais famoso do livro, naquilo que fez do nome do autor um adjetivo, ele consegue ressuscitar a Combray da sua infância através da famosa madalena mergulhada em chá... Em criança, ele costumava visitar a sua tia Léonie e tomava chá com ela. Mais tarde na sua vida, e depois da morte dessa tia, ele fez o mesmo com a sua mãe. E aquele gesto de mergulhar a madalena no chá, de a ver dissolver-se, de a provar, de sentir os mesmos aromas e sensações, trouxe consigo uma maré interminável de memórias da sua infância em Combray e, como consequência, da sua vida inteira. Todo um passado, toda uma vida, anos e anos contidos numa simples chávena de chá... Mas na verdade não é o chá ou a madalena que contêm as suas memórias, mas sim ele próprio. O protagonista apercebe-se de que traz sempre consigo todas as suas vivências, todos os detalhes de todas as pessoas e todos os momentos... O chá apenas as acordou. E então, de um jeito que me faz descrever a nostalgia como uma droga, ele continua a provar desesperadamente mas cada colher traz um pouco menos... Ele tem de continuar em busca porque a memória é mais do o espaço e o tempo, a memória é uma sensação. E todo o livro nasce precisamente daí.

Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória. – página 51

COMBRAY II

A segunda metade deste segmento adquire um tom mais tradicional. O protagonista conta toda uma série de detalhes mais concretos da sua infância em Combray – o tio Adolphe ostracizado pela família por favorecer a companhia de prostitutas, uma das quais o protagonista chega a conhecer, o seu amigo Bloch, sempre extrovertido e sarcástico mas cujo sarcasmo desagrada a família do protagonista, o senhor Vinteuil, um músico viúvo e pai de uma filha irreverente, e muitos mais. Mas talvez a mais importante seja a já referida tia Léonie, aquela através da qual nasceu o ritual das madalenas, uma mulher muito estranha desde que ficou viúva, consumida por grandes suspeitas e medos do mundo, incapaz de sair de casa mas sempre com muito interesse em saber notícias de Combray, notícias que recebia da sua melhor amiga, Eulalie. Inicialmente, Françoise era a criada de Léonie, dedicada e humilde ainda que a sua senhora talvez não o merecesse e aliás, parecesse não gostar de Françoise. Mas após a morte de Léonie, Françoise fica surpreendentemente triste e começa a trabalhar para a família do protagonista.

Mais relevante ainda é de que neste segmento do livro, o protagonista tem as suas primeiras experiências com o género feminino. Isso é curioso porque o belo feminino é um outro tema recorrente na obra, mas o próprio Proust era homossexual. É costume dizer-se que em Proust deve-se ler as raparigas como se fossem rapazes, mas não sei. Talvez explore isso com o quarto volume, se lá chegar.

Se, como às vezes acontecia, ela tinha as feições de uma mulher que eu conhecera na vida real, ia entregar-me inteiramente a este objetivo: reencontrá-la, como os que partem de viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode saborear numa certa realidade o encanto da fantasia. A pouco e pouco, a memória dela desvanecia-se, e tinha esquecido a rapariga do meu sonho. – página 14

A primeira experiência que o nosso protagonista tem com raparigas é quando, num dos passeios com o pai e o avó, ele passa pelo caminho de Méséglise, também conhecido como “o lado de Swann” uma vez que é através dessa via que se deparavam com a casa de Swann, e é la que ele encontra uma rapariga bonita que imediatamente capta toda a sua atenção. Essa rapariga é Gilberte Swann, obviamente a filha do homem que, sem saber, tanto atormentava o jovem protagonista... A reação de Gilberte consiste naquilo que o protagonista identifica como desgosto e escárnio, talvez um sinal de futuras inquietações, mas ainda assim, ela não sairá da sua mente, pelo menos durante umas centenas de páginas. Inicialmente, ele relembra os olhos escuros dela como sendo azuis, uma das muitas instâncias em que a memória eleva certas pessoas da vida do protagonista, especialmente aquelas pelas quais ele teve intenções amorosas, como superiores à sua aparência na realidade.

A segunda experiência consiste num outro tema recorrente na obra. O jovem protagonista é obcecado com a família Guermantes, a família mais nobre em Combray, nomeadamente a duquesa de Guermantes, que o protagonista viu apenas num quadro e ficou logo enamorado por ela. Contudo, vê-la na carne traz-lhe um certo desapontamento – ela simplesmente não é tão bonita como no quadro... Este desapontamento torna-se recorrente, esta noção de que concebemos na nossa mente ideias exageradas acerca das pessoas à nossa volta, ideias que, mais tarde ou mais cedo, nos fazem cair na triste realidade que sempre lá esteve mas que nós tão decididamente ignorámos. É uma estranha fusão entre a arte e a memória, ambas exagerando as qualidades das pessoas e dos momentos numa mistura transformativa, num grande elogio que só a arte pode fazer do mundano. Mas talvez eu esteja a avançar demasiado, porque se não sei quando é que hei de chegar ao quarto volume, então sei muito menos quando é que hei de chegar ao último.

UM AMOR DE SWANN

O segmento mais longo do livro consiste na história do próprio Charles Swann. Trata-se de uma quebra narrativa no sentido em que o protagonista se distancia da obra e o pronome pessoal torna-se então muito mais esporádico, dando lugar a um narrador quase omnisciente. A história a contar consiste na história de como este homem de classe, adorado por todos em Combray, rebaixou o seu estatuto aos olhos de muita gente, incluindo a família do protagonista, por ter cometido aquilo que chamam de um casamento tresloucado.

Swann comparece a um jantar em casa dos Verdurin, um casal aparentemente rico e influente, pelo menos o suficiente para dar vários jantares e fazer viagens pelo mundo, mas cujo estatuto fica não obstante aquém das outras famílias, tanto pela linhagem como pelos seus comportamentos. Em suma, os Verdurin são pessoas desagradáveis. Isso é um facto que o narrador não tenta particularmente esconder e, à luz disso, ele introduz Odette de Crécy, uma fiel dos Verdurin. Odette é desde logo introduzida numa cor não muito apelativa e, apesar da senhora Verdurin insistir introduzi-la a Swann, este não tem grande interesse por ela. Aliás, considera-a feia.

Daí surge um estranho jogo de sedução. Swann inicialmente não tem interesse nenhum em Odette enquanto que ela tem bastante interesse nele. Ela começa a antecipar que ele compareça aos eventos sociais em casa dos Verdurin mas ele, apesar de eventualmente comparecer, tem tendência a passar as tardes antecedentes com uma mulher operária. Porque essa é uma característica fatal de Swann, ele quase que se assemelha a uma versão mais nobre de Lújin de Crime e Castigo, no sentido em que Swann tem uma espécie de fantasia em resgatar uma mulher pobre e humilde, uma mulher sua inferior, fazendo-a então tão agradecida que será para sempre sua. Odette, em certos aspetos, corresponde justamente a esse tipo de mulher, e ao fim de algum tempo, Swann começa a mudar de opinião.

Então eles começam a passar mais tempo juntos. Ele ouve-a tocar piano, algo que ele tolera e até parece gostar apesar de ela não saber tocar muito bem e de ter um gosto musical que ele considera terrível. Quando Swann quer estar com Odette sem estar com os Verdurin, ela prepara logo uma mentira para contar aos Verdurin e fá-lo de forma tão convincente que agrada a Swann. Odette diz a Swann que quando ele quiser a sua atenção, que a chame e ela será só sua, qualquer que seja a hora. E até a sua aparência física começa a mudar aos olhos de Swann que se apaixona por Odette após descobrir que ela é semelhante a uma figura num dos seus quadros favoritos. E os telegramas que ela lhe envia depois de uma tarde juntos são-lhe encantadores.

Uma hora depois recebeu um bilhete de Odette e reconheceu logo aquela grande letra, em que um fingimento de rigidez britânica impunha uma aparência de disciplina aos caracteres informes que porventura teriam significado para olhos menos prevenidos a desordem do pensamento, a insuficiência da educação, a falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera-se da cigarreira em casa de Odette. «Se se tivesse esquecido também do coração, não deixaria que o recuperasse.» – página 204

Num dos jantares, o senhor Vinteuil, também previamente referido, toca uma peça de música que chega aos sentidos de Swann como um verdadeiro símbolo de união com Odette. O chá e a madalena são a primeira coisa que se fala quando se fala de Em Busca do Tempo Perdido mas a verdade é que a obra está repleta desses momentos de memória involuntária. E esta música é um desses momentos, é o momento de Swann... A partir daí ele fica convertido, ele apaixona-se por Odette. Contudo, a maré está a mudar sem que ele se aperceba. O favor inicial que ganhou com os Verdurin começa-se a desvanecer quando a senhora Verdurin se apercebe de que Swann tem amizades poderosas, amizades muito além do estatuto dos Verdurin, e Swann, cada vez mais cego a isso, torna-se incapaz de ver a vulgaridade dos Verdurin, assim como a de Odette. É nisto que entra Forcheville, um novo fiel que os Verdurin favorecem. Forcheville não é um homem particularmente agradável, ele insulta veementemente Saniette, um homem algo tímido que, em lágrimas, abandona o jantar perante a frieza dos Verdurin e a cumplicidade de Odette que parece curiosamente agradada pela maldade de Forcheville.

As páginas que se seguem pintam Swann como gradualmente mais caído. Odette torna-se cada vez menos interessada nele e cada vez mais interessada em Forcheville, um interesse facilitado pelos Verdurin e pelas crescentes mentiras de Odette. Inicialmente, Swann considerou essa capacidade que ela tinha para mentir como algo charmosa, demonstrando-se estupidamente cego para as implicações – se ela mente com tanta facilidade aos outros, então como é que ele pode alguma vez ter a certeza de que ela diz a verdade a ele?... No entanto, apesar de Odette partir em viagens com os Verdurin e com Forcheville, apesar de Odette exibir todos e mais alguns sinais de desonestidade, apesar de Swann ser constantemente desprezado, ele ainda permanece com os seus pensamentos cheios dela. Ele envia o seu amigo, o barão de Charlus, em visitas a Odette que fazem correr rumores de um caso entre eles. Quando isso não resulta, Swann visita-a numa ocasião em que sabia que ela estava em casa mas que fingiu não estar para não lhe abrir a porta. Mais tarde ele não consegue resistir ler cartas que ela escrevera a Forcheville, indicando claramente que este estava em casa de Odette nesse dia em que ela não abriu a porta a Swann, e apesar de tudo indicar que está a ser traído, Swann perde-se em racionalizações, como por exemplo, o tom de Odette nas cartas a Forcheville não ser tão emocional como nas cartas que ela escreveu a si próprio. Swann até considera uma espécie de acordo com Forcheville para que tenha acesso a informações sobre os movimentos de Odette, e quanto às vastas quantias de dinheiro que deu a Odette para lhe atenuar problemas financeiros, essas nem lhe preocupam.

Eventualmente parece tudo perdido. Ocorre-me agora que Swann é mais traído do que Leopold Bloom, o tempo que dedicou a Odette parece ter dado em absolutamente nada exceto desgosto, e um dia ele recebe uma carta anónima que detalha um passado ainda mais promíscuo de Odette, tanto com outros homens como com mulheres. Swann confronta Odette que inicialmente nega tais acusações mas, quando Swann lhe pede que jure sobre uma medalha religiosa, ela recusa-se a fazê-lo e acaba por admitir que os conteúdos da carta são verdadeiros. Não parece haver reconciliação no horizonte mas depois, no final do segmento, Swann é atormentado por Odette num sonho e então, num outro jantar, ao ouvir aquela mesma música de Vinteuil, ele é subitamente relembrado do momento em que se apaixonou por Odette, apercebendo-se de que se apaixonou por uma mulher que, nas suas palavras, não era o seu tipo.

E antes de Swann ter tempo de compreender e pensar: «É a pequena frase da sonata de Vinteuil, é preciso não ouvir!», todas as suas recordações do tempo em que Odette estava apaixonada por ele e que até ali ele conseguira guardar invisíveis nas profundidades do seu ser, enganadas por aquele brusco raio do tempo de amor que julgaram regressado, tinham despertado e, em voo rápido, de novo haviam subido a cantar-lhe perdidamente, sem piedade pelo seu presente infortúnio, os esquecidos estribilhos da felicidade. – página 309

Este segmento da história, durante o qual o protagonista nem sequer era nascido, é talvez dos mais relevantes porque os erros de Swann serão recorrentes ao protagonista ao longo de todo o livro. Na verdade, a história de Swann é quase um microcosmos de toda a obra. Também o protagonista se irá apaixonar por raparigas que, em retrospetiva, não eram particularmente boas pessoas, e se ele não estivesse momentaneamente cego, ter-se-ia apercebido dos seus carácteres instáveis e da iminente traição. Por outro lado, algo patente em A Fugitiva é de que também o protagonista não foi inteiramente inocente. De qualquer das formas, no segmento de Swann temos um pouco de tudo – temos a mentalidade das pessoas nas suas mais pequenas idiossincrasias, essa mesma mentalidade caricata aplicada a interações de sociedade nas quais as aparências de classe e nobreza escondem vaidades e invejas, e tudo isto envolto por devaneios filosóficos sobre a beleza feminina, a arte, a música e, claro, a memória.

NOMES DE TERRAS: O NOME

As sementes dessa recorrência são logo plantadas no último segmento deste volume. A história parece agora retomar o segmento mesmo anterior ao de Swann. O protagonista devaneia sobre o significado dos nomes, especialmente quando associados a lugares da nossa memória, devaneia especificamente sobre Combray e sobre viajar pela Europa, cheio de sonhos sobre que aventuras e experiências o esperam. Mas, como lhe foi frequente ao longo da vida, a sua saúde não o permitiu. Em vez disso, o médico recomendou-lhe passeios pelos Campos Elísios onde, ironicamente, se reencontra com aquela mesma rapariga, a Gilberte Swann. Ele trava uma amizade com ela mas logo se desgosta quando se apercebe de que ela lhe ocupa os pensamentos muito mais do que ele ocupa os dela. Ele enche o seu caderno com o nome dela, procura desculpas para referir os Swann à sua família só para ouvir falar deles à mesa de jantar, anseia por encontrar Gilberte nos Campos Elísios e fica sempre desapontado quando as variações do tempo dificultam um encontro... Um dia, ela até faz questão de lhe oferecer um volume de Bergotte, o seu escritor favorito. Contudo, ele tenta forçar-se a esquecer Gilberte quando ela diz, com alguma frieza inesperada, que estará ocupada com a sua família e não voltará aos Campos Elísios durante muito tempo. É então que o protagonista se apercebe de que gosta dela mais do que ela gosta dele, algo que será verdade em todo o livro.

No final do volume, o protagonista avista Odette em público que, sendo avistada por dois homens, sorri. Quando ela passa eles conversam sobre ela, sobre o seu passado quando ela era Odette de Crécy e um dos homens admite ter dormido com ela. Foi esse momento que me fez relembrar a semelhança de Swann com Bloom, e Odette com Molly, pois ambas as mulheres são de certa forma admiradas com uma nostalgia que não pertence num casamento. E este tipo de casamento terá ecos na relação que o protagonista irá desenvolver com Gilberte. Mas estou-me a adiantar outra vez. Isso devo deixar para o segundo volume, sobre o qual planeio escrever ainda este verão.

Então no final, regressando à intimidade das primeiras páginas, as páginas daquele segmento com o qual o livro abre até culminar na famosa madalena, o protagonista começa a divagar sobre os lugares, filosofando sobre o poder que têm de se associar à memória e de parecerem imediatamente diferentes caso um ou outro detalhe familiar e confortável não se manifeste, suscitando novamente este tema do desapontamento. É algo, não propriamente triste, mas certamente melancólico, esta constante tentativa de ressuscitar o passado apenas para nos desapontarmos quando as coisas não correm como esperávamos mas, ironicamente, sabemos que há de chegar o dia em que esse dia dececionante será também uma memória boa.

A realidade que eu conhecera já não existia. Bastava que a senhora Swann não chegasse tal e qual e no mesmo momento para que a avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos só pertencem ao mundo do espaço em que os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia por entre impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de uma determinada imagem não passa da nostalgia de um determinado momento; e as casas, as estradas, as avenidas, são infelizmente fugazes, como os anos. – página 381

§

Quanto a mim, fico-me por aqui, pelo menos por uns dias. Espero escrever sobre o segundo volume o quanto antes, algures no próximo mês, até porque ler À Sombra das Raparigas em Flor tem de ser no verão por motivos que eu espero conseguir fazer aparentes. Porque ler Proust tem de ser uma experiência aos sentidos mais do que à razão, é preciso deixar-se levar pelo ritmo de um autor que nos faz perder por entre as suas páginas, por entre um constante paradoxo entre não acontecer nada e estar sempre a acontecer tudo... Talvez porque a memória, tal como um sonho ou até mesmo um livro, deixa-nos reviver a nossa vida inteira sempre que recordamos. E eu, que nunca tive uma infância em Combray nem um verão em Balbec, é quase como se tivesse.

Comments

Popular posts

A Minha Interpretação Pessoal de “Às Vezes, em Sonho Triste” de Fernando Pessoa

Já há muito tempo que não lia nada que o Fernando Pessoa escreveu, e talvez por esse motivo, mas principalmente porque buscava ideias sobre as quais escrever aqui, decidi folhear um livro de poemas dele. E enquanto o fiz, tomei especial nota das marcas que apontei na margem de algumas páginas, significando alguns poemas que gostei quando os li pela primeira vez, há cerca de sete anos atrás. Poderia ter escolhido um poema mais nostálgico ou até mais famoso, mas ao folhear por todo o livro foi este o poema que me fez mais sentido escolher. Agora leio e releio estes versos e comprometo-me a tecer algo que não me atreverei a chamar de análise, porque não sou poeta nem crítico de poesia. Mas como qualquer outro estudante português, fui leitor de Fernando Pessoa e, ainda que talvez mais a uns Fernandos Pessoas do que a outros, devo a este homem um bom pedaço dos frutos da minha escrita, que até à data são poucos ou nenhuns. Mas enfim, estou a divagar... O que queria dizer a jeito de introduç...

Meditations on The Caretaker's “Everywhere at the End of Time”

I have always been sentimental about memory. Nostalgia was surely one of the first big boy words I learned. And all throughout my life I sort of developed a strong attachment memory, and subsequently to things, which became an obsession almost. I never wanted to see them go, even if they had lost any and all useful purpose, because they still retained a strong emotional attachment to me. I had a memory forever entwined with those old things, so I never wanted to see them go. However, in my late teens I realized I was being stupid, I realized there was no memory within the object itself, it was only in me. So I started to throw a bunch of stuff out, I went from a borderline hoarder to a borderline minimalist, and it was pretty good. I came to the realization that all things were inherently temporary. No matter how long I held on to them, eventually I would lose them one way or another, and if someone or some thing were to forcefully take them from me, I would be heartbroken beyond repai...

10 Atheist Arguments I No Longer Defend

I don't believe in God, I don't follow any religion. And yet, there was a time in my life when I could have said to be more of an atheist than I am now. In some ways I contributed to the new atheism movement, and in fact, for a little while there, Christopher Hitchens was my lord and savior. I greatly admired his extensive literary knowledge, his eloquence, his wit and his bravery. But now I've come to realize his eloquence was his double-edged sword, and because he criticized religion mostly from an ethics standpoint, greatly enhanced by his journalism background, some of the more philosophical questions and their implications were somewhat forgotten, or even dealt with in a little bit of sophistry. And now it's sad that he died... I for one would have loved to know what he would have said in these times when atheism seems to have gained territory, and yet people are deeply craving meaning and direction in their lives. In a nutshell, I think Hitchens versus Peterson wo...

Mármore

Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver. Era assim que escrevia o Bernardo numa página à parte, em pleno contraste com tantas outras páginas soltas e enamoradas de ilustrações coloridas, nas quais eram inteligíveis as suas várias tentativas de idealizar uma rapariga de cabelo castanho-claro, ou talvez vermelho, e com uns olhos grandes que pareciam evocar uma aura de mistério e de aventura, e com os braços estendidos na sua frente, terminando em mãos delicadas que se enlaçavam uma à outra, como se as suas palmas fossem uma concha do mar que guarda uma pérola imperfeita, como se cuidasse de um pássaro caído que tem pena de libertar, como se desafiasse um gesto tímido... Mas tal criação ficava sempre aquém daquilo que o Bernardo visualizava na sua mente. Na verdade não passava sequer de um protótipo mas havia algo ali, uma intenção, uma faísca com tanto potencial para deflagrar no escuro da página branca... se porventura ele fosse melhor artista. E embora a obra carecesse ...

A Synopsis Breakdown of “The Wandering King”

A collection of eight different short stories set in a world where the malignant and omniscient presence of the Wandering King is felt throughout, leading its inhabitants down a spiral of violence, paranoia and madness. That is my book's brief synopsis. And that is just how I like to keep it – brief and vague. I for one find that plot-oriented synopses often ruin the whole reading, or viewing, experience. For example, if you were to describe The Godfather as the story of an aging mafia don who, upon suffering a violent attempt on his life, is forced to transfer control of his crime family to his mild-mannered son, you have already spoiled half the movie. You have given away that Sollozzo is far more dangerous than he appears to be, you have given away that the Don survives the attempt, and you have given away that Michael is the one who will succeed him... Now, it could well be that some stories cannot be, or should not be, captured within a vague description. It could also be t...

In Defense of Ang Lee's “Hulk”

This movie isn't particularly well-liked, that much is no secret. People seem to dislike how odd and bizarrely subdued it is, especially considering the explosive nature of its titular superhero. In a nutshell, people find this movie boring. The criticism I most often hear is that it is essentially a very pretentious take on the Incredible Hulk, an ego-driven attempt to come up with some deep psychological meaning behind a green giant who smashes things. And it's tempting to agree, in a sense it's tempting to brush it off as pretentious and conclude that a film about the Hulk that fails to deliver two action-packed hours is an automatic failure. But of course, I disagree. Even when I was a kid and went into the cinema with my limited knowledge, but great appreciation, of the comics, I never saw the Hulk as a jolly green giant. At one point, the character was seen as a mere physical manifestation of Bruce Banner's repressed anger awakened by gamma radiation, but eventual...

The Gospel According to Dragline

Yeah, well... sometimes the Gospel can be a real cool book. I'm of course referencing the 1967 classic Cool Hand Luke, one of my favorite films of all time. And, as it is often the case with me, this is a film I didn't really care for upon first viewing. Now I obviously think differently. In many ways, this is a movie made beautiful by it's simplicity. It is made visually striking by its backdrop of natural southern beauty in the US – the everlasting summer, the seemingly abandoned train tracks and the long dirt roads, almost fully deserted were it not for the prisoners working by the fields... It almost gives off the impression that there is no world beyond that road. And maybe as part of that isolation, the story doesn't shy away from grit. It is dirty, grimy and hence, it is real. Some modern movies seem to have an obsession with polishing every pixel of every frame, thus giving off a distinct sense of falsehood. The movie then becomes too colorful, too vibrant, it...

A Minha Interpretação Pessoal de “Sou um Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro

Em continuação com o meu artigo anterior, comprometo-me agora a uma interpretação de um outro poema do mesmo poeta... mais ou menos. Porque os vários heterónimos pessoanos são todos iguais e diferentes, e diferentes e iguais. Qualquer leitor encontra temas recorrentes nos vários poemas porque de certa forma todos estes poetas se propuseram a resolver as mesmas questões que tanto atormentavam o poeta original. Mas a solução encontrada por Alberto Caeiro é algo diferente na medida em que é quase invejável ao próprio Fernando Pessoa, ainda que talvez não seja invejável aos outros heterónimos. Por outro lado, talvez eu esteja a projetar porque em tempos esta poesia foi deveras invejável para mim. Ao contrário do poema anterior, do qual nem sequer tinha memória de ter lido e apenas sei que o li porque anotei marcas e sublinhados na margem da página, este poema é um que li, que gostei e que apresentei numa aula qualquer num dia que me vem agora à memória como idílico. Mas em típico estilo d...

Martha, You've Been on My Mind

Perhaps it is the color of this gray rainy sky at the end of spring, this cold but soothing day I hoped would be warm, bright and the end of something I gotta carry on. Or maybe it's that I'm thinking of old days to while away the time until new days come along. Perhaps it's all that or it's nothing at all, but Martha, you've been on my mind. I wouldn't dare to try and find you or even write to you, so instead I write about you, about who I think you are, because in truth I don't really know you. To me you're just a memory, a good memory though, and more importantly, you're the very first crossroads in my life. I had no free will before I saw you and chose what I chose... Two roads diverged in a yellow wood, you would have led me down one, and yet I chose the other. But I never stopped looking down your chosen path for as long as I could, and for a fleeting moment I could have sworn I saw you standing there, and then you just faded, almost as if you ...