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A Minha Interpretação Pessoal de “Às Vezes, em Sonho Triste” de Fernando Pessoa

Já há muito tempo que não lia nada que o Fernando Pessoa escreveu, e talvez por esse motivo, mas principalmente porque buscava ideias sobre as quais escrever aqui, decidi folhear um livro de poemas dele. E enquanto o fiz, tomei especial nota das marcas que apontei na margem de algumas páginas, significando alguns poemas que gostei quando os li pela primeira vez, há cerca de sete anos atrás. Poderia ter escolhido um poema mais nostálgico ou até mais famoso, mas ao folhear por todo o livro foi este o poema que me fez mais sentido escolher. Agora leio e releio estes versos e comprometo-me a tecer algo que não me atreverei a chamar de análise, porque não sou poeta nem crítico de poesia. Mas como qualquer outro estudante português, fui leitor de Fernando Pessoa e, ainda que talvez mais a uns Fernandos Pessoas do que a outros, devo a este homem um bom pedaço dos frutos da minha escrita, que até à data são poucos ou nenhuns. Mas enfim, estou a divagar... O que queria dizer a jeito de introdução é que escolhi este poema quase que à sorte e não sei o que vou dizer antes que o diga.


Às vezes, em sonho triste,
Aos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Talvez a característica mais saliente da poesia de Fernando Pessoa seja a simplicidade das suas rimas. Há um claro domínio da língua portuguesa e da filosofia subjacente aos seus versos, mas as rimas e o ritmo de todo o poema adquirem um tom quase tradicional, como de uma canção ou de um ditado popular. Isso parece um tema recorrente neste Pessoa ortónimo, que aprendeu a ser breve com as mesmas ideias que atormentam as suas outras caras-metade. E quais são esses temas? A incapacidade de sentir, de viver no momento, de ser feliz, e por aí fora... Este é um poeta que sempre foi incapaz de sentir verdadeiramente, porque ao tentar sentir já o sentimento passou e não é verdadeiro, este poeta sempre foi incapaz de viver porque a vida nunca lhe fez sentido, pelo menos não como parece fazer sentido aos outros, e ele talvez nunca conseguiu ser feliz exceto durante a infância, que não foi mais do que um dia. Então quando a vida é assim, o que é que sobra? Numa palavra, o grande tema de Fernando Pessoa é o sonho.

Então o poeta, que tem em si todos os sonhos do mundo, sonha com um país distante no qual a felicidade é garantida, aliás, a felicidade é essencialmente uma tautologia. Há algo quase que instintivo nesse pensamento, essa ideia de um lugar perfeito que, por qualquer motivo estranho mas tão inerente à condição humana, tem de ser concebido como distante, tão longínquo que a vida nesse lugar nem faz muito sentido relativamente à nossa vida neste lugar de agora. Porque a nossa vida é apressada e cheia de detalhes feios e materialistas, mas nesse longínquo país, ser feliz é ser feliz. O resto, se existe, é secundário. Mas tal lugar não existe no mundo real, existe só num sonho, que nem sequer é um sonho feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

Se o sonho é o tema central na poesia de Fernando Pessoa, então o tempo seria talvez o segundo tema mais importante. Este primeiro verso parece remeter desde já para a infância, o tempo perdido no qual o poeta era feliz só pelo simples facto de o ser. Na nossa infância as coisas simplesmente faziam sentido porque o mundo não tinha como não fazer sentido. Perguntávamos porquê a tudo, mas quaisquer que fossem as respostas nós éramos felizes na mesma. E viver era um constante sim... E se na idade adulta a infância foi só um dia, então na infância um dia foi a vida inteira. O tempo existia porque existia o sol nascente e o sol poente, existia o inverno e o verão, mas o passar do tempo não existia. O mundo era só a nossa casa, a nossa escola, e o caminho entre uma e outra, e mesmo sendo só isso, o mundo era enorme. É engraçado como os lugares da infância parecem sempre maiores na memória do que na realidade... E se nascer é uma coisa simplesmente natural, se é algo que apenas acontece, então viver com essa inocência da infância seria talvez a fonte de toda a felicidade. Aqui o poeta parece desejar ser completamente libertado daqueles seus constantes pensamentos que o atormentam e inquietam, aqueles mesmos que o impedem de apreciar um momento, aqueles pensamentos que incomodam como andar à chuva, como diz um outro Pessoa...

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Eu consigo compreender que nesse país distante, o ato de desejar esteja banido no sentido em que, num lugar perfeito, desejar torna-se logicamente impossível. Ou então talvez seja mais o caso de que nesse lugar todos os habitantes são estoicos perfeitos, totalmente imunes às vicissitudes da vida, às dores e aos desassossegos. De qualquer das formas, isso é-me compreensível. Mas o ato de sentir ser banido dessa terra? Isso não sei se compreendo, a não ser que estes versos estejam a revelar protótipos de Ricardo Reis, aquele poeta que, perante a complexidade tortuosa das emoções, preferiu rejeitá-las a todas. Reis fez uma simples aritmética que defende que muita felicidade não compensa se acabará em muita tristeza porque para isso mais vale o zero absoluto. Estes versos parecem então defender algo semelhante. O poeta idealiza uma terra perfeita na qual ser feliz é uma espécie de constante experienciar de um sonho, uma terra onde talvez até aquela lógica de sonhos se aplique, aquela coisa estranha de se estar num lugar a um dado momento e noutro totalmente diferente logo a seguir, de se sentir bem num sonho bom mesmo quando o sonho não faz muito sentido ou quando não acontece nada nele. Porque às vezes temos sonhos bons assim, vazios, sem história e sem razão de ser, mas ao acordar só queremos regressar a eles porque estar lá soube bem.

Nem se sonha nem se vive
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Ou não... Acertei na metade de este lugar não ser a vida real, mas se ali também não se sonha então fico sem ideias. Talvez seja o meio-termo entre uma coisa e a outra. Sonhar para sempre é ilusão, mas viver sem sonhos é tortura. E ressurge então a temática da infância, desta vez descrita como carecendo de um fim, até porque a cada momento o tempo morre e renasce sem que sequer tenhamos fé disso. O poeta idealiza um lugar perfeito, tão longínquo que talvez até exista algures no mundo real, como quando um sonho é tão real que mais se assemelha a uma profecia. E tanto quanto sei, até pode ser mesmo.

Isso tudo soa bem, pelo menos na teoria, mas é nos últimos três versos que o poeta gradualmente regressa à realidade. Com o terceiro verso desta última estrofe ele caracteriza a vida neste lugar como um reviver, presumivelmente um reviver da infância, uma infância num ciclo perpétuo que, mesmo que seja eventualmente repetida, será como viver pela primeira vez, será algo tão natural à inocência da infância. Mas no penúltimo verso ele caracteriza essa vida como sendo suave, um termo simples e um adjetivo admitidamente agradável ao ouvido, mas seria de esperar que uma utopia assim oferecesse algo melhor, algo mais intenso. Mas não, isso seria demasiado, seria muito além do que o poeta quer, seria um outro desassossego. E assim, no último verso o poeta revela-se dividido – este lugar de fantasia é descrito como um jardim, uma imagem que evoca temas de perfeição, de paraíso, possivelmente até uma referência mais concreta ao epicurismo, mas por outro lado, esse jardim é descrito como impossível, um adjetivo muito mais forte do que o anterior. E então o poeta encerra o poema com a sua típica eloquência breve, uma decisão racional que diz que, depois de concluir que este lugar perfeito dos sonhos não existe, não vale a pena dizer mais nada.

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