Este livro é estranho. O seu autor original é um homem que o próprio Fernando Pessoa considerava um semi-heterónimo, ou seja, não numa personalidade alternativa e descoberta após um processo de introspeção, mas sim aquilo que o homem original descrevia como uma mutilação da sua personalidade. E talvez se possa dizer ser esse o tema recorrente de todo o livro, esta noção de algo em falta, algo insuficiente, algo vazio... Em muitos aspetos o livro existe num vácuo. Não há história nem protagonista, não há lógica nem coerência, é escrito com um prefácio mas sem um epílogo. Ao que tudo indica, este livro é um mero aglomerado de textos que o autor foi escrevendo sempre que o seu estado de espírito assim o determinava, um estado de melancolia para com o mundo, com a vida e consigo mesmo. Assim, a vasta extensão do livro é prova de que esse estado de espírito frequentemente possuía o autor, mas após a sua morte, o livro não encontrou leitores durante quarenta e sete anos. Aliás, o livro nem sequer estava composto, a grande obra era um segredo. Mas quando o autor morreu deixou para trás um baú repleto de páginas diversas, algumas escritas à mão, outras dactilografadas, mas devidamente assinadas L. do D.
A minha descoberta do livro foi vagamente semelhante. Aqui em Portugal o nosso estudo de Fernando Pessoa começa no oitavo ano, quando temos cerca de treze anos, mas foi só com os meus dezoito que ouvi falar do Livro do Desassossego pela primeira vez e tive um grande impulso para o ler, mesmo não fazendo a mínima ideia daquilo que iria encontrar, pelo menos em termos de conteúdo. Porque eu sabia que o livro ia ser triste e melancólico, seria o autor, quem quer que ele seja, a falar sozinho, à procura da sua própria alma em cada página. Mas mesmo que o livro tenha demorado tanto tempo a chegar ao mundo, a nossa eterna descoberta como leitores é de que um autor sem vida vive algures nas suas páginas, e os seus discursos melancólicos e admitidamente depressivos não são meros devaneios, são o autor a abrir a sua alma ao mundo inteiro, mas a um leitor de cada vez.
E escolhi interpretar este trecho vinte e nove porque, por entre os talvez quinhentos trechos que compõem o livro, este vinte e nove foi o primeiro que me saltou da página durante a minha primeira leitura. Sabes quando estás a ler um livro ou a ver um filme e aparece-te qualquer coisa, algum detalhe, alguma ideia que te captura a atenção de tal forma que te apercebes de que descobriste algo especial? Foi essa a minha sensação, uma sensação que consigo reviver sempre que folheio as páginas deste livro, uma sensação que se pode reviver a cada momento, pois este livro é tão íntimo que se pode folhear, ler à sorte e descobrir que as suas páginas são quase infinitas.
Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som do veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita, do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram num espaço claro.
O trecho abre completamente a meio de um dia qualquer, um momento qualquer, aliás. E isso é algo frequente no livro. Não se trata de um diário no sentido tradicional, são raras as datas e os títulos, alguns trechos são breves, outros são longos, alguns são ensaios filosóficos, outros são confissões de diário... Este é um trecho relativamente curto, mas não tanto como outros que são apenas de uma só linha, e não tem título, em tempos teve data mas eventualmente deixou de ter, e é essencialmente um fragmento do diário de um homem sem vida. O autor considerava o livro uma autobiografia sem factos e isso é esteticamente revelado porque cada página está cheia de acontecimentos de um dia na vida do autor, mas não são grandes acontecimentos, não são minimamente históricos, na verdade são o exato oposto, são detalhes minuciosos, são todas aquelas sensações normais e mundanas que toda a gente sente... toda a gente exceto o nosso autor.
A descrição inicial é precisamente isso, é uma sinfonia de detalhes escrita em toda a eloquência literária do autor mas, naquilo que é um tema recorrente do livro, nós leitores esperamos por um grande acontecimento que nunca vem. O autor apenas foi à janela num dia de chuva em que a chuva parou e o sol começou a voltar, uma mudança climatérica que o autor chama de desesquecimento, um dos muitos neologismos do livro. À parte disso fica talvez uma apreciação generalizada da cidade, outro tema recorrente em toda a obra pessoana. Torna-se fácil de imaginar a vida do autor, este homem genial que vive numa cidade que não reconhece particularmente a sua obra, uma cidade que ele quer sentir mais do que a cidade o sente a ele... Mas a verdade histórica é que foi atrás de uma janela anónima nessa cidade que se escreveu uma das melhores obras da literatura portuguesa.
Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade – gestos que me esquecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre, e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do meu simples isolamento.
O feriado incerto terá sido o dia 25 de dezembro de 1929. Parece-me um bom palpite assumir então que o autor passou o natal sozinho e sem nada que fazer, nada exceto deambular pelo seu quarto e imaginar milhões de vidas, momentos e variações que transcendem as paredes do seu quarto. Os seus pensamentos são de tudo o que ele nunca fez, são uma espécie de jogo mental que, se alguma vez jogaste, rapidamente descobres o quão labirínticos são os seus caminhos. Cada gesto, ambição ou conversa que nunca fizemos ou tivemos representam uma oportunidade perdida, representam um desvio no nosso percurso, um desvio aparentemente insignificante mas que nos poderia ter transformado numa pessoa completamente diferente. E na vida deste autor há uma oportunidade perdida a cada momento... Ele falhou a vida, como lhe era costume dizer, e então passa os seus dias sozinho a imaginar o que a sua vida poderia ter sido, justamente a crítica que eu pessoalmente faço à filosofia de Ricardo Reis.
O autor sente-se tão isolado que até fala sozinho durante as suas deambulações, sozinho e em voz alta, e os ecos do vazio da sua vida respondem tão alto que começam a soar cada vez mais fortes, repetidos e ramificados em todas as possibilidades que poderiam encher a sua vida, talvez de felicidade, mas que na verdade nem sequer constam do vazio dos seus dias presentes, nem da esperança de dias futuros.
A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira, sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a gente.
Este parágrafo é algo semelhante ao primeiro no sentido em que também consiste numa daquelas eloquentes descrições do mundano. O autor tem uma capacidade excecional de admirar os detalhes mais minuciosos, de analisá-los e de cometê-los à página numa tentativa tão abrangente de conter todas as características daquele preciso momento. Cada palavra pinta um novo traço na imagem daquele dia e da sensação de cada coisa. O autor parece ter atravessado um daqueles momentos de grande concentração em absolutamente nada, aquilo que em inglês se chama de “mindfulness” e então ele parece tentar de alguma forma imitar as outras pessoas, as pessoas normais que vivem e agem tão naturalmente pelo mundo fora. Mas o autor só consegue agir assim dentro dos limites do seu próprio quarto, numa manhã de feriado em que acordou cedo, não conseguiu voltar a adormecer e então fez o que pôde para deixar correr o relógio.
Como nota secundária acrescento que, num dos típicos efeitos da memória, eu estava convencido de que o momento capturado neste trecho tinha decorrido ao final de uma tarde de chuva, numa daquelas ocasiões em que um sol inesperado rasgou as nuvens do céu, pintando um estranho contraste nos espelhos d'água pelas ruas da cidade. Afinal aconteceu tudo de manhã. Não faz muita diferença, mas faz alguma. A memória é uma coisa engraçada...
Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda, vagos, havia frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam, retirando para sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.
Aqui a descrição parece-me mais do que meramente estética. Eu gosto de pensar que, como é comum em toda a literatura, o autor começa-se a identificar com o dia lá fora. A paisagem fascina-o, e ele admira aquela manhã pacífica, aquela chuva acumulada a cair na rua num dia que começa a mudar para sol, aquela visão de uma cidade de madrugada, presumivelmente tão calma... Eu gosto de pensar que o autor admira tudo isso e pensa que está tudo bem no mundo, ou pelo menos é assim que eu pensaria se estivesse no lugar dele. Mas se esse é de facto o seu pensamento então não há de durar muito... Como tudo o resto na obra pessoana, as sensações, boas ou más, mas principalmente as boas, nunca duram. Tudo vai e não volta. O sol desfaz a chuva e as nuvens numa linguagem que o autor caracteriza como uma batalha. Talvez ele devesse celebrar a vitória, talvez ele devesse ficar feliz com isso, mas...
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
Este é então o parágrafo que, para mim, marca o verdadeiro início do Livro do Desassossego. Foi esta passagem, nomeadamente o final dela, que me fez pensar que eu estava a ler um livro a sério, um livro que me influenciaria profundamente... O autor começa este parágrafo a constatar o óbvio – aquela ocasião, aquele dia livre e relaxado, aquele dia em que a luz conquistou o escuro, era um dia para se ser feliz. Digo que isso é constatar o óbvio porque para a maioria das pessoas isso é algo que nem sequer precisa de ser dito, as pessoas felizes simplesmente olham pela janela e fazem-se ao mundo. É quase como se as pessoas normais tivessem mais de Caeiro do que de qualquer outro heterónimo... Para o autor, esse sentimento, essa predisposição para a vida não lhe é aparente. Estar alegre é algo que simplesmente não lhe está acessível.
Ele sente-se estranho, não se sente bem mas também não se parece sentir particularmente mal. Esta é uma das muitas instâncias que caracterizam o Bernardo Soares como uma mutilação do próprio Fernando Pessoa. Porque o autor deste trecho parece cada vez mais incapaz de sentir, ou então acontece que o resultado dessa incapacidade gera em si novas sensações desconhecidas, aliás, ele nem sabe bem o que é esta coisa de viver. Talvez conheça apenas a sensação de existir. E então, numa das metáforas mais ironicamente belas da obra pessoana, se não for mesmo a mais bela, o autor identifica-se com um pano húmido, daqueles que se usa para limpar o pó dos móveis ou o óleo das máquinas, daqueles panos que é suposto deixar estendidos a secar ao sol mas, por serem tão descartáveis, são facilmente esquecidos no parapeito, enrodilhados numa espiral de nada...
E o nosso autor não parece muito diferente disso. Ele existe no mundo mas não se sente vivo no mundo, parece cada vez mais incapaz de ter qualquer influência, é como se nem existisse ou como se não conseguisse querer existir. Ele é um pano húmido, é só mais um em muitos, é alguém que até pode ter a sua utilidade, a sua missão no mundo, mas essa não é uma missão importante, é deveras uma utilidade frequentemente esquecida e substituída. Se o dono do pano húmido se relembrasse de onde o deixou, então talvez, em vez de lavar o pano e o secar, apenas o deitaria fora, encontrando-o tão cheio de lodo e caruncho que não vale mais a pena... Para o autor, que se sente exatamente igual, também não vale a pena ser mais do que é, não vale a pena tentar sentir-se feliz com aquele sol naquele feriado. Mais vale ficar à janela, a sentir toda a extensão da sua existência no mundo como nada mais do que a mancha que vai ficar no parapeito quando ele já não estiver lá.
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