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Sete Excertos de “Nostos”

Ainda assim, quero ser feliz, mesmo entendendo toda a realidade como incoerente com os desejos dos seres humanos, dos quais, infelizmente, eu faço parte... Sim, mesmo assim quero ser feliz, mas e se fosse? E se a partir de agora aparecesse na minha vida tudo aquilo que quero? Se eu tivesse agora uma casa grande e bonita só para mim, tão calma e sossegada, ficaria eventualmente aborrecido. Não teria qualquer interesse ou vontade em a manter bonita, e o sossego azul de estar sozinho eventualmente tornar-se-ia mais do mesmo, dia após dia após dia, e talvez de noite eu quisesse abdicar de qualquer sossego em troca de alguma companhia. Se eu tivesse agora um bom emprego, algo no qual me sentisse confiante e útil para com o mundo, porque produziria algo mais relevante do que os meus livros, ficaria frustrado ao fim de duas ou três semanas, ou talvez nem isso, porque a ideia de ter de acordar todos os dias à mesma hora e deslocar-me ao mesmo sítio e fazer a mesma coisa para o resto da minha vida dá-me uma náusea que se aproxima de fúria, e essa fúria estender-se-ia aos meus colegas de trabalho, cujas conversas banais só me dão vontade de vomitar. Só quero que se calem, ou que pelo menos não falem para mim, que nem sequer se aproximem de mim e me deixem trabalhar sozinho, quero que até o chefe me deixe em paz, quero que a própria empresa nem saiba que eu existo, quero que se esqueçam de mim no dia da fotografia ou até quero que ninguém tenha coragem de me vir chamar porque eu sou aquele tipo esquisito que não fala para ninguém... E se eu tivesse agora uma rapariga bonita que tentativamente chamaria de namorada ou talvez até mesmo de esposa, seria bom para mim no início, esses primeiros dias. Mas depois seria convidado a um almoço com os pais dela, seria convidado ao aniversário do primo, teria de ir com ela visitar o seu tio no hospital, teria de estar onde ela estivesse, principalmente nos momentos tristes, naquilo a que a minha espécie humana aparentemente chama de apoio e empatia e amor, mesmo que eu não consiga ter nada disso para comigo próprio sequer... Enfim, em todas estas coisas não fui feito para o mundo, não fui feito para agir como todas as pessoas normais agem, e como em alguns aspetos até sou um tipo severo, se não sou capaz de ser um bom amante, ou pai, ou filho, ou amigo, ou até mesmo cidadão, então não quero ser amante, nem pai, nem filho, nem amigo, nem cidadão de ninguém. Para mim sempre foi o tudo ou nada, e como sempre fiquei aquém de conseguir o tudo, deixei que a minha vida se enchesse de nada.

No entanto, há ainda um motivo pragmático para desejar o sol, porque em dias de chuva não há luz suficiente neste meu quarto para ler. É verdade que me tenho desfeito de alguns livros porque até dos apontamentos que lhes escrevi nas margens me quis libertar. A tinta com a qual os escrevi já secou, até as canetas com as quais os escrevi já acabaram e se desfizeram, e os dias, porventura mais felizes, nos quais os escrevi já passaram também, para sempre. Mas não me lembro de nesses dias ter tido assim tão pouca luz neste meu quarto... Lembro-me de passar horas a ler, talvez demasiadas horas até me sentir enlouquecer com tantas vozes incorpóreas na minha cabeça e tão poucas vozes corpóreas à minha volta, mas não me lembro deste escuro nem de me doerem assim os olhos. É sabido que tudo é sempre melhor na memória mas nunca me tinha apercebido de que era tudo também mais claro. Na memória o sol tem sempre mais luz, e a chuva menos frio, e a praia mais azul, e o mar menos rochas, e o parque mais erva, e a erva menos bichos, e o momento mais tempo, e o tempo menos fim. É tudo melhor quando já passou, e até as coisas más, que queremos que passem breves com aquela mesma expressão que dizemos às crianças para lhes afastar as imagens feias de um pesadelo, até elas acabam um dia por surgir na memória, e com todo o seu perfume também... E quando os olhos me doem de ler, e as costas me doem de me deitar, e sair à rua para dar uma volta é-me proibido pela chuva, que por sua vez acaba por não ser mais do que uma desculpa, então o que é que eu faço? Sento-me a escrever este livro, no qual guardo os meus sonhos estranhos e os meus pensamentos feios como se chorasse, tudo para que este momento mau passe... Mas nunca há de passar, o tempo acontece todo ao mesmo tempo, já vivi o dia de hoje em mil dias diferentes... Será que o vivi da melhor forma? Será que em metade desses mil fui feliz? Se não em metade então talvez num quarto deles, talvez num oitavo? Será que fui feliz num único desses dias desta mesma data? Não sei se acredito mesmo que sim ou se apenas quero acreditar. Mas também não sei de mais nada, nem sequer sei, mesmo olhando agora pela janela, se está mesmo a chover.

O tempo passa, este livro acaba e a chuva de hoje acaba com ele. Houve páginas nas quais escrevi que não me imaginava chegar a velho, e houve páginas nas quais escrevi que já estava velho. E agora penso que não sou velho e nem nunca chegarei a velho porque serei para sempre jovem... Há momentos de lucidez em pessoas dementes que lhes chegam como água fresca depois de quarenta dias no deserto, mas não deve ser só a pessoas dementes que chegam alguns desses momentos... Também eu, que ainda sou jovem, ou pelo menos as pessoas diriam que sim se eu morresse hoje, sou de repente assaltado por momentos de lucidez, momentos nos quais me recordo de dias antigos com a crença surreal de que fui feliz... Porque sim, em tempos devo ter sido feliz. Não posso ter feito da minha memória a minha única vida sem que nela tenha havido algo de bom. Nunca soube nada de tempo mas gosto de pensar que sempre soube um bocadinho de saudade, até porque saudade não é coisa de se saber, é coisa de se sentir. E eu senti-a muitas vezes, ainda hoje a sinto e sempre fiz dela a tinta deste livro. Mas como é que posso ter tantas saudades se nunca fui feliz? Como é que posso ter passado tanto tempo no passado sem que ele alguma vez me tenha sido bom? Como é que o meu passado não há de ser real?... A cada momento perco-me em cada detalhe de cada momento. Às vezes não sei se tenho saudades ou se tenho apenas mágoa, não sei se me dói saber que um dia fui feliz ou se me dói porque nunca serei tão feliz como fui, e em tudo isto, em toda esta permanente contradição, confesso que às vezes nem sei se o meu passado é real... Tenho uma tendência estranha para aceitar todos os maus momentos como realidade, e todos os bons momentos como ficções da minha memória. Nunca fiz de nenhum lugar do mundo a minha casa, e talvez por isso é que tenho saudades de tudo ao mesmo tempo. A única casa que posso dizer que tenho é os meus pensamentos, e as minhas páginas, e os meus sonhos, e capturando todas estas coisas numa só, tenho ainda as minhas memórias, que nunca me hão de deixar. Porque mesmo que me desfaça de tudo, mesmo que me force a esquecer, mesmo que os anos me obriguem a esquecer, eu sei hoje que existi no mundo porque não existi sozinho, e as minhas memórias não são só minhas, são também de todas as pessoas com quem as partilhei... Este livro é a minha casa, mas só hoje é que me apercebi de que esta minha casa nunca esteve vazia. Toda a gente que conheci e toda a gente que só vi à distância, de todos eles roubei inspiração para escrever o que escrevi, todos eles vivem na minha memória, mesmo que me deixem na minha vida. E porque não poderia ter escrito este livro nem qualquer outro, e nem sequer poderia ter sido feliz um único dia sem as pessoas do mundo, sinto agora por todas elas um profundo agradecimento que nunca poderei retribuir.

§

Por um momento esqueci-me do que queria falar, tive de reler do início do texto até aqui para me relembrar. Queria falar de dias de chuva, o espírito dos quais sempre tentei incluir nas minhas páginas, e por mais do que um motivo. Um dos motivos principais seria o conforto que nos traz estar em casa tranquilos e rodeados de tudo aquilo que precisamos e que gostamos durante um dia de chuva. É o quente em contraste com o frio, a secura em contraste com a humidade, as paredes em contraste com o vento, o fogo da lareira em contraste com a água da cidade... Ocorre-me agora que no segundo dia de aulas do meu terceiro ano de universidade apanhei tanta chuva e arrependi-me tanto de ter saído de casa que quando regressei tomei um banho quente e não voltei a sair de casa durante o resto da semana... Eram dias em que eu podia fazer isso sem me sentir mal mas eram também dias em que ter feito isso não me trouxe nada exceto arrependimento. Bem, também por outro lado até me recordo de alguns dias solitários que passei em conforto, mas a verdade é que isso é uma outra ilusão, a verdade é que sempre fiz tudo mal, sempre gostei dos dias de chuva porque é sempre bom ficar em casa quando eles chegam, mas eventualmente cansa-me estar em casa, e depois quando quero sair apercebo-me de que, ou tenho tanto medo de falhar e não consigo, ou vejo que nada vale a pena e nem sequer tento. E é nessa indecisão que eu crio uma fantasia. Imagino-me independente e confiante, talvez até bastante rico, e vivo num apartamento bonito e confortável, com tudo o que preciso lá dentro, que sinceramente nem sei bem o que é mas sei que careço do que quer que isso seja. Eventualmente chega uma sexta-feira, talvez ao final da tarde, durante a qual toda a gente desta minha cidade tem de se fechar em casa durante o fim de semana, que trará consigo uma grande tempestade, mas ela, não a cidade nem a tempestade mas sim a rapariga desta minha fantasia, ela sugere-me que passemos o fim de semana juntos, em minha casa, e quando toca à campainha nessa sexta-feira ao final da tarde eu abro-lhe a porta e penso em como já lhe devia ter dado uma chave... Mas talvez o mais bizarro seja que a partir daí a fantasia me escape, a partir daí já não sei mais. Sei o que é ansiar por alguém, sei o que é ficar contente e sossegado quando ela chega, sei o que é querer o meu lugar no mundo mas ainda mais se esse lugar for partilhado com alguém especial, mas depois não sei mesmo mais nada, e nem na fantasia chego perto dela. Não a beijo, não a abraço, não damos a mãos, o tal fim de semana nunca chega, nem a noite de sexta-feira, nem sequer a tempestade... Não sei quem ela é, não lhe sei o nome nem a cara nem o cabelo, mas sei-lhe o gesto com o qual ela despe o casaco encharcado e descalça as botas de inverno. Só lhe sei os gestos porque já os devo ter visto antes, em qualquer lado ou em qualquer alguém, mas tudo o resto é-me irreal. Ela simplesmente não me existe e eu nem sequer sei onde estou... Olho para a minha janela e vejo que está tudo cinzento, mas não vejo a chuva, nem a rua, nem as casas, nem ninguém lá fora. É como se nesta fantasia eu tivesse morrido e estivesse agora para sempre no purgatório. Mas já escrevi algo sobre isso e só o escrevi porque nunca me atreveria a falar sobre isso com ninguém. No entanto atrevo-me a escrever e a publicar e a querer que alguém me leia. É uma contradição estranha. Por um lado sou tímido e escondo-me, mas por outro lado anseio publicar coisas que talvez devia esconder para sempre. Talvez seja mesmo isso, talvez esteja cansado de me esconder, talvez por isso é que agora quero publicar este livro como se o vomitasse, ou talvez, para usar uma metáfora mais bonita, é como se fosse eu a chegar a casa dela, e ao entrar despisse o meu casaco encharcado... Quero fazer deste livro um longo dia de chuva para que o dia seguinte seja de sol, quero que finalmente a minha vida comece, num dia quente e feliz... Sempre me escondi mas agora quero que alguém me leia como um livro, e por isso é que fiz de mim um livro, este livro... e se ele não for grande coisa é porque eu também não sou.

Acho que é por isso que regresso sempre aos meus dias de universidade, porque foi mais ou menos nesses dias que comecei a escrever este livro. Sempre o carreguei comigo todos os dias, desde aquele intervalo entre os meus dezassete e dezoito anos, num tempo em que eu devia ter sido feliz, mas fico agora na ilusão de que se finalmente o acabar poderei voltar a esses dias e ser feliz, mesmo sabendo tudo o que sei agora. Mas não, isso é sempre impossível. Regressar agora seria como velho, como o filho pródigo do qual ninguém tem saudades, ou talvez pior ainda, seria voltar como alguém do qual ninguém se lembra... E essa é outra contradição minha, querer nunca ter existido ao mesmo tempo que não quero que ninguém se esqueça de mim... Quero que o meu nome valha a pena ser lembrado, quero que toda a gente com quem conversei ao longo da vida tenha uma história bonita a contar sobre mim, mesmo que tenha de se forçar um bocadinho para se lembrar de onde é que me conhece, ou do meu nome, ou dos meus olhos, ou se uso óculos ou não... Ele foi da minha turma neste ou naquele ano, ele foi meu aluno desta ou daquela disciplina, ele passava por mim na paragem do autocarro, ele cumprimentava-me quando entrava na minha loja, ele foi meu amigo, já não falávamos há muito tempo, mas ele foi meu amigo... Gosto de pensar que em tempos tive muitos amigos, gosto de pensar que nem sempre estive sozinho, mas em dias como este quem é que se lembra de mim? Qual é a diferença entre este eu que sou eu e alguém que nunca sequer existiu? Não sei, não sei o que dizer... Só sei que o meu quarto escurece à minha volta. É verão mas não será verão para sempre, porque no final de cada verão chega sempre a noite. Devia apressar-me a escrever isto mas perco sempre a noção do tempo, quer dizer, com este livro eu nunca tive tempo, muito menos a noção dele. Mas também pouco importa... Na minha memória terei escrito isto numa bela tarde de verão, com o sol a pôr-se ali no horizonte, tingindo a minha cortina de um dourado que se alaranja com cada palavra minha... As coisas são sempre melhores na memória do que na realidade, e até os detalhes desta minha fantasia me atormentam e só os consigo resolver se os remover da história. Porque na realidade o casaco encharcado dela pingaria água fria sobre o chão de madeira, que cada vez mais inundado apodreceria até desabar sobre o apartamento de vizinhos que não existem, e as botas dela estariam cheias de lama e de caracóis, e ao longo do tal fim de semana a dois ela incomodar-me-ia quando eu quisesse sossegar, escrever e estar sozinho... A verdade é que toda a gente nos desaponta, e isso quase que nem é um problema das pessoas, é um problema do mundo. Ou talvez seja apenas um problema do meu mundo, que é demasiado pequeno para dois. O meu coração é que é demasiado grande para um, ou por outro lado, e dito de uma forma menos sentimental, até a aritmética deixou de fazer sentido.

§

Enquanto me sentava na cama a ler, perdendo-me distraído por entre todas as linhas com todos os meus pensamentos do próximo verão, fui de repente relembrado dos tristes últimos dias do verão anterior ao meu segundo ano de universidade, dias durante os quais fui ocasionalmente consumido pela fantasia de ser abordado na rua por uma mãe que, acompanhada pela sua filha, me pediria direções até à faculdade de letras, a minha faculdade, e eu, respondendo que por acaso era para lá que me dirigia, seria então acompanhado por elas até ao portão e subsequentemente até à secretaria. E acho que esta ideia, mais do que a óbvia oportunidade de conhecer uma rapariga bonita e talvez tão tímida como eu, é de que com o final desse verão eu seria lançado outra vez ao mundo, a este mundo estranho que por sua vez me aceitaria como uma parte inerente dele. E então eu seria da minha cidade, eu seria alguém que faz daquelas ruas o seu caminho diário, eu seria alguém que sabe existir no mundo e que faz mesmo parte dele. Sentir-me-ia, pela primeira vez em muito tempo, como alguém que sabe o que está a fazer, como alguém que nasceu ensinado e que sabe agora o suficiente para fingir e ensinar. E ensiná-lo-ia a uma rapariga que estava na mesma situação em que eu estive exatamente um ano antes, esta coisa de ser de repente lançado a um mundo estranho mesmo não conhecendo as linhas de metro, nem as ruas da cidade, nem os proverbiais cantos à casa, nem as pessoas que lá habitam... Faria meu o nervosismo dela, partilhando-o porque talvez seja só a partilhar que se vence as coisas más do mundo, e gosto de pensar que seria confiante o suficiente para lhe perguntar pelo nome, e em que licenciatura se inscrevera, e de que cidade é que vinha, e por aí fora. Talvez até lhe daria conselhos básicos, um ou dois daqueles que eu gostaria de ter recebido no meu primeiro ano de universidade, conselhos que não só não recebi de ninguém como recebi até conselhos contrários que só me confundiram ainda mais, mas enfim. Depois daí gosto de pensar que esse encontro não seria apenas chance aleatória, gosto de pensar que essa rapariga estaria justamente na mesma situação que eu, e de que ela e a sua mãe estarem perdidas e decidirem pedir ajuda no preciso momento em que eu passaria por elas não teria sido só uma coincidência fria, das quais o mundo está cheio... Mas na verdade não foi nada porque, como quase tudo o que escrevi neste livro, não aconteceu, e agora que penso sobre isso, sobre todos os nadas que quis que me acontecessem, apetece-me escrever sobre as raparigas bonitas deste livro que nunca existiram, incluindo até aquelas que por acaso até existiram mesmo.

Quase que quero dizer que o meu objetivo aqui é atar pontas soltas. Estou como que a pescar pelas memórias deste livro em busca daquelas ideias centrais, daquelas ideias que se alguém um dia analisar este livro escreverá num bloco de notas como quem escreve uma lista de compras. E porque raparigas bonitas seriam tão omnipresentes como comprar pão e leite, concluo que elas são um tema essencial deste livro. Ainda assim, gosto de pensar que sempre fui superior àquilo que para os outros é tão importante, gosto de pensar que sempre fui de alguma superior ao normal, ao comum, ao genérico, ao carnal, mas na verdade sempre me deixei ser sentimental e sempre achei raparigas bonitas fascinantes... Escrevi muito mais sobre elas do que devia ter escrito, e ocorreu-me referir pelo nome aquelas raparigas cujo nome não me diz nada. E às vezes ainda me pergunto, o que é um nome?... Não é nada, não pode ser nada, mas à parte disso faz nascer em mim todos os desejos do mundo, digo eu agora roubando versos já que não posso roubar nomes. Um nome não me pode dizer nada porque não há ninguém real por detrás dele, não há ninguém por detrás das minhas fantasias que não seja só mais eu, só mais de mim. Por muito que me perca em ilusões do que é amar, a grande verdade é que nunca amei, e talvez nem sequer seja capaz disso. Encontrar ou reencontrar qualquer uma das raparigas sobre as quais escrevi sempre foi o meu maior desejo, mas também o meu maior castigo... Porque encontrá-la de novo apenas para a descobrir diferente de como eu me lembrava, menos bonita, menos simpática, menos interessante? Para isso mais valia permanecer para sempre triste. Mas encontrá-la mais bonita, mais simpática, mais interessante, mas tão completamente inacessível? Isso talvez seja pior ainda. Pelo menos no que respeita o meu coração sempre preferi uma ilusão bonita do que uma realidade feia, mas sempre que a possibilidade de uma realidade bonita me chegou aos olhos fiquei arrasado... Porque as raparigas bonitas também se sentem sozinhas, e como tal chega sempre aquele rapaz de quem elas acabam de gostar. É tão inevitável como tudo o resto que acontece a mim porque acontece também a todos, mas então a ideia a que quero chegar com isto é esta minha sensação estranha, que não obstante me enche a alma, de que o amor é só para as pessoas bonitas... No meu pessimismo convenço-me de que não existe uma única rapariga no mundo que seja bonita e que se sinta sozinha ao mesmo tempo porque isso constitui uma realidade, uma oportunidade, uma pedra assente no cimo da montanha, isso significa que se eu às vezes me sinto triste e quero alguém, então também essa rapariga se sentiria triste e quereria alguém. Mas esse alguém que ela quer nunca seria eu, por isso nunca me valeu a pena tentar. As coisas boas não me acontecem, as coisas boas do mundo não foram feitas para mim. E o pior de tudo talvez seja que, embora eu queira tanto rejeitar essa minha maneira de pensar, nunca o consigo fazer, não consigo ver o mundo exceto desta maneira superficial em que o vejo. Então para mim ficar desapontado com um desses tais encontros de chance seria só mais uma prova da realidade do mundo, só mais uma prova de como o mundo é tão frio e indiferente, e de como a sincronicidade às vezes vem para nos esfaquear.

E por falar na realidade do mundo, porquê fazer de raparigas bonitas um tema recorrente nas minhas páginas? Bem, o motivo imediato é simples, é somente uma contingência da minha natureza. Simplesmente acontece que me calhou ser assim, o que não é nada de especial porque eu poderia ter sido completamente diferente. Mais do que simples sexualidade, eu poderia até ter nascido sem qualquer tipo de interesse, poderia ter nascido com uma natureza tal que a ideia de namorar me chegaria ao coração como uma legítima e absoluta perda de tempo. Porque às vezes considero o amor como uma perda de tempo irracional, mas ainda assim há algo de estúpido em mim que me faz querer perder tempo com algo tão irracional assim. Tentei ser racional ao escrever sobre raparigas bonitas mas talvez não o tenha conseguido, quer dizer, pelo menos agora não me orgulho de o ter feito e até acho que algumas dessas minhas páginas antigas são apenas embaraçosas. Só que em vez de voltar atrás e desfazê-las antes que alguém tenha chance de as ler, admito o embaraço e continuo. Então se estas palavras vêm em jeito de atar pontas soltas estou a fazê-lo muito mal... E o que é que um tipo como eu, que não sabe nada de amor, pensa que pode escrever sobre ele? Na verdade nem da palavra gosto, pelo menos não da nossa palavra portuguesa. Aos ouvidos é-me estranha, ao peito é-me inexistente. Prefiro ouvi-la em inglês porque a versão inglesa também se usa num contexto mais leve e casual, como o de adorar qualquer coisa em vez de amar qualquer alguém, mas em português não o fazemos com essa mesma leveza. Eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos, vós amais, eles amam... Quantas vezes é que dizemos isso a sério no nosso dia a dia? Arrisco-me a dizer que muito raramente, e eu, de mim, para mim ou sobre mim, nunca. Evito a palavra como uma doença porque o amor é uma doença.

§

Tenho evitado este livro mas chega-me sempre um dia em que não tenho mais ninguém com quem falar. Por isso falo agora, mesmo sem saber o que vou falar, sem saber porquê ou porque não. E às vezes quando começo ocorre-me, mas só por um breve momento, que não me vou lembrar de como escrever aqui. Ocorre-me que talvez tenha perdido a minha voz, que não tenha mais coisas sobre as quais falar, mas mais tarde ou mais cedo lembro-me sempre de qualquer coisa. Talvez seja como andar de bicicleta, talvez a minha voz por entre estas páginas seja sempre a mesma, sempre diferente mas a mesma... Não sei porquê mas ainda antes de acabar essa frase passou-me pela memória a noite de passagem de ano do meu segundo ano de universidade, uma noite que passei sozinho, e lembrei-me de ver um filme e de encher o meu copo com um refrigerante de pêssego uma marca que acho que já nem existe. Por um momento pensei que essa noite do meu passado será uma noite do meu futuro, pensei que vou acordar deste purgatório para regressar ao meu passado. Porque só faz sentido que a minha vida até aqui tenha sido um longo presságio, um pesadelo que uma deusa traz ao herói no prólogo da sua grande odisseia... Este é o teu futuro, isto é o que te espera se não acordares, jovem argonauta, diz a deusa ao herói adormecido à sombra de uma palmeira...

Hoje passei o dia todo nauseado. Sim, porque só a náusea é que nunca me abandona, a náusea é toda minha, é o meu grande tema recorrente. E vim agora aqui para me queixar, vim enxugar as lágrimas nas páginas deste livro, deste meu livro, este meu desespero, este meu bebé... Quando a náusea acalmou deixou para trás uma tontura que ainda não me abandonou... A minha cabeça é um barco, e se eu inclinar o pescoço vou verter o mar pela orelha fora. Não tenho nada para fazer do dia inteiro, e quando chega a noite imagino que alguém me vem perguntar o que fiz e eu não tenho nenhuma resposta a dar. Genuinamente que não me lembro, apercebo-me de que o dia se tornou da mesma cor que o sujo dos meus óculos. Perdi a vida toda, não perdi? Alguém que me diga a verdade... Saí à rua hoje e detive-me a olhar para as varandas como se elas me fascinassem. Olhei para um vaso ao contrário e por um momento não sabia o que era, olhei em volta para as outras varandas e imaginei que lá dentro vivia uma rapariga bonita que gostava de mim, mas depois olhei para o degrau molhado onde eu estava e vi uma lesma preta. Tive o mesmo nojo por ela que a rapariga da varanda teria por mim, mas eu tenho o dobro desse nojo por toda a gente do mundo. Gostava que gostassem de mim mas não sei gostar de ninguém. Sei detestar, isso sei mais do que sei ser triste, nisso eu sou absolutamente perfeito. E também sei ficar cansado e sei não saber o que escrever... Gosto de pensar que este livro está para acabar, que está prestes a chegar à sua conclusão lógica, a partir da qual não faz sentido que a história continue. Gosto de pensar que isso é uma coisa boa, que depois da última página a minha vida vai melhorar, gosto de pensar que estão para chegar dias bons, que o meu tempo de ser feliz está marcado algures num calendário. Sim, talvez há de chegar essa data, mas de certeza que hão de chegar também datas infelizes. Lembrei-me agora de estar na cozinha do café da minha tia quando eu tinha onze anos, numa noite qualquer quando tudo estava limpo e desligado, e eu ali, a escrever no quadro preto que ela usava para apresentar os pratos do dia. Quase que sinto o frio do chão no qual me ajoelhava a escrever, quase que vejo o escuro do inverno quando olhei pela janela para descobrir que já era de noite, quase que me lembro do pó do giz verde, ou talvez laranja, que segurei por entre os dedos... Mas agora foi-se tudo embora, e a carne que compunha esses pratos do dia já há muito que se fez merda.

§

Entretanto não sei o que sentir. As pessoas dão-me os parabéns mas a palavra perde todo o sentido antes que a primeira sílaba me chegue às orelhas. Quando observo as outras pessoas nos seus aniversários noto a vontade que elas têm de celebrar mas não consigo deixar de pensar no quão fútil é essa vontade. Elas sentem-se quase que no direito de exigir um dia de festa, sentem que o merecem só mesmo porque sim. Eu sou o exato oposto, eu sinto que não mereço nada. Até o bolo de caramelo que eu tanto queria perdeu o seu sabor ainda antes que eu engolisse o primeiro pedaço... Mas enfim, aqui estou eu, a escrever o último texto de aniversário deste livro, mas não pelo motivo triste. Escrevo hoje o último texto de aniversário porque vou terminar este livro ainda antes dos meus vinte e sete anos. Sim, de uma forma ou doutra não deixarei este livro continuar na minha vida. Quer dizer, talvez possa escrever mais dele num segundo volume, isso é algo muito provável que faça porque não sei fazer outra coisa e também porque enquanto tiver coisas para pensar terei coisas que escrever, mas apercebi-me de que não consigo guardar estas páginas em segredo, e talvez nem deva... Porque eu não sou particularmente original, não sou especial, não sou único, é fácil sentir-me sozinho porque estou sempre sozinho, é fácil pensar que sou o único pessimista no mundo inteiro, é fácil achar que não há esperança para mim porque mais ninguém pensa como eu penso... Mas quem está sempre sozinho não está comigo para eu saber que existe, e quem pensa como eu não o diz em voz alta, ou se o diz não é compreendido e então sorri como se tivesse contado uma piada que mais ninguém percebe... O que estou a tentar dizer é que este livro não pode ser só meu, e este dia de aniversário, este dia frio e cinzento e triste, deve ser compartilhado. E apesar de eu já ter escrito dois livros que foram bastante ignorados, não desistirei. Tudo a seu tempo, acho eu... Irei então continuar este por mais um bocadinho, planeando terminá-lo precisamente numa data especial para mim, e a partir daí deixará de ser só meu. Será ele então ignorado também? Será visto como nada de especial? Talvez, talvez. Mas quero que este livro deixe de ser o meu mundo, e por isso hei de partilhá-lo com o mundo para ver o que ele me diz.

Talvez um dia este livro deixará de ser a minha maneira de estar sozinho, ou talvez deixará de ser a minha única companhia, e este aniversário de hoje será um dia fútil que afinal valeu a pena. E espero que toda a gente no mundo que alguma vez teve um aniversário triste seja capaz de acreditar que o seu próximo aniversário será muito melhor.

4 de outubro de 2020

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Não compreendo o tempo, não me compreendo a mim. Este verão está cada vez mais próximo do fim mas é como se ainda nem sequer tivesse começado, talvez porque não começou mesmo, pelo menos para mim. Ansiei pelo seu início porque achei que a minha vida seria melhor mas foi ainda a meio dele que comecei a querer que acabasse. Agora ainda tenho mais uns dias de verão mas sei que não hei de desfrutar de nenhum deles. Talvez até pudesse, pelo menos em teoria, mas não, não hei de desfrutar de nada. Às vezes penso que a minha vida nunca há de acontecer, outras vezes, quando me sinto mais estupidamente otimista, penso que ainda não é o meu tempo de ser feliz... Ocorre-me que mais ninguém, pelo menos ninguém que seja normal, pense assim como eu. Para as pessoas normais querer aproveitar a vida é fácil, é-lhes quase um imperativo, é algo que elas simplesmente querem, que sentem o direito de reivindicar, é algo que lhes faz um sentido que a mim nunca fez. Porque se a vida é uma dádiva então querer mais dela só pode ser estar insatisfeito com o presente. Eu nunca soube o que é aproveitar a vida, e o dia de hoje, este dia de verão que mais me parece de inverno, deixa-me tão confuso que só quero que acabe rápido. Porque se não compreendo o tempo não compreendo nada.

Em dias como este sinto-me gradualmente consumido por uma infinita curiosidade por toda a gente. Quero saber onde estão todos e o que estão a fazer, quero saber tudo sobre todos, mesmo que a resposta me aborreça. Mas não sei é que resposta quero, não sei se os quero felizes ou tristes, não sei se os quero a aproveitar a vida ou a desperdiçá-la tão miseravelmente como eu, não sei se os quero perto de mim ou longe o suficiente para que nunca mais os veja ou oiça... Porque quando os vejo invejo-os, às vezes até os odeio e quero que morram, e às vezes até fico com vontade de ler sobre coisas más que aconteceram a pessoas boas, pessoas com vidas tão felizes e banais que até enjoam... Mas outras vezes só quero que venham ter comigo ou então que me convidem a ir ter com eles, às vezes saio à rua num dia como este e se não me cruzar com ninguém fico parado a pensar que o mundo acabou. Se o mundo acabasse mesmo ninguém se lembraria de me avisar, e eu ficaria aqui assim, feito estúpido, como quem compra um presente para uma festa de aniversário para a qual não será convidado. Às vezes até gosto que chova num dia de verão porque me dá um prazer feio saber que ninguém pode ir à praia e ser feliz, mas também outras vezes penso que quando está chuva a chuva só cai em mim.

Não sei o que mais quero exceto escrever um livro mas não sei o que hei de querer depois de escrever um livro. Só sei que pelo menos isso é uma coisa que posso fazer sozinho. Porque escrevi um livro que, apesar de ser de contos é bastante íntimo, e depois escrevi um livro que, apesar de ser um romance é mais íntimo ainda, e agora escrevo este livro que não sei bem o que é mas sei que é do mais íntimo que consigo escrever. Há mais de mim nas minhas histórias e personagens e palavras do que na minha vida lá fora. Existo mais algures por entre qualquer um dos meus livros do que no mundo, sou mais real aqui do que nas bases de dados do meu país. Só que tal como sou invisível no mundo sou também invisível nos meus livros. Sempre quis escrever, sempre quis ser escritor, ainda que essa palavra sempre me tenha assustado, e agora que estou a entreter pensamentos de publicar este livro não sei se ele vale a pena. Sempre achei que as pessoas iam achar graça que eu tivesse escrito um livro mas afinal não, afinal não lhes é mais do que uma curiosidade. Na prática toda a gente ignora, consideram-se todos demasiado ocupados, o que na verdade significa apenas que as minhas páginas não são importantes que chegue para lhes ocuparem os tempos livres. Racionalmente não acredito, ninguém está assim tão ocupado quanto isso, e não há uma única pessoa no mundo, ou neste meu mundo pelo menos, cuja vida seja assim tão importante que não tenha tempo para ler um ou dois livros. A verdade mais simples é que ninguém quer saber, a verdade é que sempre que alguém professa não ter tido tempo está apenas a revelar que nas ocasiões em que teve tempo decidiu antes fazer outras coisas que achou melhores. É tudo uma simples hierarquia axiológica segundo a qual alocamos o nosso tempo, quer ele seja livre ou não, porque também a liberdade é uma ilusão. Chegamos tarde à aula de um professor que perdoa atrasos mas não chegamos tarde à aula de um professor que nos castiga pela nossa falta de pontualidade, chegamos tarde a um emprego que não gostamos mas não chegamos tarde a uma entrevista de emprego na nossa empresa de sonho, e chegamos tarde a um encontro casual entre velhos amigos mas não chegamos tarde a um encontro romântico com uma rapariga bonita... Enfim, encontramos tempo para aquilo que queremos a sério, mas depois estamos sempre muito ocupados para aquilo que não encontra o seu lugar no topo da nossa hierarquia. E sendo assim, eu tenho de querer saber dos meus livros a dobrar. Quando os escritores antigos morriam eram os seus amigos mais próximos que salvavam, editavam e publicavam os manuscritos, mas se eu morresse agora nem sequer os meus livros já publicados encontrariam leitores. E quanto aos meus manuscritos, esses seriam logo desfeitos sem sequer pensar duas vezes porque está toda a gente muito ocupada. Por todos esses motivos e por mais alguns, eu, que nunca soube o que quis da vida, sei que quero ser escritor. Do mundo já rejeitei tanto que rejeitar agora tudo o resto é uma escolha fácil. Gosto mais dos meus livros do que do mundo, mesmo que eu seja o único no mundo que gosta dos meus livros.

Naquilo que já escrevi até agora tentei sempre ser honesto. Ainda assim, houve muitos detalhes que considerei ocultar, detalhes pessoais, verdades íntimas que me fazem sentir nu perante o mundo. Mas a minha hesitação foi tão ingénua como foi desnecessária, subestimei o quão indiferentes as pessoas são capazes de ser, e a partir de hoje não culpo ninguém exceto toda a gente. Agora quando encontro um detalhe íntimo e embaraçoso deixo sempre estar porque nunca ninguém o vai descobrir. E então se o mundo não me quer a mim, se o mundo não quer que eu viva uma vida normal, se o mundo não quer os meus livros, será então que vou parar de os escrever? Não. Os meus livros são mais importantes para mim do que a minha vida, mesmo que, tal como a minha vida, não sejam importantes para o mundo, e aliás, eu ainda tenho ideias para mais dois ou três deles... Por isso é que fico aqui sozinho, a deixar que passe mais um verão, a escrever um livro estranho que provavelmente nunca encontrará a sua casa. E se até eu próprio não encontrar a casa deste livro, então ao menos que lhe encontre o fim, que se não estiver breve não sei onde estará.

Desfiz a minha alma e guardei os pedaços em cada uma das minhas páginas, mas ninguém quis saber porque eu não tenho uma alma.

16 de agosto de 2020

§

Hoje esteve tanto calor que nem se podia andar lá fora... Hoje foi um daqueles dias de verão que me fazem pensar que toda a gente no mundo soube viver da melhor maneira, com todo o tipo de sensações para com todo o tipo de coisas, um daqueles dias em que estar sozinho em casa é um colossal desperdício de tempo, mas eu desperdicei o dia de hoje tal como desperdicei o resto da minha vida... Racionalmente tenho de assumir que não fui o único, racionalmente tenho de partir do princípio de que, estatisticamente, muitos desgraçados como eu estiveram em casa sozinhos nesta segunda-feira quente, e muita mais gente esteve no trabalho, numa fábrica feia e barulhenta, ou talvez num escritório cheio de tédio, tinta, e rugas na cara. Eu sei que não posso ter sido o único desgraçado mas é como se tivesse sido. Porque pela mesma medida de racionalidade com a qual penso em coisas feias tenho de partir do princípio que também houve gente feliz, gente que passou esta tarde numa casa idílica, a saborear comida boa, a sentir uma brisa fresca na pele, deitados na cama de um quarto perfumado e bem iluminado com o calor de um sol perpétuo. Há de certeza alguém melhor do que eu, isso é uma verdade plenamente racional, nem até revoltada com a minha inveja irracional. Porque tenho tanta inveja de tudo e de toda a gente, até daquelas pessoas que desconheço, e mesmo tendo tanta inveja não quero querer absolutamente nada... Olá, sol! Adeus, sol!

Fui passear o meu cão ao final da tarde. O pôr do sol iluminava as ervas, a brisa fazia-as dançar, o azul e o verde eram a melhor combinação de cores do mundo. E o que fui eu passear o cão para ver? As canas abanando ao vento? Fui e vi. Ao regressar, antes de emergir do atalho de terra batida rodeado dessas ervas e canas, olhei para trás e desejei ser fotógrafo. Imaginei ajoelhar-me naquela terra cuja poeira o vento levantava em espirais, imaginei ajoelhar-me, ou até deitar-me nela se fosse preciso, até porque eu também não estava particularmente bem vestido, tudo sem qualquer vergonha apenas para tirar uma fotografia bonita, uma pintura daquele sol sobre aquelas canas, com as casas ali ao fundo da rua, o campo já verde e quase pronto para a colheita, e o muro de pedras pelo qual eu passava nos meus regressos a casa durante os dias da universidade... Quis ser fotógrafo só para guardar para sempre aquele momento, quis ser fotógrafo para poder partilhar a sensação de estar naquele caminho naquele dia debaixo daquele sol, quis ser fotógrafo só para ter algo bonito para partilhar com alguém. Até quis que alguém me tivesse visto ali, assim ajoelhado e sozinho, com a câmara na mão, e me viesse perguntar o que estava eu a fazer, certamente uma daquelas perguntas estúpidas e óbvias que tanto me irritam mas que às vezes tanto quero que me façam. Mas não sou fotógrafo nem ninguém me perguntou nada. A rua esteve sempre deserta exceto por uns ocasionais condutores de óculos de sol que me fazem pensar, os homens, que são todos meus amigos da universidade, e as mulheres, que são atrizes famosas de uma época passada. Mas tanto uns como outros e como toda a gente no mundo, eles apenas passaram por mim só por passar, e prosseguiram então para as suas vidas cujo sentido, se é que existe mesmo, ainda me ilude... Porque o mundo inteiro passa por mim como quem passa por um autocarro parado que não pretende apanhar.

E mesmo que eu fosse fotógrafo nunca conseguiria capturar o que quero descrever. Não sei muito, aliás não sei nada, de fotografia, mas presumo que, como com toda a arte, seja preciso algo mais do que equipamento de qualidade e algo mais do que técnica propriamente dita. Presumo que seja preciso também uma sensibilidade artística que eu simplesmente não tenho. Porque quando vagueei por ali, a deixar que o meu cão me levasse pelo caminho como quem fuma um cigarro à porta de um restaurante, parei para olhar o céu, tão azul e sem nuvens, que mais parecia um cenário de teatro pintado sobre mim, e vi o sol tão laranja que o quis partilhar com alguém, e senti o seu calor sentindo-me incapaz de sentir calor. Senti aquilo que imagino que as pessoas felizes sentem quando dizem que se sentem vivas, mas não sei o que isso é. Em mim tudo morre antes que nasça. Não tenho sensações que não me sejam breves, mas quero tanto ter tantas sensações... Por isso é que passei grande parte da tarde deitado na cama. Tentei adormecer, quis adormecer, porque só em sonhos é que sinto a vida, mas não consegui porque quase nunca consigo dormir a meio da tarde. E então, deitado na minha cama vazia, a ouvir o vento soprar para dentro do meu quarto escuro e feio e sujo, o meu quarto que planeio amanhã limpar compulsivamente mesmo sabendo que isso não vai fazer diferença nenhuma, deixei-me imaginar que não estava sozinho... Imaginei que estava deitado aqui com alguém, com uma daquelas raparigas bonitas mas impossíveis de descrever, impossíveis até de conceber com qualquer nitidez mas cuja sensação delas é mais nítida do que tudo o resto à minha frente. Imaginei que eu era precisamente um daqueles idiotas que tanto invejo, imaginei que tinha uma tarde de verão inteira para passar com aquela rapariga bonita. E eu quis senti-la, aqui e agora, na minha cama, sentada ao meu lado, a falar para mim como que das alturas, quis ver a cara dela quase que obscurecida como um eclipse na janela, e quis sentir as palmas das mãos dela sobre o meu peito, quis beijar-lhe os pés, quis desperdiçar a tarde toda com ela e isso é que seria aproveitar a vida. Quis fazê-la rir, quis ser extrovertido e excêntrico para a entreter o dia inteiro, quis ser aquele que só ela conhece porque só sou assim quando estou sozinho com ela... E se eu ficasse melancólico, porque mais tarde ou mais cedo fico sempre, imaginei que ela me perguntava – Estás triste? Queres que me vá embora? E eu diria logo de impulso – Não, não quero. E essa resposta seria a única vez na minha vida em que mostrei ambição, a única vez na minha vida em que soube o que dizer, a única vez na minha vida em que me senti triste mas quis deixar de me sentir triste.

Mas como quase tudo neste livro, nada disso aconteceu. Quase todas as minhas páginas são fúteis porque se a minha vida é ficção então as minhas páginas não hão de ser realidade de certeza... São fantasias, são infantilidades, são a minha inveja em ação. Não são mais do que sensações na carne impulsivamente levadas ao exagero desta minha imaginação. E mesmo que esta não seja uma fantasia particularmente irreal, mesmo sendo uma fantasia que tanta gente neste mundo experiencia, uma fantasia simples e acessível que, aliás, tanta gente experienciou hoje mesmo, ainda assim eu não me imagino algum dia a experienciá-la... Porque o mundo não é para mim, ser feliz não é para mim, a minha felicidade não é deste mundo... Se a minha felicidade fosse deste mundo eu seria feliz, eu saberia estar aqui no mundo com a minha família e com os meus amigos e com os meus colegas de trabalho, e eu quereria ter uma casa e uma namorada e ir de férias com ela e tirar fotografias e rir e sorrir e ser feliz. Mas nem sequer sei quem ela é, esta rapariga dos sonhos que tenho quando quero adormecer. Ela é só uma fusão de todas as ninguéns do meu passado. Em tempos tive pelo menos um nome, mas agora não tenho absolutamente nada. E tantas vezes perguntei – O que é um nome?... mas nunca obtive resposta. Agora já nem sequer tenho nomes, só tenho a sensação de não querer fazer nada numa tarde de verão, só tenho a sensação de querer estar deitado na cama com alguém ao meu lado, num daqueles momentos breves que pelo menos na minha memória duram para sempre... E se esse momento tivesse vindo até mim hoje eu teria feito dele a minha vida inteira.

§


Isto foi uma coleção de sete excertos dos quatrocentos textos de Nostos.

Uma outra coleção de cinco excertos já foi publicada aqui.
Lê sobre a sinopse do livro aqui.

Os vinte e um desses textos escritos em inglês já foram publicados na íntegra, e podes ler um índice de onde os encontrar aqui.

Compra a tua cópia do livro aqui.

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