Às vezes, quando um sentimento de raiva se apodera de mim, imagino que surge na minha boca uma segunda boca que vem para me triturar os dentes todos, reduzindo-os a dez mil fragmentos que dão estalidos entre si com o ritmo de cada deslocação desse segundo maxilar estranho, e a minha língua é então dilacerada em pedaços de carne fria até se rebentar por completo, perfurada pela força implacável de uma mandíbula alheia, arrepiando-me com a pressão perpétua de mil esguichos de sangue que me arranham as gengivas, tudo para satisfazer a vontade de um outro ser dentro de mim... A minha língua é uma esponja velha, apertada com tanta violência depois de ter estado dormente num charco de águas verdes e estagnadas, durante uma eternidade mais dolorosa do que o próprio aperto.
14 de março de 2013
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ESTES DIAS ESCUROS DE CHUVA DE OUTONO
Hoje pensei naquele que é o único problema da filosofia e não me consegui decidir. Não há nada que eu queira exceto tudo. Vejo mulheres no metro que usam lenços na cabeça, vejo-lhes as caras tão cansadas e pálidas e acho-as infinitamente belas, tão belas a ponto de a minha alma se refrescar por um breve momento até que uma pura sensação de inveja se apodera de mim, e então desejo a mesma força de viver que elas têm. E se algumas delas até abandonam o lenço para revelarem os leves cabelos que se despontam de novo, então será que há alguma esperança também para mim? Não tenho resposta. Olho lá para fora e só consigo pensar nos versos de uma canção antiga – Summer's end, the leaves are falling from the trees, birds have flown, my love has gone...
Não há nada de nada. Não me deram o suficiente para que eu pudesse perder tanto quanto perdi. Nem sequer vale a pena estar vivo se é para ter esta dor de cabeça ao final do dia. Repito-me e não me canso de o fazer. Tenho cancro de ser eu. Matem-me se a felicidade dos outros desaparecer antes que eu morra. Não sei se consigo suportar uma outra troca de olhares anónimos, e pelos grandes lábios vermelhos daquela poetisa eu tenho todo o desinteresse do mundo, o desinteresse de amar perdidamente.
Quero ter o mundo às escuras sem ter de pedir a alguém que me agarre o braço quando eu quiser descer as escadas, porque não vale a pena incomodar uma outra vida, nem mesmo nos dias em que chove e o pavimento fica escorregadio. E não tenham pena de mim, não façam o que eu hoje fiz por um homem cego que vi na estação do metro. Às escuras estou eu, a luz do mundo é toda dele. Não contem comigo enquanto eu não contar, ou se o fizerem então saibam que não valho a pena. Sou as lágrimas à chuva que ninguém vê chorar. Não faço parte de nenhuma legião, os meus legionários abandonaram-me. Eles só permanecem aqui porque sim e eu só estou aqui por não ter onde ir se não me apetecer cá estar mais. A fé aborrece-me, não a tenho nem me interesso em a ter. Isso ainda é motivo de orgulho... Por entre tudo o que penso e escrevo, não peço quaisquer desejos. Só quero do mundo aquilo que houver no mundo.
Estou de novo a contar. Foram três as vezes em que pensei, com alguma demora, naquela palavra do Albert Camus... E ainda não a consigo dizer sem eufemismo, falta-me aquela força vazia do Karamázov primogénito. Pelo menos ele tem força para a dizer em voz alta, eu só tenho uma dor de cabeça e alguma tinta na caneta. Custa-me acreditar que exista alguém como eu, alguém cansado e triste como quem só vive para estar vivo, mas talvez até haja. Hoje contei piadas e senti-me miserável ainda antes que os meus amigos se acabassem de rir delas... Continuo sem respostas, e agora só consigo pensar nos versos de um poema – She’s glad the birds are gone away, she's glad her simple worsted gray is silver now with clinging mist... Eu pensava que ia ficar contente também. Passei o verão a ansiar por este dia e afinal este dia não prestou... A deceção continua e fico cada vez menos surpreendido. A felicidade é o horizonte, feliz é quem sabe estar quieto porque qualquer lugar é o horizonte. Mas eu não sou horizonte para ninguém, nem para mim mesmo. Nunca soube onde estar.
Imaginei que a minha caneta escorregava na página e então a senhora sentada ao meu lado iria olhar e, quem sabe, iria sorrir um sorriso de cortesia. Se tivesse acontecido tal coisa eu teria apontado para a página borratada e diria – Não faz mal, não presta e não... E vivo a vida assim. Estou constantemente a sonhar acordado, nunca disse todas as palavras que sonhei dizer, nunca encontrei os velhos amigos que sonhei encontrar, nunca amei as raparigas que sonhei amar, mas em sonhos falei-lhes tanto e tão eloquentemente... Encontrei tantos amigos trazidos pela maré da nostalgia, amei tantas raparigas que me amaram de volta, sonhei conversas inteiras com todos os seus pequenos gestos e adjetivos e idiossincrasias, vi uma rapariga e sonhei acordado que ela se tinha sentado ao meu lado para ver o que eu escrevia, e quando a deixei ler este caderno ela gostou de todas as minhas palavras...
Não fui feito para a vida e por isso não a vivo, eu sonho-a mas fico sempre cansado dela. Este absurdo corroí-me, esta náusea paradoxal de tudo o que faço ou sonho. Agora chega de eufemismos, a verdade é que enquanto chegava a casa quase que chorei ao pensar no paradoxo do suicídio. Ocorreu-me que só me sentiria verdadeiramente doente se alguém tivesse pena de mim e me ajudasse, mas também pensei que a dor seria insuportável se ninguém se preocupasse comigo e me deixassem sangrar só porque sim... E a meio desse pensamento o senhor da paragem do autocarro olhou por cima do seu ombro, acenou para mim e disse-me até amanhã. E eu respondi instintivamente, em voz alta e assertiva – Até 'manhã!
E depois continuei.
15 de setembro de 2014
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MAS SERIA EM VÃO DIZER-LHE ASSIM
Sento-me aqui e agora, nesta sala vazia da minha universidade, à espera do início da aula enquanto escrevo e penso sobre esta folha de papel ainda em branco. Voltei a trazer o meu Robert Frost para reler o meu poema favorito, My November Guest, o mesmo que descobri antes do início deste meu segundo ano de filosofia deste meu curso tão estúpido e inútil mas sem o qual agora não imagino a minha vida. Comecei este ano a encontrar conforto nesse poema em particular e achei que no final do verão ele iria trazer a minha felicidade. Pelo menos é assim que interpreto o poema... Hoje trouxe o livro como em algumas outras ocasiões trazia comigo livros que me suscitavam nostalgia por um momento simbólico qualquer. Sei que o fiz com o Livro do Desassossego mais do que uma vez, e acho que escrevi sobre isso algures. Agora pondero sobre esta página e imagino se, quando a tiver preenchido com tinta, estarei a contemplar um belo texto sobre a mudança e a saudade, sobre o verão e o inverno, sobre estar sozinho e não estar, enfim, um texto a sério, num livro a sério, da autoria de um escritor a sério... Mas não sei e nem vou pensar mais nisso.
Hoje, na minha pequena odisseia até aqui, decidi tomar o mesmo caminho exato que percorri da minha primeira vez, e lembrei-me da tristeza feliz que senti debaixo daquele céu cinzento de outrora. Parei na rua, olhei em frente e lembrei-me da primeira vez que um vagabundo, batizado com o mesmo nome que o meu, me intercetou e, com alguma agressividade retórica, ou melhor, com ameaças veladas mais tarde retiradas por piedade, pediu-me dinheiro. Mas piedade também eu tive porque ele até me mostrou as suas feridas nas pernas para provar que era seropositivo. Lembro-me de me sentir constrangido e de encontrar o olhar de repulsa na cara de uma transeunte da qual agora não me recordo de mais nada. Dei cerca de dois euros e meio a esse vagabundo e cheguei atrasado à aula de epistemologia. Numa outra ocasião, poucos dias depois, ele aproximou-se de mim quando eu estava sentado num banco no centro da cidade a conversar com um amigo, e até disse lembrar-se de mim, disse que se lembrava das boas pessoas. Não desconsidero a hipótese de ele ser um bom retórico mas essa sentença pareceu-me genuína, ou pelo menos eu quis que assim fosse, por isso dei-lhe dinheiro mas não me lembro de quanto. O meu amigo deu-lhe algumas moedas também, assim como um cigarro, acho eu... Um outro dia encontrei esse meu novo amigo vagabundo de passagem. Estávamos ambos com bastante pressa, eu para assistir à aula, ele para ir não sei onde. Foi dessa vez que lhe perguntei pelo nome, ele disse-me e acrescentou, em jeito de lamentação, que lhe custava andar. Devo ter-lhe dado um euro e cinquenta cêntimos, não tenho a certeza. A última vez que o vi foi quando saía da universidade no final de uma tarde de inverno, que justamente por ser inverno já era noite, e ele pediu-me dinheiro para uma refeição quente, aliás, foi precisamente essa a expressão dele. Então eu dei-lhe três ou quatro euros e nunca mais o vi... Talvez ele tenha morrido, talvez até por minha causa, mas espero que não, espero que ele tenha seguido para uma cidade melhor, cheia de cidadãos mais generosos do que eu.
Apercebo-me agora de que todos estes incidentes são um ano mais antigos do que o olhar retrospetivo com o qual comecei a escrever isto. Como sempre, divaguei. Escrevi palavras mas fugi à questão e acabei por não dizer mesmo nada de jeito. Mas não tenho intenção de trair os meus pensamentos, e por isso, como sempre foi a minha filosofia com este livro, depois de escrito deixo estar.
Entretanto começou a chegar gente para a aula. Por isso parei de escrever mas retomo agora este texto, algumas horas de aulas aborrecidas depois... Penso no meu primeiro romance e apercebo-me muito, mas mesmo muito, aquém do progresso que imaginei para mim mesmo. Tinha esperanças de ter escrito muito mais, tinha esperanças de ter tido mais tempo, tinha esperanças de ter desperdiçado menos da minha vida. De qualquer das formas não me aconteceu nada. Não envelheci, só apodreci. Sinto-me cada vez mais doente ainda que com ocasionais momentos de felicidade. Não entrarei em pormenor porque hoje não estou particularmente triste, mas direi apenas que gostaria de ter feito mais... Enfim, estou convencido da minha intenção de que estou a escrever um livro simbólico e dececionante, até porque a minha vida é mesmo assim, e talvez a vida de toda a gente também o seja, isso não sei porque a vida dos outros sempre me iludiu... mas quanto a mim sempre fui aquele que prefere ficar mais longe, a ver os pequenos momentos do mundo.
Tenciono passar grande parte deste verão que se aproxima a escrever mas confesso ter medo disso. Aquela tal solidão que senti no verão passado fez-me aguardar pelo inverno que me chegaria como um beijo na testa. Aproveitei os breves dias quentes de setembro e outubro como se fossem o meu verdadeiro verão, como o meu tempo para ser feliz, mas foi só com a chuva e o frio e os céus obscurecidos que veio a calma. E vem-me agora à memória – My Sorrow, when she's here with me, thinks these dark days of autumn rain are beautiful as days can be... Às vezes sinto que morreu o que ainda vive, sinto as pessoas que mudam, que partem, que anseiam pelo amanhã tão cheios de convicção. Se não me sinto triste quando elas se vão embora é porque me sinto feliz ao ver alguém que sabe o seu lugar neste mundo. Eu não sei o meu, nunca soube nem o sei agora. Tenho inveja de quem sabe o seu mas nem sempre essa inveja me dói, só me parece tudo fútil e vão, é como se conseguisse prever o futuro próximo e vejo uma nova maré de vadiagem, eu a ficar outra vez sem qualquer rumo, sem saber o que fazer e sem coragem para mostrar o que tenho feito até agora.
Hoje decidi ir para a paragem do autocarro. Enquanto esperava pensei em todas as pessoas com quem partilhei uns anónimos minutos de silêncio naquela mesma paragem. Pensei particularmente numa rapariga com um olhar incisivo e penetrante, com lábios grossos e vermelhos mas que nunca os usa para sorrir. Aliás, ela tinha uma expressão decididamente severa... Lembrei-me dela porque houve um dia em que a vi com um lenço azul no cabelo, a chegar à estação de metro durante uma confusão técnica causada pela chuva. Ao achar que a viagem seria impossibilitada pensei em fugir à confusão e oferecer a essa rapariga a minha companhia, para que abandonássemos as nossas respetivas obrigações e fôssemos antes tomar um café. Mas não seria capaz de uma coisa dessas, não me reconheceria se fizesse isso... E lembrei-me dela também porque a costumava encontrar na paragem de autocarro, e como o autocarro estava, como de costume atrasado, fiquei indeciso durante alguns minutos até que decidi caminhar, e o meu primeiro passo foi logo dado com o pensamento – Ela não está aqui... Mas como que por destino ou por uma coincidência insignificante de todas as possibilidades e probabilidades, enquanto eu caminhava por uma longa rua em direção a casa vi essa mesma rapariga na beira do passeio. Ela estava de costas mas enquanto eu passei ela olhou para mim e eu para ela, e perguntei-me outra vez se ela me terá reconhecido... Foi um olhar mais longo do que um qualquer estranho lançaria a outro, penso que houve pelo menos um simples reconhecimento de me ter visto antes. E gosto de imaginar que ela percebeu a mesma coisa no meu olhar... Passei por ela mas olhei em frente, sentindo-me feliz pela coincidência mas mais feliz ainda por ela me ter reconhecido e saber que eu existo. Que não saibam quem eu sou já não me entristece tanto assim, a verdadeira surpresa é ver que as pessoas reconhecem que eu estou aqui. E ao contrário do meu amigo vagabundo, ela não teria maneira de fazer retórica com um olhar de relance, e nem sequer queria nada de mim porque eu não tenho nada para ela... Penso que o último dia em que nos vimos foi uma tarde de inverno em que eu, abrigado na luz do candeeiro de rua, escrevia no meu caderno preto, que entretanto foi destruído. Foi mesmo mais uma daquelas tardes em que eu não queria chegar a casa tão cedo e por isso deixei que passasse o autocarro da hora anterior para apanhar o meu autocarro do costume. E por qualquer motivo essa rapariga decidiu sentar-se ao meu lado, apesar de haver muitos mais lugares livres... E então ficámos só nós dois à espera do autocarro das seis e trinta e três, assim como dos outros estranhos familiares do costume, tal como, por exemplo, aquele senhor do meu prédio que no final do caminho de terra batida vira-se sempre para trás e diz-me até amanhã... Mas antes que toda a gente chegasse houve ali um momento em que só estávamos nós os dois, eu e essa rapariga bonita... Mas como sempre me fez sentido, escolhi escrever este livro em vez de falar.
E vejo agora que escrevi um texto inteiro em que não disse nada. Fico com a sensação de quem desapontou alguém que dispensou um pouco do seu tempo para aguentar até aqui, e fico também com a sensação de quem não é crente na verdade que conta em virtude da natureza rebuscada dessa verdade cheia de coincidências, ou talvez ninguém queira saber de nenhuma destas histórias ou as ache completamente ridículas. Nesse caso fico com a consciência tranquila, dentro do possível para mim, porque nunca fingi ser alguém com algo de importante para contar. Apesar de tudo, não sinto este dia como um dia final, como o fechar de um grande ciclo, como um momento a partir do qual serei uma pessoa completamente diferente. Talvez eu não me sentir assim hoje seja como rejeitar um pouco do meu pessimismo, talvez hoje eu seja mesmo feliz... ou talvez não.
Sobre este ano que passou, o melhor dia foi aquele em que fiz com que a Marta se risse das minhas piadas estúpidas, mas sobre isso já escrevi.
5 de junho de 2015
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Só penso em coisas feias sempre que vejo coisas bonitas. E até tenho um conhecimento racional das coisas bonitas que existem no mundo, mas de tanto me serem negadas começo a acreditar que não existem. Não vale a pena saborear comida nenhuma porque sabe-me tudo igual à mesma bílis que tenho no fundo da garganta. Até o mais simples ato de acrescentar sal à comida é-me agora fútil. Hesito sobre acrescentar um bocadinho de sal como quem hesita com a decisão mais importante da sua vida. Só como para não morrer à fome mas acabo na mesma por adormecer com fome e depois acordo a meio da noite com vontade de vomitar... Sair de casa nem me vale a pena. Se estiver frio, vai-me doer a alma pelo frio, se estiver calor, vai-me doer a alma pelo calor, se estiver lá muita gente, vou querer vir embora para estar sozinho, se não estiver lá ninguém, vou começar a chorar como um menino perdido no supermercado. Às vezes quase que choro em público e é por isso que eu escondo os olhos, porque este mundo bebe-me a alma pelos olhos. Hei de dar ao mundo as minhas lágrimas a beber.
Tanto quanto sei ninguém é feliz e tanto quanto sei sou eu o único desgraçado. Não quero do mundo aquilo que os felizes querem mas ainda assim invejo-lhes tudo o que têm. Vejo-os como se fossem amigos e amantes mas é como se a amizade e o amor para mim não existissem. Não há braços de ninguém neste mundo que se possam abraçar a mim, a circunstância simplesmente não se aplica. Não consigo nada nem ninguém me consegue a mim. Estar com alguém e ser feliz não me faz sentido, isso já há muito que deixou de ser uma questão de querer ou de conseguir, agora é tudo uma questão de lógica. As coisas bonitas passam-me pela cabeça e na teoria até parecem mais ou menos verdadeiras mas não se traduzem na realidade. Ninguém consegue sentir por mim o que sentem uns pelos outros, e eu só consigo fingir pelos outros qualquer coisa que imagino sentir. Ninguém me consegue tocar, mesmo sendo eu feito de carne e de pecado e de merda, e nem me quereriam tocar mesmo que conseguissem. A matéria que compõe o meu corpo não é normal nem eu sou humano, não consigo sentir nada porque me desfaço só a tentar sentir... Caminho para casa a passar com a mão pelas paredes de pedra, a arranhar as pontas dos dedos até imaginar que ficam roídas em osso. Passo pelo caminho de um armazém e imagino todas aquelas paletes cheias de mercadoria a cair por cima de mim sem que depois ninguém queira saber do meu corpo esborrachado, ninguém exceto talvez a senhora de limpeza que tem de se dar ao trabalho de me limpar sem sequer perder o apetite à hora do almoço. Hei de mostrar a minha alma ao mundo e hão de ver que eu sou invisível.
As coisas bonitas da vida aparecem-me à frente e eu perco-me em fantasias de as ter. Não consigo nenhuma delas e nem sequer consigo chegar ao fim de uma fantasia como quem não consegue ver um filme até ao fim... Sou impotente de querer ser feliz. Não sei onde há no mundo quem possa querer ser feliz comigo e cansei-me de tentar descobrir. Não hei de encontrar felicidade, a felicidade não me é feliz. De não sentir nada até um aperto de mão me começou a doer, até um sorriso simpático me começou a fazer sentir triste como quando um anjo chora por uma alma no inferno. E agora, de tanto tempo passar sem sentir nada de nada, quero sentir tudo de uma só vez... Há gente neste mundo que acha engraçado torturar animais, e eu começo a achar engraçado ser um desses animais. Preferia que me torturassem do que me ignorassem, preferia ser odiado do que não saber o que é ter alguém a pensar em mim sequer. Porque pelo menos tortura e ódio são sensações tão reais... Quem me quiser arrancar os olhos terá de me tocar na cara, quem me quiser odiar terá de pensar em mim... E da outra vez sonhei que me iam amputar as mãos e ninguém quis saber.
A vida é como se se masturbasse à minha frente.
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Alguns dias são maus e não sei porquê, alguns dias deviam ser avançados, alguns dias não são perdas de tempo porque não são nada... e hoje foi um desses dias. Quase que diria que ao menos como é inverno a noite chega breve, o mundo escurece cedo e eu posso fechar a janela do meu quarto para não ter de o ver mais. É engraçado porque no final do verão passado tudo o que eu queria era que chegasse o inverno, mas agora em pleno inverno só quero que regresse o verão. E quando falo em regressar falo com convicção, porque o que quero mesmo é que regresse um verão qualquer, um verão há muito perdido no qual eu, mesmo estando triste, era muito mais feliz do que sou agora... Tanto quanto sei a vida nunca fica mais fácil, tenho em mim todos os motivos racionais para aceitar essa premissa, mas ainda assim continuo a querer que esta fase da minha vida termine porque estou convencido, ou iludido, de que a próxima fase será muito melhor. É um paradoxo, eu sei, nunca deixou de ser um paradoxo, o tempo nunca me fez muito sentido. Estou perdido, não sei onde ir nem o que fazer para me mover em qualquer direção... E quantas vezes é que já disse que não nasci para isto? Não sei mas é verdade, é uma verdade que apenas repito porque talvez queira que deixe de ser verdade... Mas onde é que eu ia? Ah, a noite. Porque ela chega cedo nos dias de hoje, toda a gente se esconde de mim e por isso eu fecho a janela e volto-me para o meu quarto como se tivesse qualquer coisa de importante para fazer. E quando saio de casa numa destas noites frias não faço muito mais do que olhar para as janelas, quase todas fechadas e escuras, mas algumas emitem um laranja quente que só me faz pensar no quão boa deve ser a vida lá dentro. Mas para além desses detalhes irrelevantes a simples lógica é de que por detrás de todas essas janelas está alguém, uma família, um casal, ou até uma única pessoa qualquer sozinha, e perco-me ao imaginar que são todos felizes e saudáveis e ricos, ou que nem sequer existem, que são fantasmas que vagueiam pelos corredores, ou que são monstros estranhos que à noite se deitam nas suas camas e transformam-se em musgo, tal como li uma vez num livro de banda desenhada da minha infância. Às vezes gostava de atirar pedras a uma janela à sorte só para que alguém viesse dizer-me que eu existo através do ato de me insultar, outras vezes gostava que toda a gente morresse para que o frio fosse o meu único amigo, tal como li num outro livro de banda desenhada, da mesma coleção e da mesma infância. E em todas essas vezes entre uma coisa e outra eu não sei o que quero... Talvez o melhor seja mesmo ficar sozinho no mundo, a vaguear pelas ruas vazias em torno da minha casa, mas ao pôr do sol em vez de ao frio. Talvez seja assim o fim do mundo, um perpétuo pôr do sol, porque quando chegar o escuro já não estaremos cá para o ver. Não era algo assim que dizia o Epicuro? No meu primeiro ano de universidade estudei esse homem e até escrevi um ensaio sobre ele que agradou o meu professor porque fui dos poucos estudantes que não escolheu fazer o seu ensaio sobre o Aristóteles. Ainda me lembro do professor nos perguntar um a um, e quando chegou a mim suspirou de alívio e sorriu... E eu escrevi sobre o Epicuro e adorei, senti-me inteligente e útil, mas quando o semestre acabou começou então aquele que já descrevi como o pior verão da minha vida. Mas a ironia é de que esse pior verão da minha vida é hoje uma memória boa comparado com a minha vida de agora. Talvez só assim o seja porque nesta minha irracionalidade imagino que ao relembrar e ao querer regressar a esses dias terei uma chance de reviver os momentos bons, e uma chance maior ainda de salvar os momentos maus... Imagino que terei uma segunda chance de sair de casa naquele dia em que fiquei em casa e me arrependi, imagino que terei uma segunda chance de falar com aquela rapariga bonita a quem não disse mais do que duas palavras, imagino que terei uma segunda chance de aproveitar só mais um bocadinho daquela tarde que passei com os meus amigos e me aborreci, imagino que terei uma segunda chance de aproveitar só um bocadinho mais daquele pôr do sol que me fez doer os olhos... Mas nada é nada, não há segundas chances, muito menos para quem nem sequer quis as primeiras. A vida é uma grande perda de tempo, o melhor seria nunca ter nascido. Não foi isso que disse o Sófocles? Deve ter sido mas agora não me lembro e nem quero muito saber. Já vi que chegue do mundo para saber que ele é a mesma merda em todo o lado.
Ultimamente tenho tentado falar com menos palavras feias mas usei essa palavra feia porque nenhuma outra faria mais sentido. As palavras feias fazem perfeito sentido, talvez até mais sentido do que as palavras bonitas porque descrevem uma parte maior do mundo. Talvez seja por isso que quando conhecemos uma pessoa estrangeira perguntamos-lhe sempre por palavrões na sua língua, porque se vamos aprender uma língua nova é-nos mais útil e mais engraçada uma palavra que descreve uma coisa feia do que uma coisa bonita. Quanto a mim, sempre fiz das coisas feias a minha maior fonte de inspiração. Bebi dum esgoto e chamei-lhe musa, vomitei e chamei-lhe arte. Este livro é feio porque não pode senão ser feio, e o leitor que roubar uma cópia dele e a queimar terá o meu respeito. Há no mundo muitas mais coisas feias do que coisas bonitas, e eu enchi este livro com todas as coisas feias que encontrei pelo caminho. Só que nunca soube para que fim o fazia, o meu ato de escrever sempre foi como aquela lesma que vi hoje no passeio a arrastar-se em direção à estrada... Mas porque é que elas fazem isso? Porque é que os animais, dos quais nós somos parte e eu sou o pior, fazem coisas estúpidas como essa? Porque é que aquela lesma se arrastava tão lentamente em direção à estrada, ainda por cima durante a hora de ponta? Colocar-me na mente dela é uma armadilha que não sei se faz sentido porque não sei que tipo de mente ela tem, e porque se o fizer hei de me perder e nunca mais regressarei. Mas porquê? Qual é a teleologia disto tudo? Se nascer não presta então porquê continuar a existir aqui? Porquê passar de um pedaço de terra para o outro mesmo tendo de atravessar uma rua tão perigosa?... Se eu não tivesse nojo de lesmas devia ter pegado nela e trocado-lhe a direção para que ela se arrastasse antes para o campo, mas até isso seria uma crueldade, seria reiniciar-lhe a viagem, seria negar-lhe a chance de alcançar o que quer que estivesse do outro lado. Mas para quê arriscar uma morte tão violenta só para o alcançar? Talvez porque a alternativa seja mais violenta ainda, talvez morrer à fome ou sem deixar descendência seja muito pior do que qualquer tortura que o mundo possa oferecer. Pelo menos para os animais parece ser esse o caso, parece ser verdade que eles arriscam absolutamente tudo apenas para dizer que sim à vida, e mesmo conhecendo todos os dentes e garras e venenos, eles recusam-se a desistir... Na minha racionalidade, valha ela o que valer, não consigo deixar de ver nisso a maior estupidez do mundo, a maior mentira criada pela deusa cruel que é a natureza, uma mentira na qual todas as criaturas do mundo acreditaram. E eu, que nunca soube o que é isto de existir exceto que é uma coisa estranha, continuo aqui, a escrever este livro como uma lesma que se arrasta para uma morte certa.
Estarei então a comparar-me a uma lesma? A sério que foi a isso que cheguei? Parece que sim, porque se não há sentido no mundo dos homens então o mundo dos homens é igual ao dos animais, e já não há distinção entre judeus e gentios tal como não há distinção entre escritores e lesmas. As nossas tendências para escrever livros, cantar canções, pintar quadros e inventar o epicurismo não são de todo diferentes de mandíbulas numa aranha, ou tentáculos num polvo, ou antenas numa lesma. Então eu que escrevo será que posso falar dos meus livros como uma extensão da pessoa que sou, como parte da minha natureza? Talvez, mas apenas no sentido mais feio dessa verdade, porque as verdades do mundo, por serem tão imparciais sempre me foram tão feias também. Não devia ser assim mas é, e o universo à nossa volta não é assustador por nos matar, é assustador por ser um tão colossal nada onde coisas existem. E o mais engraçado de tudo é que não é preciso pensar assim tão alto para encontrar esse medo. Porque há terror cósmico no fundo de uma piscina, há terror cósmico no silêncio de uma estrada deserta, há terror cósmico num prédio cheio de gente mas com todas as janelas obscurecidas, e há terror cósmico em atravessar a rua durante a hora de ponta... Se não achas que o mundo é um lugar feio e frio então és tão estúpido e tão ingénuo e tão automático, ou talvez tão corajoso, como uma lesma.
E com essa frase insulto-te ainda mais, caro leitor. Olha que se quiseres queimar este livro ainda vais a tempo... Mas por outro lado, já que chegaste até aqui podias continuar, também já não te falta muito, e digo isso sem que eu próprio saiba quanto falta... Porque este livro ainda não está acabado, neste preciso momento a palavra seguinte ainda não existe. Essa frase faz algum sentido? Pelo menos fez enquanto a estava a escrever mas agora parece que o seu sentido morreu. Mais do que a lei da vida essa é a lei do tempo – tem de haver tempo para que tudo nasça, mas pelo mesmo tempo tudo tem de morrer. E então o tempo, que eu não compreendo em qualquer sentido, nem científico nem filosófico nem literário, porque eu não compreendo nada em nenhum sentido, não deve ser mais do que uma ponte entre nascer e morrer. Tudo nasce, tudo morre, e entre uma coisa e outra está o tempo. A ironia para mim é que sempre me foi mais fácil queimar pontes do que construí-las. Até neste preciso momento ocorre-me eliminar pessoas da minha vida com a mesma facilidade com que me quero desfazer de coisas velhas e partidas e inúteis... Porque são tudo objetos fúteis que só me prendem aqui, que não me dão sossego, que me atormentam quando me querem, quando não me querem, quando falam para mim e me pressionam a fazer qualquer coisa, ou quando me ignoram e são felizes à minha frente... Mas acho que acima de tudo o que não quero mesmo é ficar a ver, já fui espectador por demasiado tempo, e embora não me julgue sortudo o suficiente para um dia ganhar o que quer que seja, também não tenho muita vontade de desperdiçar a minha chance. Se tudo o que tiver do mundo for um troféu de participação então que assim seja... E por isso não hei de ficar sozinho. Há de chegar o verão e hei de acabar este livro que tenho escrito assim tão desnorteado como quem acabou de acordar, e depois hei de continuar com a minha vida, só mesmo porque sim, como uma lesma que atravessa a rua só para chegar ao outro lado.
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Isto foi uma coleção de sete excertos dos quatrocentos textos de Nostos.
Uma outra coleção de sete excertos já foi publicada aqui.
Lê sobre a sinopse do livro aqui.
Os vinte e um desses textos escritos em inglês já foram publicados na íntegra, e podes ler um índice de onde os encontrar aqui.
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