Ler Fernando Pessoa tem obrigatoriamente de incluir o Livro do Desassossego. Isso foi algo que aprendi na reta final do meu ensino secundário, com uma professora cujo nome e cara já nem me recordo. Recordo-me apenas de que ela referiu este livro muito de passagem mas com muitos elogios. Uns meses depois pedi uma cópia dele como presente de natal, e então passei grande parte do meu ano sabático antes do início da universidade a lê-lo, um texto de cada vez, muitas vezes sentado na estação do metro à espera de amigos. E foi com este livro que decidi que queria ser escritor, por isso aqui estou eu, a tentar sê-lo. Eventualmente desfiz-me da minha cópia original simplesmente por uma questão de conveniência, porque deixei de ser sentimental para com as coisas, mas tendo relido uma segunda cópia uns anos mais tarde enchia-a também ela de sublinhados e apontamentos. Recentemente, ao folhear pelas páginas fui procurando por parágrafos com mais marcas, e como sempre acontece já não me lembrava de muito. Isso é porque este é um livro que se pode ler cinquenta vezes, não é uma história nem sequer uma narrativa, é uma coleção de fragmentos que por sua vez são coleções de estados de espírito. Em tudo isso domina uma absoluta, melancólica e plácida honestidade, perpetuamente comunicada em demonstrações de eloquência que sempre caracterizaram todas as palavras que Fernando Pessoa escreveu... Sobre o meu trecho favorito deste livro já escrevi antes, num artigo que ficou abandonado como um pano molhado no parapeito deste meu blog, manchando-o lentamente, mas podia fazer isto o dia todo. Hoje escolhi o trecho que escolhi simplesmente porque li uma frase que me suscitou uma reação audível, como quem fala para o ecrã durante um filme. E se escolhi este texto podia ter escolhido qualquer outro porque é essa a natureza do livro. Logo o esquecemos para o ler de novo pela segunda primeira vez.
Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje – tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara –, que posso presumir da minha vida de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade?
Às vezes digo que é impossível viver no presente, digo que estamos construídos de maneira a viver em constantes conceções do futuro ou em antigas lembranças do passado. Digo isso como prova de que somos forçados a existir dentro do tempo mas com consciência de como as coisas seriam fora do tempo, como se algo houvesse fora dos limites além dos quais não deve haver mais nada. Mas bem, neste dia o autor discordou comigo, neste dia o autor só teve o presente porque lhe iludiu o futuro e lhe fugiu o passado. As subsequentes descrições de ambos são aquilo que Pessoa, ou neste caso Bernardo Soares, sempre fez de melhor, esta habilidade de capturar dois conceitos contraditórios, colocá-los em oposição e depois descrevê-los com uma eloquência que parece rimar. De facto o futuro é a possibilidade de tudo, é por vezes assustador pensar em todas as possibilidades de todas as variações de todos os caminhos de todas as decisões. Passamos a vida toda à espera que o futuro chegue, à espera daquele dia que chamamos de um dia destes, aquele dia que iremos viver tal como planeámos. Por vezes até corre bem, mas quando não corre é quando todas as outras possibilidades caem sobre nós como os grandes arrependimentos que são... O nosso passado é para sempre realidade porque está lá, imutável e permanente, mas de tantos arrependimentos é uma realidade que também já não existe, que já passou e que mesmo enquanto cá esteve não deu em nada. Esperanças o autor teria pelo futuro, saudades teria pelo passado, mas não tendo nem uma coisa nem outra sobra-lhe apenas o presente, sobra-lhe a esmagadora força do aborrecimento do seu dia a dia. Costuma-se dizer que o futuro há de ser igual ao passado, que as coisas seguem padrões e que os podemos identificar para adivinhar o futuro. E se assim for, porque é assim que o autor pensa, ele sabe, ou pelo menos acredita, que nada no seu futuro será como ele quer, nada fará mais sentido do que isto, e então somos deixados com a pergunta retórica que pressupõe uma decidida finalidade.
Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.
A nostalgia sempre foi querida ao nosso autor e poeta, até neste livro ela é uma das protagonistas, mas não o é nesta página. Neste dia nem o regresso ao passado, à infância talvez, ofereceu ao autor qualquer tipo de conforto, porque neste dia ele encontrou na vontade de reviver tempos mais simples e familiares toda uma inutilidade cujo sentido lhe escapou. E se a cada momento as possibilidades do futuro lhe fogem, então o seu passado enche-se com os fracassos daquilo que ele nunca foi. É como se se criassem memórias falsas por cada vez que ele ficou aquém daquilo que queria, e por isso a pessoa que ele é hoje não é real, é uma mera sombra do que ele queria ter sido. O facto de o autor aqui se considerar um vestígio e simulacro de si mesmo é muito reminiscente à descrição de Bernardo Soares como uma mutilação de Fernando Pessoa, muito como se todo este livro refletisse o autor original na sua forma mais honesta e crua, sem qualquer personalidade além daquilo que ele é quando está verdadeiramente sozinho, tão sozinho que até as suas memórias lhe fogem sem que deixem ficar quaisquer saudades por qualquer uma delas. Neste dia ele resignou-se para com o momento, para com esta incessante missão de sentir a vida. Mas todos os momentos passam, é a sua natureza, e aqui o autor descreve-a com a frase que me fez querer escrever sobre este trecho... É mais um daqueles oxímoros pessoanos que fazem sentido no ato de não fazerem sentido nenhum. Porque a história não pode continuar depois do final do texto, para haver um tem de haver o outro. Aqui não há nada porque embora o autor continue a existir é só mesmo isso que ele faz, e a história da sua existência cansa quando não há texto com o qual a encher. E então a vida deste homem foi muito como as páginas em branco deixadas no final de um livro, páginas que folheamos depois do último parágrafo só para ver o que há e depois deixamos para sempre em branco, incertos de porque é que sequer existem.
Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular – jardim público ao quase crepúsculo –, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam, nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.
Agora no final do trecho, que é só de dois parágrafos mas que eu dividi em três, o autor descreve o que vê à sua volta naquele típico existencialismo que sempre o definiu. Na minha cabeça gosto de imaginar que este trecho foi escrito enquanto o autor se sentava num banco da cidade, algures pelo jardim talvez ao final da tarde, talvez uma daquelas tardes de verão em que tudo à nossa volta anoitece mais devagar, tão devagar às vezes que pensamos que vai ser para sempre dia, até que eventualmente não conseguimos ver nada à nossa frente... A sombra da árvore, o som da água, a cor da relva, isso é tudo aquilo que ele sente porque é tudo aquilo do qual ele tem consciência. No nosso existencialismo perdemo-nos a pensar em como existimos tão pequenos num universo tão vasto, mas mesmo à frente dos nossos olhos temos um mundo tão grande que nunca o conseguimos ver inteiro de uma só vez. Então essa vista da cidade torna-se-lhe o universo onde ele existe, onde ele escreve para deixar que o tempo passe, ocasionalmente distraído pelo som de crianças a brincar, outro dos muitos detalhes que captura na página, tudo na constante tentativa de se sentir existir, de ter noção de que, porque a vida nunca pára, todo o tempo é tempo perdido. Nunca o recuperamos nem nunca o aproveitamos porque existimos pequenos, algures nos jardins de uma cidade cujo nome conhecemos mas que podia ser qualquer outra porque em todas as cidades a melancolia das ruas sobe pelas árvores altas e chega mesmo ao céu, àquele universo do qual não temos consciência, aquele universo que, por se fazer visível outra vez no céu noturno é muito como se fosse um céu completamente novo. Assim, a tal decidida finalidade é como que refutada. As estrelas não reaparecem, elas nem sequer renascem – elas recomeçam. Porque as estrelas não têm mais história do que serem estrelas, e não têm texto que se leia ou que se fale ou que se conte... mas têm uma história que recomeça todos os dias, no final do dia que é o final do texto.
Esta metáfora aplica-se a todo o livro porque este livro é eterno. A voz do autor ecoa por cada página, transcendendo qualquer linearidade até porque o livro nem sequer precisa de ser lido assim. E mesmo que seja lido assim, uma página de cada vez, o melhor depois talvez seja mesmo relê-lo à sorte, em busca de passagens sublinhadas que não nos recordamos de ter sublinhado, e apontamentos que não nos recordamos de ter apontado, e dúvidas que não nos recordamos de ter duvidado. Na minha memória escapa-me qualquer sensação deste trecho mas sei que devo ter sentido qualquer coisa porque senão não o teria anotado. Mas talvez isso até seja uma coisa boa em si, talvez isso seja prova de que, tal como este livro pode ser relido à sorte, muito depois da última página, também se podia continuar a ler o texto depois do final da história... Aliás, quase que nem há história aqui, e no entanto é um livro... Talvez também na vida não precisemos de texto, talvez baste existir aqui para fazer parte da história. Até porque quer haja ou não texto a seguir, a vida muda sempre de página, e não é por estar em branco que uma página é inútil. Aliás, se eu tivesse usado essas páginas em branco para tirar apontamentos poderia porventura ter escrito um segundo livro dentro deste, poderia ter enchido essas páginas fúteis com os pensamentos que só agora é que me lembrei de anotar. Porque desde que haja páginas haverá sempre texto... desde que alguém o escreva.
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