Naquilo que me parece agora há muito tempo atrás, porque infelizmente foi mesmo há muito tempo atrás, eu trazia algures comigo a imagem de bolas de sabão, certamente roubada a Fernando Pessoa mas não me lembro a que poema ou heterónimo. Não sei bem porquê mas é uma imagem que se provou recorrente em vários textos que escrevi nesse tempo cada vez mais distante do meu primeiro ano de universidade, alguns textos que guardei e outros dos quais me desfiz, e ainda bem. Só que penso que muitas vezes tentei capturar essa imagem das bolas de sabão em tons um pouco feios e desagradáveis, exceto talvez numa só ocasião... Foi uma tarde de janeiro em que, depois do exame final de filosofia antiga, no qual me esqueci de referir diretamente o método socrático, sentei-me na paragem do autocarro, tirei o meu caderno para escrever qualquer coisa, olhei para o céu e encontrei-o numa mistura de laranja e púrpura, cheio de nuvens em forma de ovelhas que me fizeram pensar num guardador de rebanhos, e lembro-me de achar que essa visão era um quadro realista, pintado por um pintor que não quis muito saber. Por qualquer motivo esta ideia das bolas de sabão esteve presente nos meus pensamentos, como se as próprias nuvens fossem bolas de sabão, e surgiu-me talvez porque evoca quase como que um aroma visual, uma sinestesia originária da simples verdade de que às vezes há coisas no mundo que são tão bonitas como são simples. E porque não há qualquer outra verdade por detrás disto, talvez o melhor seja mesmo admirar como quem não quer a coisa, passo a expressão, talvez porque essa coisa nem sequer exista mesmo, talvez tenha sido tudo um grande acidente... Mas não há verdade que diga que alguns dos acidentes do mundo não possam ser coisas boas.
Podia ter usado uma imagem genérica de uma criança a brincar com bolas de sabão... mas isto pareceu-me melhor
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Presumo que toda a gente a algum ponto na sua infância tenha brincado com um daqueles recipientes com sabão líquido e daquelas peças em círculos através das quais soprar, lançando bolas. Presumo que todos tenhamos brincado com um desses brinquedos num qualquer dia das nossas vidas mesmo que não nos lembremos hoje de nenhum momento em especial, mas quanto aos detalhes talvez nos lembremos de todos. Talvez nos lembremos, mais que do momento, da sensação, porque embora eu não possa agora falar de nenhum momento específico no qual, na minha infância hoje mais distante de mim do que a minha universidade, sendo que uma nem sequer chegou perto da outra e por isso nem sei porque é que as comparo, posso no entanto dizer que me lembro da sensação. Lembro-me do brinquedo, lembro-me de que alguns tinham umas bolinhas na tampa para abanar e rolar até as fazer cair nuns buracos como um pequeno jogo à parte, lembro-me do recipiente ser rosa mas a peça amarela, lembro-me da cor efémera da bola de sabão e lembro-me de como ela se formava no ar, cada vez maior à medida que eu lhe apanhava o jeito, até que muito de repente rebentava e deixava de existir. E digo tudo isto porque o versos de Alberto Caeiro são tão diretos que não permitem muita interpretação. Aliás, rejeitar a interpretação é justamente o objetivo. A verdade do mundo é então que essa criança, uma criança muito provavelmente real no mundo mas que, tal como a pequena dos chocolates à porta da tabacaria, já há muito se fez idosa e morreu, inspirou o poeta a escrever este poema, uma criança que sem saber e sem sequer querer saber fez mais filosofia do que todos os filósofos do mundo.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Os três adjetivos com os quais esta estrofe começa em descrição das bolas de sabão são essencialmente as três palavras-chave através das quais Caeiro vê o mundo inteiro. É-lhe tudo claro, tudo faz sentido porque a coisas apresentam-se simplesmente sem sentido, exceto talvez aquilo que é evidente e portanto carente de explicação, e é-lhe tudo inútil porque não há grande necessidade de usar as coisas porque fazê-lo seria uma transformação e uma transformação teria em princípio um objetivo, algo que ele rejeita porque não quer das coisas nada mais do que elas próprias tal como são, e é-lhe tudo passageiro porque tudo muda, nada é para sempre, e mesmo que haja na natureza uma inerente circularidade, tal como com as bolas de sabão, tudo passa até que desaparece para sempre. Então as bolas de sabão são amigas dos olhos, são agradáveis ao primeiro e mais imediato dos nossos sentidos, e aquele do qual Caeiro mais se inspirou para escrever. Até porque além disso, além daquilo que é captado pelos sentidos, não há nada. A única precisão que existe, tanto material como filosófica, é apenas o sentido evidente das coisas, além do qual não há nada. E é só mesmo com uma inocência inerentemente infantil que se descobre o sentido oculto das coisas... Pelo menos para mim é muito como se a poesia de Caeiro fosse um apercebimento de que a infância é, mais do que mera nostalgia, um lugar cheio de verdade sobre o mundo.
Algumas mal se veem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
No entanto, algumas bolas de sabão são ainda assim ilusórias aos sentidos, não se veem bem ainda que o ar a toda a sua volta seja lúcido e faça sentido. Num estilo que lhe é muito característico, o poeta descreve essa sensação com um novo apelo à natureza, pintando a imagem de um prado colorido no qual as flores simplesmente existem e abanam ao ritmo da brisa, muito ligeiramente, tão ligeiramente que quase nem se nota. Às vezes a brisa passa tão de leve que é como se passasse por nós também, mesmo por dentro de nós, através da nossa carne, e é só quando ela vai e já está longe que sabemos que ela cá esteve. Juntamente com a imagem das bolas de sabão, para mim curiosamente nostálgica, foi por estes últimos dois versos que escolhi escrever sobre este poema em vez de qualquer outro. Porque se há algo difícil de se fazer em literatura é dizer uma coisa difícil em poucas palavras, e das coisas mais difíceis de descrever seria precisamente esta sensação de que o tempo passa, de que as coisas nascem, acontecem e morrem à nossa frente e o seu sentido desaparece com elas, perpetuamente no preciso momento em que o estávamos prestes a capturar... Falhamos sempre, estamos sempre um bocadinho atrasados ou um bocadinho adiantados, nunca estamos onde devíamos mesmo estar. Numa palavra, falta-nos ver o mundo, como o poeta diz, nitidamente, e por isso é pena que essa sensação, esse momento proustiano que poderia também ser adjetivado com o nome de Caeiro ou Pessoa, tão raramente nos chega, e sempre que vivemos essa sensação logo ela desaparece, como as bolas de sabão cujo único sentido é serem bolas de sabão.
Posto isto, que é tão evidente que até custa explicar, fico sem perceber nada... Por um lado dá-me vontade de concordar, de tentar ver o mundo como este poeta o viu, e aliás, por um lado até concordo plenamente e faz-me sentido que não faça sentido procurar por sentido. Mas por outro lado há qualquer coisa que me escapa. Ocorre-me que é humanamente impossível viver verdadeiramente no momento, é impossível aceitar cada sensação como um fim em si mesma, como mais do que o início de um pensamento racional. Porque o problema de Fernando Pessoa sempre foi o pensar, sempre foi esta coisa de se perder na sua própria racionalidade que, por um motivo ou outro, sempre existiu como que fora do mundo, longe do mundo, em oposição com o mundo... Porque o mundo é tão racional na mesma medida em que não é racional, e voltar a pensar como uma criança seria a única solução, mas será isso possível? Ocorre-me que não, ocorre-me que depois de saber a verdade de que queremos mais verdade não é possível voltar atrás. Então mesmo que viajar atrás no tempo fosse possível nunca nos seria possível voltar a ser tão felizes e inocentes como outrora fomos. Para isso seria preciso esquecer completamente mas assim não teríamos uma infância à qual regressar... Enfim, seria preciso esquecer o mundo para se ser feliz no mundo.
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