Há sensivelmente um ano atrás ocorreu-me que não estava a escrever muito em português, e portanto decidi escrever uma série de cinco artigos consecutivos sobre o Fernando Pessoa e os seus respetivos heterónimos. E hoje, porque o tempo é um círculo e porque sempre me foi curiosamente confortável repetir os mesmos padrões quando a saudade fazia com que a ideia me passasse pela cabeça, decidi fazer precisamente o mesmo. É muito como um constante vasculhar pela memória, até porque em recordação dela os momentos maus, pelo menos às vezes, desaparecem, e relembrar os bons velhos dias torna-se uma meditação, ou um vício, ou talvez um sonho triste... Seja o que for, é algo que perseguimos, ou que pelo menos eu persigo, e o tempo torna-se-me como que um lugar do qual tenho tantas saudades e ao qual quero regressar, por muito impossível que isso seja, para sempre. Só que o mais engraçado é que isso às vezes nem parece assim tão impossível, às vezes parece mesmo que a saudade existe tão real, tão tangível, tão física, escondida num lugar ao qual podemos, em teoria, viajar... E isso explica, em poucas palavras, o porquê de desta vez ter escolhido este poema. É um tema recorrente encontrar em Fernando Pessoa descrições bonitas de coisas e sensações sobre as quais me ocorreram antes escrever, mas nunca em verso nem nunca assim tão bem. Com este poema isso não é exceção.
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Teria de reler toda a obra pessoana com um bocadinho mais de atenção para dizer isto com mais certeza, mas estou convencido de que esta ideia de uma ilha do sul surge como um outro tema recorrente. A imagem de uma ilha tem significado óbvio, sendo desde sempre uma visão do paraíso, de uma terra perfeita e tão longe do mundo, um lugar no mundo onde não há uma única das coisas más do mundo. Mas quanto ao facto de ser do sul não sei, talvez seja porque para nós o sul é um lugar quente e exótico, mas durante muito tempo este poeta viveu em África do Sul, sendo que o sul para ele seria então muito frio... Por isso não sei e nem sei se importa, o que importa é que este poema talvez seja um daqueles, senão mesmo aquele, no qual esta ideia de ilhas do sul é absolutamente central. E o que é mesmo essa ideia? Diria que é uma tão simples mas que, paradoxalmente, é muito difícil de definir. Isso seria porque, por um motivo que nunca compreendi inteiramente, é-nos sempre mais fácil descrever coisas más do que coisas boas. Descrições de torturas e de infernos são-nos demasiado fáceis de imaginar, e todos os utensílios que usamos para uma qualquer ação do dia a dia podem num outro momento ser usados para infligir muita dor... Mas descrições de prazeres e paraísos? Isso ilude-nos, quase como se o bem fosse uma coisa em si, um fim em si, uma coisa cujo sentir tem de ser apenas autoevidente para ser real. E então o que é esta coisa boa? É uma ilha que existe num sul impossível, um sul que não se encontra com uma bússola normal, uma ilha pela qual nós desesperamos em tanta ânsia, uma ilha que não vemos mas para a qual podemos quase apontar... Ali, ali, ali!... Mas claro está que o poeta não sabe se nada disto é verdade, não sabe se é sonho, se realidade, e esse ali parece às vezes que até muda de lugar.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego deem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Os primeiros três versos desta estrofe aludem a um típico oxímoro tão presente em tudo o que Pessoa escreveu. Deveria ser aparente que palmares que não existem e áleas que não podem ser não poderão nunca oferecer qualquer tipo de sombra, mesmo a quem, na sua ilusão, acredita que elas lá estão, nessa ilha que existe algures debaixo do mesmo sol que aquece o resto do mundo. Mas a primeira palavra na estrofe inteira é justamente a palavra “talvez” mas é um talvez que, repetido duas vezes no penúltimo verso, quase que oferece uma enorme força em acreditar, em querer sonhar e aceitar uma coisa boa como categoricamente verdadeira só mesmo porque sim, só mesmo para rejeitar o pessimismo. Porque em todos os heterónimos, talvez incluindo até Alberto Caeiro, é frequente encontrar versos tristes, versos sobre como o mundo não é um lugar bonito nem simpático nem mesmo confortável, e a felicidade é uma coisa tão impossível. Mas desta vez não, desta vez a ilha sobre a qual o poeta medita constitui um tempo e um lugar no qual talvez ele e quem quer que tenha sido a sua companhia foram felizes... Talvez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Só que claro está, como é certo e sabido em Fernando Pessoa, surge sempre o problema que ele nunca conseguiu resolver embora tenha dedicado a vida inteira a tentar. É esta sensação familiar de que tentar perseguir uma sensação é perdê-la, e esta ilha, que é tão real na imaginação num daqueles muito breves momentos em que respiramos fundo e por uma fração de segundo estamos mesmo ali, no lugar imaginado, na vívida memória de ontem, e sentimos que o dia de amanhã vai ser um dia de ontem como se fosse um dia seguinte... Mas logo se desvirtua, esta palavra tão estranha aqui mas que tão imediatamente captura tudo o que precisa de ser dito. Então já não mais queremos pensar na ilha, já tudo cansa, e o calor paradisíaco que imaginámos escapou-nos para deixar apenas o frio da noite. Porque o calor é sempre breve, o frio é que é para sempre. Afinal essa ilha será como todo o resto da realidade, porque se essa ilha existe então terá em si inevitavelmente todas as mesmas coisas más que se espalham pelo resto no mundo. Não há lugar no mundo que escape às coisas más do mundo, não há como fugir do mundo porque não temos escolha senão viver dentro do mundo. Por isso quaisquer ilhas do sul não podem ser a solução porque também nelas as coisas más não acabam, e as boas não duram... Então qual é a resposta? Onde pode alguém ser feliz para sempre?
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
É nesta última estrofe que o poeta rejeita todas as fantasias, aqui ele diz categoricamente que não é com elas nem com todos os seus detalhes imaginados que a alma se cura do seu mal mais profundo, que para ele seria a incapacidade de sentir. Talvez a tal ilha do sul não seja um lugar real no mundo, pelo menos não uma terra mas sim um lugar em nós mesmos... Talvez seja só em nós que possa haver um lugar assim, talvez cada um de nós seja um lugar no qual a vida é para sempre jovem e o amor sorri. E quem diz talvez a isso sou eu, não o poeta, porque pelo menos neste dia ele encontrou a resposta pela qual tanto procurava, e tendo-a encontrado concluiu que esta ilha paradisíaca dos seus pensamentos não é algo que não existe no mundo e só existe em pensamentos, mas é sim algo que existe nele próprio porque os seus pensamentos existem com a mesma realidade que o resto do mundo. Talvez a resposta seja algo assim, talvez a verdade seja mesmo de que todas estas coisas que imaginamos como fugazes e efémeras sejam realmente reais, com uma qualidade tão tangível como aquilo que tocamos com as mãos. E se não podemos usar as mãos para descobrir essa verdade só podemos usar a alma, mas para isso é preciso não a perder pelo caminho de um sul impossível.
E é mais ou menos isto que tenho a dizer, perpetuamente incerto se o que digo está correto ou minimamente próximo daquilo que o próprio Fernando Pessoa alguma vez quis dizer. Por isso é que chamo a isto de uma interpretação pessoal, quase que um devaneio ou um proverbial atirar à sorte, e é por isso inerentemente diferente daquilo que o próprio poeta talvez quis dizer... Não sei, mas também por outro lado ocorre-me pensar que numa ilha do sul como esta talvez haja uma continuidade da alma de tal forma fluida que ninguém seja diferente de ninguém, e o tal nós da segunda estrofe não seja só o poeta e mais alguém, tal como uma pessoa querida ao seu coração... Não, talvez seja mesmo toda a gente.
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