Escrevi dez artigos sobre o Fernando Pessoa, assim como os seus heterónimos, aqui neste blogue. Escrevi-os porque ainda tinha umas coleções dos seus poemas aqui na minha estante, e portanto achei engraçado folhear e dar uma vista d'olhos pelos meus apontamentos em busca de qualquer coisa para ver o que me vinha à memória com cada página. Nesse sentido sempre foi engraçado, como muitas vezes é, encontrar coisas que já não me recordava de ter escrito, e na tinta de uma caneta que já há muito secou e da qual já me desfiz... E escrevo isto agora porque de uma forma que sempre me fez sentido, a partir de um minimalismo qualquer que às vezes tenho vontade de praticar, a partir de um impulso ao qual não resisti hoje obedecer, também já me desfiz dos livros... Não sei bem porquê, não sei se é sonho, se realidade, mas achei por bem fazê-lo, talvez porque associo aos objetos memórias específicas, e quando vejo que já passou a fase da minha vida à qual as associei, o objeto em si deixa de fazer sentido também, quase como se tivesse perdido o seu prazo de validade no mesmo momento em que deixou de ser útil. Significa isso então que nunca mais escreverei nada sobre o Fernando Pessoa? Provavelmente não, até porque muitas vezes em que dou qualquer coisa por terminada acabo por voltar atrás. Mas significa sim que já não lerei as mesmas páginas que comprei em dias tão nostálgicos da minha vida, e que terei de procurar pelos poemas deste homem noutros lugares, daqui em diante sem os meus apontamentos na margem, os meus sublinhados entre as linhas, e as minhas memórias algures em cada página.
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
Para além de folhear pelos livros em busca de poemas e apontamentos também procurei por notas dos editores. Não encontrei grande coisa relevante exceto para este mesmo poema porque encontrei uma nota que indicava que este tinha sido o primeiro poema publicado por Pessoa na sua idade adulta. Nesse sentido parece ser um outro tema recorrente, esta coisa do Fernando Pessoa não ter sido tão famoso em vida apesar de ter ido escrevendo e publicando. Em muitos aspetos ele nunca foi assim tão apreciado em vida mas é-o agora, como sem dúvida o melhor poeta, e por extensão o melhor escritor, da história de Portugal. Em parte isso deve-se à sua multiplicidade já conhecida e tão refletida na sua escrita. Este Pessoa ortónimo faz sentido que tenha sido publicado ainda em vida porque é talvez mais acessível e como que tradicional, com rimas simples e uma estrutura sóbria, criando então estrofes que se assemelham àquelas canções populares que as crianças às vezes cantam no recreio da escola. Esta estrofe em particular remete para as sensações, um tema já conhecido em Pessoa, que pinta a imagem de um homem simples, em silêncio para com o mundo mas a sentir as coisas dele de uma forma tão intensa que lhe parece impossível, e talvez até seja, ainda que a universalidade dos versos seja por sua vez como que um apelo a toda a gente que se sentiu exatamente assim mas que não se soube expressar da mesma forma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Aqui estamos perante uma constante busca, estamos perante a ideia de que a cada momento o poeta nunca está onde deve mesmo estar. Ou seja, ele está sempre um bocadinho adiantado ou um bocadinho atrasado... Se até o primeiro som do sino é como que um segundo, então o poeta revela a sua incapacidade de experienciar as coisas tal como elas são, algo que talvez nenhum de nós consiga mesmo alcançar, embora pareça que sim quando visto de fora. Pelo menos é assim que eu muitas vezes penso quando me encontro a experienciar um momento que sei que me ficará na memória, na minha e na de todos aqueles à minha volta, mas o ato de pensar nisso é prova de que já estou a pensar no futuro, ou de que estou a comparar o momento presente a um do passado, e por isso o som dos sinos, tal como o som e o sabor e a cor da memória, são como que repetidos pela primeira vez... A frustração subsequente é a de buscar mais e mais, é a de procurar no som do sino e na tarde calma a sensação de tudo. Mas às vezes as coisas parecem distantes, parece que jogam um jogo diferente com as suas próprias regras, e no fim, numa das muitas expressões de Pessoa que ofendem as regras da gramática mas que capturam uma realidade tão íntima, talvez estejam mesmo tristes da vida, como se nas próprias coisas estivesse o momento que o poeta procura mas que não pode estar em lugar algum que não seja em si próprio. Porque se o tempo abranda é só porque o poeta se perde a pensar nele, e se se perde a pensar nele então não pensa em mais nada.
Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
Aqui a sensação de proximidade e de distância é aprofundada. O poeta nunca consegue experienciar as sensações como quer, como elas lhe surgem, e por isso está sempre num paradoxo do tempo. Mas como eu disse antes, às vezes ocorre-me que o tempo é um lugar, e por isso este paradoxo manifesta-se também no espaço. O poeta considera-se errante, aparentemente viajando pela sua Lisboa como se cada viagem de um lugar a outro fosse uma grande odisseia, até porque dependendo da escala de resolução essas viagens são mesmo uma odisseia, e a cada movimento ouve-se o sino da aldeia como que omnipresente, mas sempre distante... Compará-lo a um sonho alude a várias imagens e metáforas pessoanas, e ainda mantenho a minha interpretação de que um sonho em Pessoa não é necessariamente uma coisa boa porque pode ser uma fantasia, uma ilusão, e embora seja isso que o poeta às vezes tanto persiga, embora seja isso que talvez todos nós persigamos de vez em quando, talvez não seja tão bom assim permanecer num sonho durante muito tempo. Então qual é a diferença entre um sonho, uma memória, e uma sensação? Em Fernando Pessoa não sei, e na vida real também não, mas parece-me que se há diferença ela ou é pouca ou é insignificante. E talvez a grande semelhança seja de que todas elas percorrem os caminhos da alma, que num oxímoro típico dele, o poeta afirma ouvir o som do sino mais na alma do que nos ouvidos, sendo que a contradição aparente é esta coisa de sentir na alma uma sensação tão distante... Sim, porque à partida sentir na alma deveria ser a sensação mais intensa, a mais íntima possível, e no entanto ele sente tudo distante, talvez porque no sonho e na memória e na sensação ele seja múltiplo, tal como todos nós somos, pelo menos um bocadinho, e o poeta que sentiu o sino na alma da infância já não é o mesmo. À parte disso não sei o que dizer exceto que este é um daqueles versos de Fernando Pessoa que não fazem sentido nenhum com a mesma força com que fazem todo o sentido do mundo.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
E agora na última estrofe o poeta encerra o poema com mais uma das suas comparações e repetições, com os dois últimos versos iniciando com a mesma palavra para capturar uma ideia de contraste. Esta ideia aqui é também inicialmente contraditória mas muito mais intuitiva, porque afinal, de facto quando o passado é mais distante mais perto se sente a saudade. Com a exceção do esquecimento é esta a lógica, se bem que seja mais, em si mesma, uma sensação, um daqueles apercebimentos súbitos despoletados por um estímulo exterior, muito ao estilo de Marcel Proust, que cada vez mais me parece um Fernando Pessoa francês. Neste caso é a contínua música do sino da aldeia, que agora é vibrante em contraste com as anteriores caracterizações de calma e de tristeza, e chega ao poeta para lhe relembrar a ideia de infância, à qual eu próprio aludi sem grande justificação mas que surge agora para me reivindicar. Sendo assim, faz sentido também falar de Lisboa quando o poema se refere a uma aldeia? Talvez não mas também não importa... Parece-me que o sino da aldeia, ao trazer ao poeta toda esta maré de sensações, tanto pode existir num lugar como noutro, porque na sensação e na saudade do poeta os lugares são todos aqueles nos quais ele existiu, um só homem mas tão infinito e quase omnipresente, tanto em lugar como em tempo, tal como a música do sino da sua aldeia.
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