Não me apetece escrever isto, não, por qualquer motivo não me apetece mesmo nada escrever isto... Mas devia-me apetecer porque este heterónimo é o mais interessante ou talvez o meu favorito, se bem que eu próprio seja muito inconsistente em relação a isso, até porque sou inconsistente em relação a muitas coisas. Talvez a única consistência da natureza humana seja a natureza humana ser inconsistente... Mas enfim, quanto a este poema escolhi-o há já algum tempo, tal como disse antes quando decidi desfazer-me dos meus livros de Fernando Pessoa. Este livro em particular de Álvaro de Campos, assim como o de Ricardo Reis, lembro-me vivamente de o ter comprado quando estava no primeiro ano da universidade, numa tarde de chuva quando depois da aula fui a uma livraria com um amigo. Já não penso muito nesse meu amigo, tenho só uma vaga ideia do que é feito dele. Só sei, porque não posso senão saber, que entretanto aconteceram muitas mais coisas na vida dele do que na minha, e por isso a memória que tenho dele é hoje maior do que a memória que ele tem de mim. Não sei bem porque é que digo isto, talvez porque estou cansado de introduções, mas também ocorre-me que a minha memória das coisas é maior do que as coisas, e de que a água nas lentes dos meus óculos no dia em que comprei estes livros que já não tenho é a maior realidade da minha vida. E já não tenho esses óculos, nem esses livros, nem esse amigo, até porque se chegar o dia em que eu o reencontre, que espero bem que chegue, ele já não será ele nem eu serei eu, nem eu nem eu nem eu.
São – tictac visível – quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela diretamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!
O primeiro verso é logo incrível porque é todo ele Álvaro de Campos, o que pelo menos para mim é como dizer que é todo ele Fernando Pessoa. O poeta acorda de noite, o que para este heterónimo nunca é bom sinal, assim como não é para quem sofre de náuseas ou, no caso dele, insónias. Mas depois ele descreve ter acordado muito de noite e no silêncio todo. Desde já isto não faz muito sentido, é estranho dizer-se ser muito de noite ou pouco de noite. O que faz sentido é, tal como ele faz no verso a seguir, dizer se é cedo ou se é tarde, mas muito de noite captura uma ideia como que de peso, como se a noite fosse um manto negro encharcado que é preciso arrastar à força para depois o deixar secar. E o silêncio, a ausência de som, é aqui uma coisa cheia e total, é como um meio no qual o poeta se move tendo acordado a meio da noite sentindo-se doente, quase com vontade de abrir a janela para descobrir que afinal é de manhã e o mundo é perfeito. Mas em vez disso ele abre a janela para descobrir um qualquer dos seus vizinhos acordado e em casa de luz acesa. Isto leva o poeta a descobrir que, embora seja muito de noite no silêncio todo, ele não está assim tão sozinho, e a vontade é quase que de acenar à luz da janela como se fosse o letreiro da tabacaria.
Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.
A ideia de fraternidade encerra a estrofe anterior e inicia esta seguinte. A caracterização dela como involuntária é engraçada, é quase como se o vizinho não tivesse escolha senão ser visto com fraternidade pelo poeta. Ele que talvez não faz a mínima ideia quem é o poeta, ele que talvez não faz a mínima ideia de que se tornou a personagem principal de um poema, ele que se conhecia o seu vizinho então talvez não o conhecia como o poeta que se viria a tornar o melhor poeta da história de Portugal, ele que estava acordado a essa hora sabe-se lá porquê, ele que é tudo isto e muito mais não teve grande escolha senão ser amado pelo poeta... Talvez só mesmo porque nesse momento eram só eles os dois, e tal como ele diz, a humanidade era alheia. Então por aquele breve momento eram mesmo só eles os dois, como se o manto encharcado que era a noite tivesse arrastado o próprio tempo para longe, e por um momento ali tivesse tudo e tivessem todos, simplesmente, parado. E por nenhum motivo mais profundo do que esse, o poeta tem pelo seu vizinho acordado àquela hora tardia todo o amor do mundo, até porque talvez não haja maior motivo para amar perdidamente do que esse – a coincidência.
Quem serás? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.
Nesta terceira estrofe, depois do momento inicial, o poeta questiona-se sobre, não tanto a identidade do seu vizinho, mas mais sobre o motivo pelo qual ele está também acordado àquela hora. Aqui umas das opções é o seu vizinho ser também insone, uma palavra que eu nem sequer sabia que existia, mas é engraçado que ele a descreva como simples porque não há nada de simples neste poeta... De qualquer das formas o motivo é tido como irrelevante. Naquela noite toda, eterna, informe e infinita, como já aludido em versos anteriores, aquele momento e lugar escuro e pesado e para-sempre, contém apenas o poeta e o seu vizinho, ou menos do que isso, contém apenas as luzes emitidas das suas respetivas janelas, simbolizando a vida humana por detrás, ou como ele diz, o coração latente. Porque enquanto que uma pessoa normal veria uma luz acesa às quatro da manhã como nada mais do que uma coincidência ou mera curiosidade, o poeta vê em todas as coisas o significado de todas as coisas, um significado que a sua contraparte discorda que existe, mas que aqui o poeta vê, descobre e sobre o qual medita, no apercebimento de que toda aquela experiência tem no mínimo tanto significado a ponto de poder ser transformada num poema, e no máximo tem tanto significado a ponto de poder ser transformada num poema intemporal.
Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentido húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.
Os parapeitos das janelas são sempre significativos em Fernando Pessoa. Pelo menos o meu texto favorito do Livro do Desassossego contém uma imagem perfeita sobre isto, na qual o autor se compara a um pano húmido deixado no parapeito da janela... Aqui neste poema é ele próprio debruçado sobre a noite, que ainda considera infinita, quase como se aquele pedaço de Lisboa fosse o universo inteiro, e apesar de tanta incapacidade de sentir ele decide escrever um verso específico sobre a humidade da noite recolhida na madeira sendo depois transferida para as suas mãos e braços e versos, e então o ato de esperar um bocado, o ato de olhar a noite num momento de insónia, o ato de parar para pensar, é tudo um debruçar para o infinito da noite e também para si mesmo, quase como se nesse breve sossego o poeta se encontrasse, como se ele próprio não fosse um ser pequeno e insignificante naquela vasta noite, mas sim como se ele, apenas por existir na noite, fizesse tão completamente parte dela. E por isso meditar sobre uma coisa é meditar sobre a outra, e talvez só neste momento é que o poeta não foi uma coisa à parte do resto do mundo... mas talvez foi ainda assim uma coisa à parte de si, porque não poderia ser de qualquer outra maneira.
Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...
Tem graça: não tens luz elétrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!
Da estrofe anterior até esta arrisco-me a dizer que passou um bom bocado de tempo, um daqueles bocados de tempo que nos deixam incertos acerca de quanto tempo passou mesmo na realidade, um daqueles bocados de tempo nos quais perdemos breve a noção do tempo... Também posso estar errado, e o momento anterior a quando o poeta se debruçou sobre si mesmo não foi mais do que um segundo... De qualquer das formas é com o apercebimento do silêncio que ele regressa ao momento, e logo verte a sua atenção outra vez sobre o seu vizinho. Questiona-se novamente sobre os seus motivos para estar acordado àquela hora e nota distintamente o tom amarelo da sua janela, que descreve como incógnita, talvez por não saber o motivo de ser da luz ou talvez por não saber quem vive ali por detrás. De qualquer das formas é irrelevante porque o único aspeto de interesse é a cor da luz e a sua natureza, que faz o poeta notar como que num aparte que o seu vizinho não tem luz elétrica, o que por sua vez o faz suspirar como que em voz alta acerca dos candeeiros de petróleo da sua infância... E isto é um outro aspeto muito Pessoa mas especialmente muito Campos, porque pelo menos para mim é preciso muita coragem para usar palavras como “petróleo” num poema e esperar que soe bonito, mas ele fá-lo sem grande medo, fá-lo num impulso, e afinal até resulta bem... Só que fica uma sensação estranha, fica esta coisa de aparentemente a partir do nada ele ser relembrado de uma memória há muito perdida, como se a calma daquela noite fosse tão propícia ao ato de relembrar. No entanto, depois de o fazer o poeta fica perdido, debruçado sobre a janela a olhar para a noite como se nela visse todo o seu passado, tão infinito e tão calmo como a noite, ou tão deprimente e frio como a noite também, sendo que tudo depende de como o poeta decidiu ver as coisas, e de qual foi o seu estado de espírito quando ele finalmente adormeceu.
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