É sempre um bocadinho estranho pensar em Ricardo Reis logo a seguir a Álvaro de Campos, mas foi essa a ordem que escolhi há já muito tempo e é nessa ordem que agora continuo. É estranho porque implica passar de um poeta tão aceso e aleatório para um poeta sóbrio e calmo, mas também por outro lado talvez isso faz algum sentido como uma pausa antes de passar para o Livro do Desassossego. E quanto a este Reis em si também ele foi o meu heterónimo favorito porque em tempos foram todos, acho que sempre alternei constantemente. O motivo para favorecer Reis foi o seu estoicismo e epicurismo, duas correntes filosóficas que aprovei e que tentei adotar relativamente cedo no meu percurso filosófico, se é que a palavra ainda se aplica ou alguma vez se aplicou... Só que hoje em dia já não sei, acho que ironicamente até o estoicismo tem qualquer coisa de estranho, como que uma aceitação tácita do pessimismo, mas hei de escrever mais sobre isso qualquer dia. Por agora ocorre-me apenas uma coisa, que é de que entre o dia em que escolhi este poema e o dia de hoje em que escrevo sobre ele, acho que me esqueci dos versos todos, exceto precisamente o último, que me fez escolher falar sobre este poema quase que impulsivamente... E então agora hei de improvisar até chegar lá, e quando lá chegar vou improvisar ainda mais.
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva 'spuma
No moreno das praias.
Basta olhar para qualquer uma das estrofes deste poema que reconhecemos logo a autoria de Ricardo Reis. Os versos são bem medidos, simétricos, e belos quase que só de vista, e depois de ler são mais belos ainda, como quadros de paisagens. O ritmo de Reis é sempre aliado à naturalidade com a qual ele vê o mundo, uma coisa de cada vez, uma onda após a outra sempre na ordem natural das coisas. Ainda assim as ondas enrolam-se apressadas, num mar mais ou menos tumultuoso e verde. Toda esta primeira estrofe é então um enquadramento do poema, desta vez não com o poeta à beira-rio mas sim à beira-mar, a observar na sua eterna incapacidade de sentir as coisas tal como elas são, mas sem no entanto conseguir experienciar nada na realidade como Caeiro conseguiria, ou como Campos conseguiria mas em exagero. Reis no entanto não o faz nem o quer, ele apenas senta-se à beira-mar e espera pelo passar do tempo, sentindo a praia durante a tarde de forma talvez não tão diferente de como Campos sente a cidade durante noite.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o 'spaço
Do ar entre as nuvens 'scassas.
A segunda estrofe é muito semelhante à primeira, com o poeta ainda a pintar com as palavras. Agora são as nuvens que, uma após uma, pois cada coisa tem o seu tempo, rasgam o céu, deixando que o sol brilhe por entre o espaço vazio que é criado entre elas. Parece então que não é um dia de praia tão bonito assim, com um céu longe de ameaçar chuva mas ocasionalmente a trazer nuvens que escondem o sol. De qualquer das formas isto não parece interessar assim tanto ao poeta, que apenas se senta a ver e a escrever os seus versos, a admirar o movimento do mundo quando ele próprio permanece perfeitamente estático, a pintar aquilo que vê em versos calmos que parecem quase rimar sem no entanto rimarem mesmo, talvez como o poeta parece aproximar-se das sensações sem no entanto o fazer mesmo. Ele permanece então assim, tão longe, e desta vez sozinho, sempre recusando-se a aproximar-se. Essa grande recusa já é conhecida deste heterónimo mas a resposta e a sabedoria por detrás vem precisamente na primeira palavra da estrofe seguinte.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Sim, a indiferença, aquilo que é, pelo menos para mim, a pior e maior coisa do mundo... A olhar para este primeiro verso de lanço diria logo que ela é a tal Lídia, mas neste caso não é, neste caso é apenas a natureza do dia, talvez tão calmo, ou aparentemente tão calmo, como a noite insone de Campos. Mas seja como for, a indiferença é mesmo o grande objetivo de Reis, que se senta a observar tudo isto, sentindo-se existir no meio de tudo, no centro do mundo, sentindo pelo menos nos olhos se não sente na pele, mas sempre rejeitando querer mais ou procurar por mais. Como sempre lhe foi natural, ele contenta-se a ver de longe, desta vez até sozinho, e a deixar que o tempo passe com o volver de cada uma das ondas verdes e das nuvens escassas, como se o passar do tempo não fosse mais do que o movimento das coisas, até porque tanto quanto sei talvez seja mesmo... E depois ele até fala em furtar ao senso, aludindo que deixar-se levar pelo mundo, deixar-se levar pela beleza natural de um dia calmo, isso seria como perder momentaneamente o senso, talvez como se para ele perseguir e aproveitar o tempo seria semelhante a enlouquecer... Ou talvez eu é que enlouqueci e estou agora a improvisar demasiado.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
Esta última estrofe começa com um momento de conflito, algo que também em Caeiro me parece surgir como prova de que nenhum dos heterónimos é assim tão confiante nas suas filosofias como isso. No caso de Reis esse conflito é materializado na forma de um vago sentimento de pena, inconsequente, nem até reles, que lhe surge à porta da alma e nunca dentro dela, porque para Reis isso nunca aconteceria, e depois de surgir essa sua própria pena ela fica a olhar para ele, talvez fixamente mas sem querer saber e aliás sem pensar nada, até porque um pouco depois ela passa, a sorrir de nada... E essa expressão é outra daquelas típicas de Fernando Pessoa, esta talvez mais coloquial mas pouco esperada num poema. Só que talvez precisamente por ser pouco esperada é que é tão forte, e então a ideia desta pena inconsequente surgir ao poeta para lhe olhar fixamente por um momento e depois passar a sorrir de nada é, ou pelo menos foi para mim, reminiscente daqueles momentos que às vezes ocorrem no dia a dia, quando alguém olha para nós, sorri e logo depois volta-se para a sua vida para nunca mais reaparecer na nossa, como se nunca sequer tivesse existido mesmo... Num sentido de composição até é imperativo que o poeta deixe o último verso assim tal como está, com o verbo assim sozinho, indicando que depois de o fitar, essa sensação de pena passa logo a seguir, com a impulsividade de uma mudança de linha, tão semelhante a todos os momentos de todos, ou quase todos, os dias da nossa vida real.
E por isso mesmo, ou talvez por eu ser como sou, não consigo deixar de me colocar na mente do poeta e de o considerar um fingidor porque não me acredito que essa pena seja tão inconsequente assim. Não, na verdade fico a pensar em todos os momentos em que alguém ou alguma coisa olhou para mim e foi-se embora a sorrir de nada, e em todos eles pergunto-me, não o que é um nome porque isso aqui não interessa, mas o que é um sorriso. E pelo menos em dias como este, e a ler poemas como este, não consigo ignorar a verdade de que deixar passar um sorriso de nada é um nada maior do que toda a indiferença do mundo.
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