E para além de ser uma coisa estranha é também uma coisa à qual muitas vezes me refiro mesmo sem saber bem o que é... Pelo menos a maneira como várias vezes a ouvi ser definida é essencialmente a ideia de coincidências significativas, ou seja, é uma espécie de meio-termo entre tudo o que nos acontece ser totalmente aleatório, e tudo o que nos acontece ser totalmente predeterminado e sujeito às leis de um destino implacável. Então a sincronicidade seria um bocadinho de cada lado, seria a ideia de que a cada um de nós acontecem coincidências aleatórias que estavam predeterminadas, mas que só aconteceram devido a certas ações específicas, e que em tudo isto somos forçados a escolher que sim ou que não. Isso faz sentido? Eu gosto de pensar que sim mas também me ocorre que não só que não sou bom a explicar isto, assim como também não percebo nada disto. A única coisa que percebo é de que, bem lá no fundo, ninguém gosta de viver com a crença de que tudo o que lhe acontece, de que todos os momentos significativos da sua vida, do mais grandioso ao mais minúsculo, todos eles foram completamente aleatórios e que por isso são, por muito que tentemos contrariar, insignificantes. Só que também ninguém gosta de viver sabendo que tudo o que nos acontece está afixado por um destino aparentemente impessoal, este fado que a algumas pessoas dá coisas tão boas e a outras dá coisas tão más... Eu acho que a sincronicidade resolve este problema, pelo menos parcialmente, mesmo que ela não exista e mesmo que, por ser estranha, não faça sentido exceto naquela sensação saudosa de quando assim de repente as coisas fazem sentido.
Ultimamente têm-me acontecido vários momentos de sincronicidade, alguns mais pequenos do que outros, alguns que até compreendo que alguém mais racional venha refutar com o argumento de que são apenas coincidência, e como tal, todas as coincidências são uma mera questão de interpretação. De certa forma é fácil encontrar simbolismo porque podemos simplesmente generalizar e atribuir muito significado a detalhes coincidentes, e não atribuir significado nenhum a detalhes irrelevantes. Acabamos por confirmar as nossas próprias crenças, ainda que estejamos ignorantes de que o fazemos, e então caímos no erro de que somos mais importantes do que pensamos. Talvez possa ser mesmo assim, e a minha parte racional até concorda com isso, mas outra parte de mim pensa que o oposto tem implicações piores, o oposto diz-nos que tudo o que nos acontece é puramente aleatório. O que nos aconteceu de bom foi só porque calhou, o que nos aconteceu de mau foi só porque calhou. A certo ponto ser tudo aleatório torna-se equivalente a ser tudo predeterminado, porque não temos liberdade em nenhuma das opções. Em sincronicidade talvez tenhamos alguma liberdade, porque as coisas que nos acontecem são de alguma forma manipuladas pelas nossas ações, e depois do momento de sincronicidade acontecer, somos nós que escolhemos valorizá-lo ou não, e somos nós que escolhemos prosseguir por essa via ou não. É como que o universo a dar-nos sugestões, ainda que permaneça indiferente às nossas escolhas.
E às vezes parece-me que os sinais são tão coincidentes que, se não tiverem significado no sentido “real” do termo, então têm significado num sentido irónico, e até cómico, que acaba por ser um sentido tão real como tudo o resto. Pessoalmente ocorreu-me escrever este presente artigo porque no mesmo dia tive duas instâncias de sincronicidade engraçadas. Explicar coisas assim é sempre difícil porque é preciso dar alguma história de fundo, mas também não convém cair em demasiado detalhe porque se torna aborrecido, e até mesmo egocêntrico, como se eu achasse que tudo no universo converge em mim, em mim, em mim... No entanto, não resisto tentar explicar.
Um detalhe frustrante sobre a maior mágoa da minha vida é que já há muito tempo que não tenho o privilégio de usar um computador bom. O meu computador nos dias de universidade era lento, barulhento e o teclado era tão antigo que as teclas ocasionalmente partiam. Funcionavam na mesma mas era preciso remover a tecla propriamente dita e pressionar o sensor com bastante força. Ainda assim, escrevi o meu primeiro livro nesse computador, mesmo sem as teclas B, M, P e as teclas correspondentes ao ponto de exclamação e a vírgula. Eventualmente esse computador estragou-se de vez e tive de usar um outro, também velho e estragado, no qual a tecla A não funcionava de todo, e portanto tive de comprar um teclado USB, o mais barato que encontrei, para nele escrever o meu segundo livro. Mais tarde, pela primeira vez em quase uma década, comprei um computador, que de início achei tão bom mas do qual rapidamente me arrependi de ter comprado. Mas ao menos pensei – Desta vez vou poder concluir o meu terceiro livro num computador bom, com um teclado impecável... Só que ao fim de alguns meses virei sumo no teclado, o que fez das teclas um pouco presas e pegajosas, mas ainda funcionavam. Então ignorei porque desde que funcionassem era o que interessava... até que chegou o dia dezasseis de agosto, o dia em que planeei concluir o meu terceiro livro. E o que é que aconteceu na madrugada desse dia? O teclado do computador novo estragou-se, tendo perdido as teclas W, E, R, Y, I, L, Z, e ENTER... Por esse motivo tive de voltar a usar o teclado USB, o mesmo no qual escrevi o meu segundo livro.
E depois surgiu-me ainda outra instância de sincronicidade nesse mesmo dia... Descobri que o teclado tinha morrido quando, após muito esforço ao introduzir a palavra-passe no meu computador, consegui eventualmente entrar e descobri que, após meia dúzia de tentativas com algum sucesso, as teclas que referi tinham morrido de vez. Então fui buscar o teclado USB e comecei a publicar o meu artigo sobre o último volume de Em Busca do Tempo Perdido. E nesse volume, mesmo no final, há um momento no qual o protagonista tropeça numas pedras irregulares pelo caminho, e esse simples ato de tropeçar traz-lhe uma corrente de memórias do seu passado, até mesmo da sua vida inteira, e essas memórias tornam-se por sua vez a inspiração de que ele precisava para escrever o seu livro. Ora, eu conclui o ensaio sobre esse livro e publiquei-o sem pensar mais no assunto, apenas feliz por me ter visto livre de Marcel Proust, que já andava a ler há sensivelmente um ano. Mas depois durante a tarde fui dar uma volta, para apanhar ar e sol e para desanuviar um bocado, e justamente ao chegar a casa, ao passar por um caminho de terra batida, tropecei numa pedra ali pelo caminho. Não caí mas tropecei o suficiente para ter feito figura de idiota caso alguém me tivesse visto, e embora não tenha sido subsequentemente relembrado da minha vida inteira, fui relembrado de todas as vezes em que tropecei em momentos semelhantes, e ri-me da coincidência de ter acabado o ensaio sobre esse volume do Marcel Proust justamente nessa mesma manhã...
E então o que é que isto significa? Ou nada, ou tudo, ou alguma coisa, e acho que destas três hipóteses, a sincronicidade tem uma boa chance de acertar na terceira. Mesmo para os mais céticos, há que reconhecer que neste mundo aceitamos a existência de toda uma série de coisas que não “existem mesmo” no mundo real. Não há valor inerente na arte mas nós concordamos que sim, e é dessa concordância que nasce o seu valor. Talvez o mesmo ou algo semelhante possa acontecer aqui... Ainda assim, é perfeitamente possível que eu esteja a exagerar e a ser pretensioso, mas a coisa estranha da sincronicidade é que se aplicaria a todos por igual, e por isso se o valor destas instâncias for real para mim, então o valor de instâncias semelhantes será real para ti também, e para toda a gente. Porque ao que parece, ser tudo aleatório sempre se aplicou aos piores entre nós, os pobres, os fracos, os figurantes, e ser tudo predestinado sempre se aplicou aos melhores entre nós, os ricos, os fortes, os heróis, mas o engraçado é que a sincronicidade parece aplicar-se a todos por igual.
E se nada disto for verdade, então é pelo menos engraçado.
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