Foi justamente no verão passado que decidi ler os dois primeiros volumes desta obra, com o intuito de escrever um ensaio compreensivo sobre cada um deles até ao verão seguinte. O objetivo dessa decisão foi em parte porque agora que escrevo um blog preciso sempre de novas ideias, e por outra parte foi porque queria compreender Marcel Proust em maior detalhe, e por outra parte ainda foi porque simplesmente me fez sentido ler Do Lado de Swann e À Sombra das Raparigas em Flor no verão... Porque há simplesmente algo de verão nesta obra, algo quente e confortável, talvez porque é uma obra sobre a saudade e, com exceções, é no verão que encontramos os melhores momentos do nosso passado, ou se não for no verão é pelo menos no sol e no céu, que na nossa memória, mesmo em dias de inverno, relembramos sempre como pertencentes a uma tarde de verão... Então eu li esses dois primeiros volumes no verão passado e deixei os subsequentes, O Lado de Guermantes e Sodoma e Gomorra, para o interlúdio que foi o inverno e a primavera, considerando-os o maior desafio desta obra para quem a quer ler até ao fim. Depois, por uma questão de simetria, deveria ter lido A Prisioneira e A Fugitiva agora neste verão, mas como a obra se divide num número ímpar, tive de fazer um ligeiro esforço extra e continuar, quase que à procura do tempo perdido que foi o verão passado em Combray e Balbec. E agora, ao fim de um ano, li este volume e cheguei ao fim.
“Une Soirée” de Jean Béraud, editada em tom de sépia
Até à data nunca me referi às minhas escolhas de imagens nestes ensaios mas faz sentido fazê-lo agora. Todas as imagens escolhidas para os ensaios sobre esta obra são as imagens na capa da tradução da Relógio D'Água, cujos volumes me apareceram em sonhos várias vezes. Se eu fosse mais crente em elementos espirituais, o que não digo que não seja, diria até que esses sonhos foram causados por mais do que simplesmente ter os livros em mente. Mas enfim, o motivo pelo qual faço referência a isto é porque esta imagem é precisamente a mesma usada em O Lado de Guermantes, é um quadro vasto que representa em detalhe uma soirée, algo que Proust também representa em toda a sua obra, sendo que as suas soirées são capturadas quase que da mesma forma e detalhe, ainda que num veículo diferente. A diferença aqui é que este volume apresenta apenas o lado direito do retrato e está editado em tons de sépia. Isso pode parecer uma diferença mínima mas não acho que seja porque o que encontramos ao longo de todo este volume é precisamente a ideia de que a vida em sociedade, anteriormente tão atrativa em todas as suas cores, é agora distante, obscurecida, uma mera memória cada vez mais apagada, e é muito como se a inexorabilidade do tempo colocasse em perspetiva a vida inteira do protagonista que agora se quer voltar para algo mais significativo. Porque o desapontamento, que ao longo da vida é constante, é ao fim da vida inevitável... mas talvez ainda não seja tarde demais.
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O derradeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido começa com o protagonista Marcel a acordar na casa de Gilberte, agora Gilberte Saint-Loup, em Combray. É quase como se depois de cerca de duas mil páginas voltássemos agora ao início, ainda que nem tudo, ou nada, esteja como seria de esperar. O que predomina aqui é o tom íntimo da obra, que nos coloca precisamente dentro da cabeça do protagonista, que ao olhar pela janela agora que a sua idade se colocou a par da idade do narrador, observa a floresta de Méséglise e o campanário da igreja de Combray, identificando a distância das léguas como tão fisicamente real como a distância dos anos.
Não uma figuração desse campanário, mas ele próprio, que, pondo-me assim diante dos olhos a distância das léguas e dos anos, viera, pelo meio da luminosa verdura e numa cor muito diferente, tão escuro que parecia apenas desenhado, inscrever-se no quadrado da minha janela. E se saía do quarto por momentos, avistava ao fundo do corredor, já que este tinha uma orientação diferente, como uma faixa escarlate, o forro da parede de uma saleta, afinal uma simples musselina, mas vermelha e prestes a incendiar-se se nela incidisse um raio de sol. – página 7
Ao longo destas páginas a história adquire de novo certos pontos que parecem algo irrealistas, ainda que tenham um certo charme. Há algo de melancólico num sentido belo descobrirmos agora, depois de tantos anos, o protagonista em amizade com a primeira rapariga de quem gostou, ainda que ela seja casada com outro homem. A amizade permanece precisamente isso, uma amizade, sem quaisquer intenções de a transformar, mas no entanto é-me ainda estranho que Saint-Loup permita tanta proximidade de Marcel com Gilberte, algo que, no contexto histórico, ou até mesmo num sentido meramente prático, não é conveniente. Parece-me uma espécie de facilitismo, semelhante àquele que permitiu Marcel viver com Albertine antes do casamento. E por falar em Albertine ela ainda lhe ocupa os pensamentos, embora não seja tão omnipresente como no volume anterior. As forças do hábito ainda se fazem sentir, como por exemplo numa instância em que ele acorda e ao procurar pela campainha como fazia no seu quarto de Paris, é subitamente relembrando dos dias com Albertine.
A minha memória, até a minha memória involuntária, perdera o amor de Albertine. Mas parece existir uma memória involuntária dos membros, uma pálida e estéril imitação da outra, e que vive mais tempo, assim como certos animais ou vegetais não inteligentes vivem mais tempo que o homem. As pernas, os braços, estão cheios de recordações entorpecidas. – página 9
Ainda assim, e apesar do fantasma de Albertine nunca mais o abandonar, encontramos aqui um Marcel mais maturo, ainda que algo deprimido, sentindo-se perdido na vida e recebendo de Gilberte o conselho de que se devia casar pois seria um bom marido para qualquer mulher. No entanto ele rejeita a possibilidade, desinteressado em mulheres e reconhecendo também a sua parte da culpa no desfecho da relação com Albertine que se seu em A Prisioneira. Considera-se um homem idiossincrático e indeciso, o que fez com que Albertine o tivesse deixado devido às inconstâncias que dominavam os seus dias juntos. No entanto ainda pergunta a Gilberte pelo passado de Albertine, e esta responde-lhe que Albertine certamente não teria gostado de mulheres, ainda que ele considere essa resposta um gesto de misericórdia e assim todo o assunto de paixão é visto como demasiado complexo em mulheres como Gilberte e todas as raparigas do pequeno bando, para quem os gostos reais são impossíveis de definir e distinguir dos gostos dominantes. Em tudo isto parece que os únicos momentos de conforto vêm, não necessariamente das pessoas, mas sim dos lugares, dentre os quais Combray é rainha.
Ao subir para o meu quarto ia triste por pensar que nem uma única vez fora rever a igreja de Combray, que parecia estar à minha espera numa janela, toda violácea no meio da verdura. Pensava: «Ora, fica para outro ano, não hei de morrer até lá», pois não via outro obstáculo além da minha morte, e não imaginava a da própria igreja, que achava que havia de durar muito tempo para além da minha morte, tal como durara muito tempo antes do meu nascimento. – páginas 15-16
Doravante as páginas seguintes concentram-se mais na vida em sociedade, marcando uma inversão do volume anterior que era justamente composto por uma primeira metade íntima e introspetiva para depois Marcel regressar à vida social na segunda metade. Nesse propósito temos mais duas mortes, a do doutor Cottard, que em À Sombra das Raparigas em Flor curou o protagonista com um tratamento inicialmente ignorado por considerar que o médico era um idiota, e o senhor Verdurin, cuja viúva tem as suas relações com Odette cortadas, esta mulher que curiosamente conheceu os seus dois maridos justamente no salão dos Verdurin. Este contexto de passagem do tempo e de morte está particularmente vincado aqui, não só pelo simples envelhecimento do vasto elenco de Proust mas também pelas crescentes preocupações de saúde do protagonista. A partir daqui ele não permanece em Combray. Por duas ocasiões interna-se em casas de saúde das quais emerge, não curado, para uma França inserida na primeira guerra mundial. Ainda assim, e apesar de Proust fazer da guerra um tema central deste volume, o seu protagonista caminha pelas ruas de Paris, obediente às leis de recolher obrigatório mas sempre imaginando Albertine pelo caminho.
Ah, se Albertine estivesse viva, que bom seria, nas noites em que jantasse fora, marcar encontro com ela na cidade, debaixo das arcadas! Começaria por não ver nada, teria a emoção de julgar que ela faltara ao encontro, até ver de repente destacar-se da parede escura um dos seus amados vestidos cinzentos, os seus olhos sorridentes que me tinham descortinado, podendo então passear enlaçados sem ninguém nos distinguir, sem ninguém nos incomodar, até voltarmos para casa. – página 40
Mas como Albertine já não existe, e até a sua presença, outrora colossal, vai gradualmente desvanecendo, Marcel caminha pelas ruas de Paris sempre observando o mundo à sua volta, e num traço tipicamente proustiano, que revela que apesar de tudo o nosso protagonista ainda é o mesmo, deixa-se quase apaixonar pela silhueta de uma mulher qualquer cuja casa era das poucas que não se deixava ficar em escuridão, e cuja sombra é quase o suficiente para que Marcel se apaixone de novo.
Naqueles dias de exceção todas as casas estavam às escuras. Mas na primavera, pelo contrário, às vezes, num desafio aos regulamentos da polícia, surgia um palacete, ou apenas um andar de uma residência, ou até simplesmente um aposento de um andar, onde não tinham fechado as portadas, parecendo segurar-se sozinho sobre impalpáveis trevas, como uma projeção puramente luminosa, como uma aparição sem consistência. E a mulher que erguendo bem os olhos distinguíamos naquela penumbra doirada ganhava, naquela noite em que nos perdíamos e em que também ela parecia reclusa, a misteriosa e velada sedução de uma visão do oriente. – página 41
A justaposição entre a vida em sociedade e a guerra persiste e será permanente durante a primeira metade do volume, com Proust nestas páginas iniciais a elevar a situação à escala de ameaças cósmicas, comparando-a à extinção do sol, que por sua vez marcaria o fim da humanidade e de todos os animais no nosso planeta. Mas tal como não nos preocupamos com isso o suficiente para abandonar os nossos planos, também as personagens desta obra continuam com as suas vidas, aparentemente fúteis, em sociedade. Sobre este propósito não me alongarei muito, pois o aspeto político, embora aqui capturado numa escala superior, permanece ainda um aspeto menos interessante da obra, pelo menos para mim. Isso é aliás uma característica visível, pois basta olhar para a página em si e se encontrarmos várias palavras com letra maiúscula sabemos que estamos a falar de política, enquanto que o oposto geralmente significa que o narrador está a discursar livremente, tal como nos interessa... É compreensível que Proust se tenha sentido forçado a incluir a guerra no seu livro, pois embora se sentisse seguro, presumo eu, dentro do seu quarto do qual não emergia, a França à sua volta era não obstante consumida pela guerra, mas mesmo em tempo de guerra a vida dos cidadãos tem de continuar.
Relativamente a este assunto temos por exemplo Odette e a senhora Verdurin a continuarem a vida social nos seus respetivos salões, agora em competição, e temos também uma decidida comparação entre o patriotismo falso e pretensioso de Bloch com o patriotismo genuíno de Saint-Loup, já presente em O Lado de Guermantes na guarnição militar e agora manifestado em ação. E ainda de relevância temos o barão de Charlus, que é agora uma mera amostra da sua personalidade imponente de volumes anteriores. Depois da sua queda da sociedade, planeada pela senhora Verdurin, envelheceu bastante tornando-se quase irreconhecível e ostracizado, tanto em aparência como em sociedade, pois o seu tradicionalismo militar leva-o a demonstrar uma certa preferência pela Alemanha. Essa preferência provém de uma admiração por todos os soldados na guerra, tanto aliados como inimigos, o que por sua vez o leva a insinuar um pessimismo generalizado ao relembrar Pompeia, na qual terá sido encontrada uma inscrição com os nomes de Sodoma e Gomorra, algo obviamente irónico que seja Charlus a referir, uma vez que ele foi um dos protagonistas do volume desta obra com essas cidades como título.
Esta descrição despoleta um episódio que consiste numa união entre o contexto militar e a vida secreta dos cidadãos. A meio de um passeio, Marcel precisa de parar e decide entrar num hotel onde vê entrar um jovem soldado. Mais tarde descobre que Jupien gere esse hotel, ainda que Charlus seja o dono, e num outro momento semelhante ao de Montjouvain ou mesmo ao encontro destes dois personagens na introdução de Sodoma e Gomorra, Marcel encontra-se numa situação na qual consegue observar sem ser observado de volta, pois esse hotel é na verdade um bordel que serve práticas homossexuais e de controlo e submissão, algo evidenciado quando descobre Charlus a ser chicoteado... É sempre demasiado conveniente em termos de narrativa que este protagonista se encontre nestas situações, sendo aceite como a proverbial mosca na parede, como um mero observador cujos contributos para o grupo são negligenciáveis mas cuja presença é ainda assim tão desejada, pois caso contrário não teríamos o episódio aqui descrito. Parece ser essa a solução que Proust encontrou para permitir a narração em primeira pessoa, uma técnica que mesmo sendo um pouco idiossincrática e conveniente, tem ainda assim o seu charme. O propósito parece ser suscitar algum desconforto, principalmente no tempo em que o livro foi publicado, ao colocar o valor moral de relações sexuais dentro do contexto da moralidade da guerra, o que Proust alcança ao aludir que ao estudar todos os períodos da história encontramos pessoas certamente morais, ou consideradas morais na altura, que no entanto praticaram ações que hoje consideramos abjetas, caracterizando assim a situação com um relativismo moral ao longo do tempo.
Assim, quando estudamos certos períodos da história antiga, admiramo-nos de ver pessoas individualmente boas participarem sem escrúpulos em assassínios em massa, em sacrifícios humanos, que provavelmente lhes pareciam coisas naturais. Estou certo de que a nossa época, para aquele que leia a sua história daqui a dois mil anos, não deixará de parecer mergulhar certas consciências compassivas e puras num meio vital que se revelará então monstruosamente pernicioso e com o qual pactuavam. – páginas 130-131
Umas páginas mais tarde, ao relatar a história de uns familiares ricos da Françoise, encontramos um passo em que Proust mais forçosamente quebra a quarta parede e revela que neste seu livro não há um único facto real, que tudo é fictício e imaginado conforme as suas necessidades de demonstração, evidenciando talvez a forma mais expediente em que a história acontece e os seus segredos são revelados. Assim, em páginas seguintes, Marcel relembra Gilberte e Albertine, relembra até todos os momentos do seu passado, o que para nós consiste nos acontecimentos de outros volumes sendo gradualmente listados, e ocorre-lhe que tudo está interligado, ou seja, gostar da literatura de Bergotte e respeitar Swann foi o que o fez amar Gilberte, e foi querer visitar Balbec que o fez amar Albertine. São pensamentos assim que lhe ocupam a mente, num volume mais desconexo em termos da linha temporal mas com o protagonista mais sóbrio e racional, até na forma como revela a última morte da obra – a de Robert Saint-Loup... A morte de Albertine em A Fugitiva surge-nos aparentemente do nada, resultante de um acidente de equitação, e a morte de Saint-Loup é semelhante, surgindo apenas com uma mudança de parágrafo, mas é obviamente indicativa da natureza da guerra, pois Saint-Loup foi abatido apenas dois dias depois de regressar à frente de combate, quando protegia a retirada dos seus soldados. A forma que Marcel faz de luto é, como sempre, relembrar, mas associando o seu melhor amigo a Albertine pois conheceu ambos em Balbec, de início sentindo-se ignorado e só depois amado, por estas duas pessoas tão importantes na sua vida mas que tiveram a infortuna de morrer cedo.
E, além disso, a verdade é que as suas duas vidas, de um e outra, tinham cada uma delas um segredo paralelo que eu não adivinhara. O de Saint-Loup causava-me agora talvez mais tristeza que o de Albertine, cuja vida se me tornara tão alheia. Mas nada me consolava de que tanto a dela como a de Saint-Loup tivessem sido tão curtas. Tanto ela como ele me diziam muitas vezes, preocupados comigo: «Você que é doente...» E eles é que tinham morrido, eles de quem, separados um do outro por um intervalo afinal tão breve, eu podia pôr a par a imagem final, na trincheira ou no rio, e a imagem inicial, que mesmo no caso de Albertine já só valia para mim pela sua associação com a do sol-poente sobre o mar. – página 140
No entanto, e como sempre, a vida continua, tal como continuará mesmo depois da morte do protagonista Marcel e do escritor Proust, e assim ele é convidado a uma soirée em casa da princesa de Guermantes, esta mesma família nobre que, tendo sido referida mesmo no início de Do Lado de Swann, e categoricamente aprofundada em O Lado de Guermantes, persiste agora como uma sombra do seu passado glorioso, aludindo de novo à escolha da imagem deste volume, ainda que restem vestígios da sua antiga glória, a propósito da morte de Saint-Loup.
E aquele Guermantes morrera sendo mais ele mesmo, ou, antes, mais da sua raça em que se alicerçava, em que não era mais que um Guermantes, como ficou simbolicamente patenteado no seu enterro na igreja de Santo Hilário de Combray, toda forrada de panejamentos negros, nos quais se destacava a vermelho, sob a coroa fechada, sem iniciais de nomes próprios nem de títulos, o G do Guermantes que pela sua morte tornara a ser. – página 142
O pessimismo reina neste volume, pelo menos na sua primeira metade, devido às mortes de tantas personagens até aqui, ao envelhecimento de todas as outras, e até o esquecimento curioso dos pais do protagonista que mal aparecem aqui, e em tudo isto, Marcel ainda não consegue escrever, emergindo das suas estadias em casas de saúde sem qualquer sucesso e sem inspiração para escrever, até dizendo às árvores pelo caminho que já não é escritor e que se elas alguma vez elas lhe deram inspiração em dias antigos, então agora nem essa inspiração nem esses dias antigos voltarão... Mas talvez ele esteja errado pois ao considerar aceitar o convite é de súbito relembrado dos Guermantes como seres superiores e provenientes de Combray, onde passou a sua infância, sendo que aceitar o convite é quase como aceitar regressar a esses dias antigos.
A partir daqui a narração começa a mudar, justamente para algo que revela o lado otimista do título do volume. Numa palavra, aceitar este convite foi a melhor decisão que Marcel poderia ter tomado, e isso é refletido na narração precisamente porque a este ponto temos Proust no seu melhor, ressuscitando as primeiras páginas do primeiro volume que tanto marcaram a história da literatura. Até as ruas vinham-lhe relembrar os dias em que caminhava com a Françoise para os Campos Elísios, como se a própria terra perdesse a sua resistência e o atraísse para um lugar que só existe nas profundezas da sua memória... Ao juntar-se à soirée, Marcel sente-se momentaneamente feliz, mergulhando na grandeza do nome de Guermantes e encontrando agora uma narrativa mais afastada da guerra, mas na qual a inexorabilidade do tempo ainda se faz sentir. Isso é capturado de novo no barão de Charlus, que agora tão distante da vida em sociedade, começa-se infelizmente a afastar até da sua própria mente, uma mudança evidenciada quando cumprimenta uma senhora que antes detestava com um respeito exagerado que só pode constituir um sinal de demência.
Saudou-a com a cortesia das crianças que, chamadas pela mãe, vêm timidamente cumprimentar as pessoas crescidas. E era numa criança, sem a altivez delas, que ele se tinha tornado. – página 151
Marcel vai tentando desfrutar da soirée e por isso temos mais do tipo de escrita do qual Proust nunca se afastou, pois em todos os volumes fez da sociedade um tema central na sua obra. A grande diferença é que aqui o seu protagonista está cada vez mais distante, é mais idoso e por isso mais sábio, talvez tendo-se agora efetuado a união entre o protagonista e o narrador, sendo que no primeiro volume estavam distanciados por uma vida inteira... Talvez essa maturidade foi atingida, primeiro quando Marcel contou a Gilberte o motivo de a relação com Albertine não ter resultado, e agora ao reconhecer-se incapaz de escrever e de sentir os prazeres frívolos desta festa. É até relembrado de Bergotte que lhe terá dito que apesar de ser doente tinha alegrias de espírito, mas agora, incapaz de escrever e considerando que Bergotte estava errado, a literatura já não lhe é fonte de qualquer alegria... Mas é justamente no parágrafo seguinte que temos um momento tão importante que é equivalente ao da madalena, um momento no qual o tempo, como que pela segunda vez, é reencontrado – ao caminhar distraído no pátio, Marcel recua de súbito para sair do caminho de um carro e tropeça nas pedras irregulares do pavimento, num passo que parece tão simples mas para ele tão evocador de tantas memórias antigas.
Mas no momento em que, ao endireitar-me, poisei um pé numa pedra menos alta que a anterior, todo o meu desânimo se desvaneceu perante a mesma felicidade que em diversas épocas da vida me havia sido concedida pela contemplação de umas árvores que julgara reconhecer num passeio de carruagem nos arredores de Balbec, pela imagem dos campanários de Martinville, pelo sabor de uma madalena molhada numa infusão, por tantas outras sensações de que falei e que as últimas obras de Vinteuil me tinham parecido sintetizar. Tal como no momento em que saboreava a madalena, toda a inquietação sobre o futuro, toda a dúvida intelectual se haviam dissipado. – página 156
Este momento é dos mais elucidativos da obra inteira... Na verdade a obra cresceu pelo meio, sendo que inicialmente Proust tinha intenções de escrever apenas dois volumes, um sobre o tempo perdido, e outro sobre o tempo reencontrado, mas a história cresceu para incluir os volumes que conhecemos hoje. Assim sendo, é muito provável que grande parte deste sétimo volume tenha sido escrito mais ou menos aquando Do Lado de Swann, e por esse motivo a madalena e as pedras criam um círculo que finalmente encerra a obra. E estes momentos de memória involuntária, que nos acontecem tão constantemente mas que nunca sabemos descrever, Proust descreve-os constantemente, tendo precisado apenas de sete breves volumes para o fazer. São momentos em que somos assaltados por uma felicidade incerta mas que só pode surgir de uma busca outrora adiada. É só nos pequenos momentos, como tropeçar nestas pedras, que as impressões lhe surgem, tanto no momento atual como num momento distante em simultâneo, quase como se o passado, ao invadir o presente, lhe permitisse uma compreensão do tempo como precisamente extratemporal, pois a única forma de desfrutar da essência das coisas é precisamente se estivermos fora do tempo.
Isso explicava que as minhas inquietações acerca da minha morte tivessem cessado no momento em que reconhecera inconscientemente o gosto da pequena madalena, visto que nesse momento o ser que eu fora era um ser extratemporal, e por conseguinte despreocupado com as vicissitudes do futuro. Tal ser não tinha vindo até mim, nunca se manifestara, a não ser fora da ação, fora da fruição imediata, sempre que o milagre de uma analogia me fizera fugir ao presente. Só ele tinha o poder de me fazer reencontrar os dias antigos, o tempo perdido, perante o qual sempre fracassavam os esforços da minha memória e da minha inteligência. – página 160
As instâncias de memória involuntária continuam a surgir num constante estado de inspiração, como o som de uma colher, o tecido de um pano de mesa, e o título de um livro, o mesmo livro que a sua mãe lhe leu naquela noite depois da visita de Swann, tudo detalhes desta soirée que fazem Marcel viajar pela sua vida de forma tão semelhante à do momento da madalena. A deceção que sempre sentiu ao longo da vida surgia porque sempre que apreendia a realidade não lhe podia aplicar à imaginação, que considera um órgão que nos permite sentidos equivalentes aos da visão e audição, porque só podemos imaginar o que está ausente, senão não se trata de imaginação mas sim de perceção. O objetivo é então algo grandioso – apreender o tempo em estado puro. Por outras palavras, é alcançar o tempo perdido, que começa a surgir aqui, penso que pela primeira vez, em letras maiúsculas. Para Proust, o único paraíso é um paraíso perdido, e tal como não pode encontrar o tempo perdido em Combray com Gilberte, nem em Balbec com Albertine, nem tão-pouco o pode fazer através de uma observação intelectual da realidade, e nem sequer através da viagem, descobre agora que apenas o consegue através da memória. Por isso, e ironicamente, ele não quer reaver as coisas do passado. Encontrar o livro da sua infância na biblioteca dos Guermantes é algo detentor de um poder de ressurreição do qual só a memória é capaz, mas reencontrar agora esse mesmo livro, o exato volume da sua infância que a sua mãe segurou nas mãos, não teria o mesmo significado e seria apenas gradualmente coberto de impressões do presente até que a memória acordada por esse momento se perdesse, deixando o jovem Marcel daquela noite, nas palavras de Proust, sepultado no esquecimento.
Uma imagem suscitada pela vida traz-nos na realidade, nesse momento, sensações múltiplas e diferentes. Por exemplo, a visão da capa de um livro já lido teceu nos caracteres do respetivo título os raios de luar de uma longínqua noite de verão. O sabor do café com leite matinal traz-nos aquela vaga esperança de bom tempo que tantas vezes, enquanto o bebíamos numa tigela de porcelana branca, cremosa e estriada, que parecia leite coalhado, quando o dia estava ainda intacto e pleno, começou a sorrir-nos na clara incerteza do amanhecer. Uma hora não é apenas uma hora. É um vaso cheio de perfumes, de sons, de projetos e de climas. – página 176
Esta descoberta leva Marcel pelo caminho da arte, nomeadamente da literatura, na qual encontra o seu método para capturar e expressar o tempo perdido, mas não como escritor e sim como tradutor. A realidade é para Proust uma relação entre sensações e memórias, sendo que o trabalho do artista é apenas interpretá-las e comunicá-las em metáfora. O livro já existe em cada um de nós porque cada um de nós tem, ainda que talvez dormente, a capacidade para encontrar o tempo perdido, e então o bom escritor apenas traduz a sua consciência em arte para que o leitor possa comparticipar nela. E se cada leitor tem em si essa capacidade, também cada escritor a terá, mas qual será a fonte de inspiração para se comprometer à arte? Aqui Marcel descobre que a inspiração que tanto procurava esteve consigo o tempo todo, pois ela não é nada mais do que a sua própria vida.
Então, menos resplandecente, por certo, que a que me fizera ver que a obra de arte era o único meio de reencontrar o Tempo Perdido, uma nova luz se fez em mim. E compreendi que todos estes materiais da obra literária eram a minha vida passada; compreendi que tinham vindo até mim nos prazeres frívolos, na preguiça, na ternura, na dor, que os armazenara tanto lhes adivinhando o destino, ou até a sobrevivência, como a semente ao guardar a reserva de todos os nutrientes que haverão de alimentar a planta. – página 184
Ele quase que se antecipa ao final do livro quando devaneia sobre o conceito de detalhe na escrita, considerando que a observação da realidade começa a partir do geral, mas é só mais tarde, muitas vezes em recordação, que todos os detalhes, todos os tons de voz, e todos gestos do corpo, e todas as feições de todas as caras, todas essas coisas trazem consigo leis psicológicas que o artista tem de apreender e traduzir para a página. E é através das armadilhas da memória que ele considera que um livro é um cemitério, pois já se esqueceu de Albertine e da sua avó como criaturas individuais, mas as idiossincrasias delas surgem-lhe na memória como se cada pequeno gesto fosse imbuído de tanta personalidade que a pessoa real será para sempre imortalizada na página. Isso reflete-se ao longo da vida, pois foi quando ainda amava Gilberte que ouviu falar pela primeira vez de Albertine, ingénuo do quão colossal ela seria na sua vida, pressagiando o seu futuro tumultuoso. Mas talvez seja só ao escrever, ao criar uma realidade muito mais vasta do que a realidade real que, mesmo esquecendo-a momentaneamente, perde-a nessa realidade, mas erige algo novo a partir da desilusão amorosa, encerrando para sempre os maus momentos aos transformá-los em arte, e criando um lugar novo onde poderá sempre relembrar os bons.
Fazendo-me perder tempo, causando-me desgostos, Albertine fora-me acaso mais útil, mesmo do ponto de vista literário, que um secretário que me tivesse arrumado a papelada. Mas, mesmo assim, quando uma criatura é tão mal constituída (e talvez o homem seja por natureza essa criatura) que não pode amar sem sofrer, e tem de sofrer para aprender verdades, a vida de tal criatura acaba por ser bem cansativa. Os anos felizes são os anos perdidos; esperamos por um sofrimento para trabalhar. A ideia do sofrimento prévio associa-se à ideia de trabalho, receamos cada nova obra pensando nas dores que primeiro teremos de suportar para a imaginarmos. E como compreendemos que o sofrimento é a melhor coisa com que podemos deparar na vida, pensamos na morte sem susto, quase como numa libertação. – página 193
Esta longa meditação durante a soirée termina com o tema do ciúme, já a nós conhecido mas aqui reintroduzido no contexto da vida e da arte. Pois Marcel pondera, várias vezes ao longo do livro, que se não tivesse sido Swann a falar-lhe de Balbec nunca teria conhecido Albertine, nem teria sido introduzido aos Guermantes, e por aí fora, e então a sua vida teria sido completamente diferente. Mas em vez disso teria sido uma outra vida qualquer, marcada por um elenco de personagens diferentes que é hoje incapaz de conceber. O ciúme é então omnipresente, pois seria uma constante busca, seria um constante querer o que não temos, mas no contexto da arte serve de fonte de inspiração, pois se houver um espaço vazio num quadro nós somos capazes de o preencher com aquela rapariga bonita por quem passámos na rua, e mesmo que ela nem tenha sido tão bonita quanto isso, é ainda assim ressuscitada na nossa memória como a rapariga perfeita.
Regressando à festa, que de certa forma é a última sequência da obra inteira apesar de durar cerca de cem páginas, Marcel tem dificuldade em reconhecer toda a gente, julgando que se trata de uma espécie de baile de máscaras em que todos usam maquilhagem para parecerem idosos. Mas claro que não são máscaras, são os efeitos visíveis do tempo. O problema é que o sentimento é mútuo, e também os outros membros da sociedade têm dificuldade em reconhecer a cara de Marcel, como que à procura de o associar a uma recordação que não sabem bem qual ou relativa a quem... Marcel encontra-se com Bloch, que frequenta esta soirée já velho e com filhos, muito mais calmo do que a sua personalidade energética de volumes passados, e encontra-se ainda com um outro amigo, cujo nome não nos é dado mas é-nos dito que é alguém que Marcel não via há mais de dez anos, tendo agora com ele uma breve conversa na qual lhe reconhece a voz mas como que vinda de uma pessoa completamente estranha. A implicação é obviamente de que o nosso protagonista já não é aquela criança das primeiras páginas, é sim um homem idoso apesar de lhe custar admitir, como quando convida Gilberte a jantar mas apenas se ela não achar comprometedor jantar sozinha com um rapaz, o que suscita risos de toda a gente à sua volta. Pois ele já não é um rapaz, e é então forçado a corrigir a sua própria expressão para se chamar de velho, apesar de considerar os risos desnecessários.
A passagem do tempo é, sem surpresas, um tema recorrente em Em Busca do Tempo Perdido, e como tal a velhice é meramente uma reflexão física disso. Parecem ser apenas Odette e Gilberte as únicas imunes a esses efeitos quando Marcel relembra ter visto o rosto de Odette pela primeira vez, encontrando-lhe as feições agora como que aperfeiçoadas em Gilberte, como um pintor que escondeu a sua obra durante anos, só agora tendo terminado os retoques finais. Ainda assim, os anos passam, e embora o estatuto social se confunda na memória das pessoas, Odette ainda é alvo de comentários trocistas, dos quais se recusa a defender. Em poucas palavras, é muito como se as personagens que fomos conhecendo ao longo destas páginas se mostrassem todas diferentes, tanto as de Combray como os Guermantes. Combray é aqui descrita pelo narrador como uma peça de puzzle com uma forma tão peculiar que reconhece imediatamente, ainda que não a consiga encaixar no mapa de França. E os Guermantes prosseguem através da constrangedora sucessão de nomes, pois em breve a princesa de Guermantes será uma mulher diferente, e depois outra e outra e outra, uma única mulher individual mas cujo nome permanece na história naquilo a que Proust chama de inalterável placidez imemorial. E talvez pela primeira vez, a vida em sociedade representada pelos Guermantes, e a vida em Combray representada por Gilberte, chegam aos sentidos de Marcel em toda a força, tão encantadoras mas não apenas à distância, pois agora elas trazem consigo as imaginações da sua infância, tão belas e inacessíveis, como um tesouro.
Entre Combray e os Guermantes está Balbec, onde Marcel vira passar todas as raparigas do bando, entre as quais estavam Albertine, sempre protagonista, e Andrée, que agora é casada com Octave e amiga próxima de Gilberte. Todas elas estão mudadas na carne pelo tempo, mas na imaginação de Marcel permanecem jovens, principalmente Albertine, cuja velhice nunca chegará. O que o nosso idoso protagonista mais deseja agora é a juventude, e talvez uma nova vida, tanto para Albertine como para a sua avó. Mas racionalmente aceita que isso não qualquer faz sentido. Albertine teria agora o aspeto semelhante ao da senhora Bontemps, e a sua avó teria acima de noventa e cinco anos, revelando que procurar pela juventude no mundo real é uma missão fútil, tal como procurar pelo tempo perdido nos locais onde ele tem procurado até agora... E quase que a este propósito surge uma nova sentença de sabedoria de Proust quando em conversa com a duquesa de Guermantes, retomando o final do terceiro volume, relembra-a do vestido e sapatos vermelhos, ao que ela responde que é simpático que ele se lembre desses detalhes porque as mulheres chamam de simpatia a qualquer memória da sua beleza, apreciada como uma obra de arte.
Porém, a tristeza de envelhecer devolveu-lhe um cansaço que lutava com um sorriso: «Tem a certeza de que os sapatos eram vermelhos? Eu julgava que eram sapatos dourados.» Garanti que tudo aquilo estava intensamente presente na minha memória, sem falar da circunstância que me permitia afirmá-lo. «É simpático da sua parte que se lembre disso», disse-me ela com um ar carinhoso, porque as mulheres chamam simpatia à memória da sua beleza como os artistas à admiração pelas suas obras. – páginas 281-282
Continuando em conversa com as mulheres da soirée, e ressuscitando outros temas já antigos, Odette revela a Marcel alguns detalhes do seu passado e dos seus amores ao longo da vida. Apesar de casada com Forcheville, cuja ausência neste volume se faz sentir, parece ter-se envolvido com o senhor de Guermantes. Em certos aspetos essa paixão é semelhante à de Swann, este protagonista que ela confessa ter amado apesar de a grande tragédia entre eles ter sido de que Odette sempre amou homens terrivelmente ciumentos, especialmente agora que o senhor de Guermantes encontra-se exatamente onde Swann esteve, isto é, assaltado pela constante contradição de amar uma mulher que não é o seu tipo. Marcel, ou talvez Proust porque a esta altura é difícil de distinguir, encontra a solução para esta aparente contradição nas forças do hábito, pois se Odette fosse do tipo de Swann este não teria quaisquer ciúmes dela, ela simplesmente não se instalaria na sua vida, não lhe teria ocupado a mente nem o coração, e as suas ações e mentiras nunca perturbariam as forças do hábito, nas quais reside a verdadeira presença de quem amamos.
Agora tão perto do final, Gilberte introduz Marcel à sua filha, a menina de Saint-Loup, com os seus dezasseis anos, marcando uma das poucas referências temporais específicas na obra, e a sua própria existência suscita a Marcel pensamentos sobre a dimensão do tempo, pois todos os caminhos na sua vida parecem levar a esta jovem, ou seja, é na menina de Saint-Loup que os dois lados da infância de Marcel convergem – pela parte do pai, o lado de Guermantes, e pela parte da mãe, o lado de Méséglise, também conhecido pelo lado de Swann. E cada lado por sua vez leva-o à fase seguinte da sua vida, a namorar nos Campos Elísios com Gilberte, e a conhecer Saint-Loup na praia de Balbec, sendo que o avô e a avó da menina são o casal no qual toda esta obra se baseia, simbolicamente refletido em Marcel e Albertine... Em tudo isto, Marcel encontra a fonte de inspiração para tudo no seu livro, que ironicamente já está escrito embora ele não o saiba neste momento, e foi nesta festa que todas as memórias da sua vida foram reunidas, numa nova dimensão que antes desconhecia e na qual descobre, finalmente, o tempo perdido.
E era evidente que todos esses diferentes planos segundo os quais o Tempo, desde que há pouco o recapturara nesta festa, arrumava a minha vida, fazendo-me pensar que, num livro que quisesse contar uma vida, seria preciso utilizar, ao contrário da psicologia plana habitualmente utilizada, uma espécie de psicologia no espaço, acrescentavam uma beleza nova a essas ressurreições que a minha memória ia operando enquanto refletia a sós na biblioteca, visto que a minha memória, ao introduzir o passado no presente sem o modificar, tal qual ele era no momento em que era presente, suprime precisamente essa grande dimensão do Tempo segundo a qual a vida se realiza. – página 299
A dificuldade de distinguir o protagonista do narrador e do autor torna-se irónica, pois agora que Marcel se comprometeu a escrever sobre a sua vida, Proust já acabou de o fazer. De certa forma o livro está algo inacabado, tendo algumas daquelas inconsistências estranhas que Proust teria certamente corrigido, ou talvez não porque se ele vivesse para sempre talvez nunca pararia de escrever mais e mais volumes. Isto porque a génese daquilo que seria Em Busca do Tempo Perdido existe, tanto em Marcel como em Proust, num permanente devir, segundo o qual ele pode até esquecer detalhes e atividades do seu dia a dia, mas a obra permanece sempre, superior a qualquer preocupação mundana, mesmo a sua própria morte. É então engraçado que agora, depois da morte de Proust, estejamos a ler sobre o seu protagonista que se compromete a escrever um livro tão colossal que ficará para a história, porque sabemos que ambos os objetivos foram decididamente cumpridos... Ainda assim, anacronicamente falando, será que ele ainda vai a tempo? Surgem-lhe momentos de dúvida mas por outro lado, ao sentir-se mal durante o seu dia a dia, considera que a doença é-lhe um favor, pois agora não tem motivo para perder tempo, e tem todos os motivos para o aproveitar. E numa das muitas ressurreições deste volume ele relembra a noite do beijo da mãe, o preciso momento em que a sua saúde começou a declinar, simbolicamente descobrindo esse momento, já descrito há muitas páginas atrás, como o início do seu livro.
E é neste contexto que surge o último momento proustiano do livro quando ainda nesta soirée Marcel ouve o tilintar de uma campainha que confunde com o tilintar da campainha de Combray, que na sua infância anunciava a entrada e saída de Swann, porque essa memória não é agora algo distinto e descontínuo, é uma parte inseparável de si e é algo ao qual pode sempre regressar, basta apenas procurar dentro de si próprio. A sensação é de vertigem, como se Marcel medisse léguas de altura, com os anos que viveu fazendo dele um gigante. E essa metáfora estende-se ao último parágrafo deste livro de milhares de páginas, um parágrafo protagonizado pelo duque de Guermantes que se tenta levantar da cadeira mas, com a extensão física dos seus oitenta anos, treme e oscila como se estivesse em andas de milhares de léguas de altura. E ao constatar a fragilidade desse gesto aparentemente insignificante, Marcel compromete-se a escrever a sua obra cheia de personagens que ocupam um lugar no tempo muito maior do que o ocupam no espaço, mesmo que ao fazê-lo caía em absoluto exagero, precisamente como fez para tantos leitores, incluindo eu próprio, que consideram ler Em Busca do Tempo Perdido um desafio... mas um que vale a pena.
Mas, ao menos, se tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria acima de tudo de descrever nela os homens, ainda que tal os fizesse parecerem-se com uns seres monstruosos, uns seres que ocupam um lugar tão considerável comparado com o tão restrito lugar que lhes está reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado, visto que, como gigantes imersos nos anos, eles atingem simultaneamente épocas tão distantes, entre as quais tantos dias ocuparam o seu lugar: no Tempo. – página 314
§
E chego agora ao fim destes sete longos ensaios sobre cada um destes volumes, uma missão muito mais difícil do que esperava e da qual fiquei um bocadinho aquém. Ao ler breves sinopses escritas por pessoas mais inteligentes do que eu, pessoas com uma capacidade muito superior para ler Proust sem se distraírem, acontece-me encontrar imensos pontos dos quais tenho pouca ou nenhuma memória. Quem é mesmo a senhora Verdurin? E a senhora de Villeparisis? E o Bergotte é o pintor ou o escritor?... E quanto a todas as conversas políticas deixei estar, não só por não gostar muito delas como por não as compreender. Simplesmente quis obter um conhecimento aprofundado desta obra que simplesmente não me saía da cabeça, até em sonhos, e como em vários momentos de sincronicidade fui sempre relembrado dela, tive de a ler e de escrever sobre ela. Não fui tão detalhado como talvez deveria ter sido mas fui mais do que se tivesse escrito apenas um artigo em geral, um daqueles artigos cujo autor não parece ter resposta a algumas das perguntas específicas que surgem nos momentos de confusão. Ainda assim, e embora tenha talvez de reler Em Busca do Tempo Perdido ao longo da vida, gosto de pensar que percebi a essência da obra, e de que a interiorizei, e até na qual me inspirei, principalmente para escrever o meu segundo livro, que foi completamente revelado com as palavras de Marcel Proust, por quem tenho hoje, não só admiração, mas também agradecimento.
Agora relembro os dias de ter começado isto... Relembro uma tarde no verão passado em que fui passear o meu cão e cruzei-me com uma rapariga bonita e simpática mas com o seu namorado, e agora sinto-me tão ingénuo de nesse momento não me ter apercebido da semelhança com aquele momento em que Marcel vê Gilberte com outro rapaz... De qualquer das formas relembro essa tarde, tão nítida que quase que a consigo beber, eu com os dois primeiros volumes nas mãos e preparado para passar o verão a lê-los num ritmo calmo, determinado por um homem francês que já há muito tempo que morreu. Mas a sua voz encheu-me a cabeça durante esse verão inteiro, mesmo através da diferença de línguas, e de anos, e da morte... O meu desejo nessa altura era deitar-me na praia a ler Proust porque achei que simplesmente fazia sentido, porque há algo nesta obra que se alia por natureza ao verão e a tudo de belo nele contido, como por exemplo a fantasia de conhecer uma Albertine na praia, atraída pela capa do livro bonito nas minhas mãos... Mas não li Em Busca do Tempo Perdido na praia, na verdade quase que nem saí de casa, algo que me faz sentir bastante próximo de Proust, tanto pelo isolamento, como pelas idiossincrasias, como pelas saudades e como por esta coisa minha de fazer de momentos pequenos uma grande e desnecessariamente longa cerimónia. Mas a pergunta é, como sempre, se valeu ou não a pena. E a isso tenho de responder categoricamente que sim e que se não encontrei o meu tempo perdido neste verão sei que o hei de encontrar um dia destes... E ainda hei de ler Marcel Proust na praia.
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