Skip to main content

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido VI – A Fugitiva”

Para alívio de alguns, até mesmo para mim, este volume é o mais breve de todos, uma diferença que é aliás notável ao olhar para todos os volumes organizados na estante. De facto, algumas edições até unem este ao anterior, reduzindo a obra a seis volumes em vez de sete. Mas ainda assim, e mais uma vez, atrasei-me muito mais do que estava à espera... Deveria ter sido capaz de ler umas cinquenta páginas por dia, o que significa que deveria ter terminado este volume em cerca de cinco dias. Só que não sei, é-me fácil perder a noção do tempo, e parece-me forçoso deixar que seja o próprio Marcel Proust a determinar o ritmo da sua obra, tanto quando a lemos como quando a abdicamos momentaneamente. No entanto, e por muito interminável que a obra pareça, eventualmente acaba porque o tempo passa e termina com tudo, deixando-me agora perto de um final que me parece tão derradeiro apesar de não o ser. Quando terminar este artigo começarei a ler o sétimo e último volume, e terei terminado esta série de ensaios que planeei há justamente um ano atrás, mas por muito especial que este momento me possa parecer agora, sei que no final dele terei de continuar não sei para onde... Porque o tempo é um círculo em mais do que um sentido, mas vou deixar isso de lado por agora, e não entrarei em conclusões muito longas antes da hora.

“L'Attente” de Jean Béraud

Aparentemente, para além de algumas edições unirem este sexto volume ao anterior, também há algumas que marcam divisões através de capítulos intitulados. Na minha edição isso parece não existir, por isso continuarei com o mesmo pensamento de que, do quinto volume para a frente, a obra adquire um ritmo mais rápido, com o protagonista, cujo nome agora conhecemos, gradualmente mais distante das distrações da sua vida social e amorosa para então se debruçar cada vez mais sobre a arte. Numa palavra, toda a nostalgia que permeia a história vai encaminhando Marcel para a sua infância em Combray, na qual talvez encontrará o tempo perdido. E o ato de encontrar é aqui porventura mais importante do que em qualquer outra parte da obra, obviamente devido à natureza elusiva do título. Após o desaparecimento de Albertine no final do volume anterior encontramos aqui um Marcel completamente indeciso entre recuperá-la urgentemente e nunca mais a querer ver, mas quando uma decisão lhe é forçada resta-lhe apenas a confusão, e cada vez mais tudo na sua vida tende para um fim último. Esse fim chegou para Proust três anos antes da publicação deste volume, mas os seus manuscritos sobreviveram e encerraram a obra. No entanto, para Marcel, o protagonista propriamente dito, este fim será apenas um outro início, até porque talvez pela primeira vez na sua vida ele quer deixar de perder tempo.

§

Por muito que goste de divagar, Proust tem um grande talento para terminar as suas narrações subitamente. O volume anterior termina com Marcel a receber notícia da partida de Albertine, agindo como se já soubesse e não se importasse. Mas agora ele tem de processar essa revelação, com todos os sentimentos tumultuosos a ela associados. Dá-se então a desconexão típica de todas as perdas, ou seja, Marcel é informado do facto de Albertine já não estar presente mas continua na sua intuição a agir como se ela ainda lá estivesse. Isso é fruto do hábito, um conceito que Proust valoriza tanto nesta obra a ponto de o escrever com letra maiúscula. Porque é a força do hábito que a cada momento nos relembra a perda, a finalidade de cada fase das nossas vidas em todo o seu detalhe, muito como, nas suas palavras, uma divindade malevolente que nos traz perceções daquilo que já não temos, relembrando por um momento feliz apenas para sermos logo trazidos à realidade triste noutro.

Tanto me habituara a ter Albertine ao pé de mim – e de repente via um novo rosto do Hábito. Até então considerara-o sobretudo como um poder aniquilador que suprime a originalidade e até a consciência das perceções; agora, via-o como uma temível divindade, tão agarrada a nós, com o seu rosto insignificante de tal modo incrustado no nosso coração que, se se desligar, se se afastar de nós, essa deidade que quase não distinguíamos inflige-nos sofrimentos mais terríveis que nenhuma outra, e é então tão cruel para nós como a morte. – página 8

O que ele considera mais urgente é ler a carta de Albertine para encontrar forma de a convencer a voltar. Tal como todas as fugas da prisão, Marcel espera que esta não seja mais do que um breve passeio despoletado por um acesso de loucura, no fim do qual a prisioneira há de regressar para que tudo seja como dantes. A sua carta é surpreendentemente breve, e numa das minhas muitas memórias falsas eu estava na ideia de ser longa, enchendo uma ou duas páginas inteiras de devaneios e divagações. Ainda assim há vários detalhes interessantes. Albertine chama-se de cobarde, denotando uma certa timidez e submissão que em retrospetiva parece conter alguma verdade, e dizendo que se tornou indiferente aos olhos dele, considera que o melhor é partir assim, após aquela reconciliação final, para que permaneçam sempre amigos. De facto ela parece ter razão porque como sabemos o nosso Marcel é inconstante e talvez os seus momentos de paixão por Albertine não sejam tão honestos quanto isso. Mas seja como for, ele quase que ignora os conteúdos da carta, considerando os motivos da partida como a mera intenção de lhe desferir um golpe ou, mais da parte da senhora Bontemps, de lhe extorquir dinheiro. Nessa recusa os seus pensamentos são de subornar Albertine, de a atrair com a já previamente referida, e talvez impossível, compra de um iate e um automóvel.

Nesta confusão interna, que Proust nos apresenta de forma incansável, vemos como Marcel tende a cair num daqueles paradigmas amorosos anteriormente descritos, nomeadamente o de relações abertas, ou seja, ocorre-lhe que se Albertine regressasse ele dar-lhe-ia liberdade de o trair. Mas claro que isso não resultaria, há quem diga que não resulta para ninguém e que é apenas um adiar do fim, mas para ele não resultaria porque mesmo na completa incerteza demonstra-se obcecado em conhecer a alegada amante, alguém que pode até nem sequer existir, algo que só o faz pensar em como a origem desses pensamentos é um rio cuja nascente nunca encontramos. Tudo indica uma certa premeditação na fuga, um evento aparentemente previsto pela Françoise que notara um desconforto na cara de Albertine, detalhe que por sua vez passou completamente ao lado de Marcel. Quase que de passagem surgem-lhe também memórias de Gilberte e da senhora de Guermantes, duas pessoas que amou, a primeira mais importante que a segunda mas por nenhuma delas ficou a sua paixão imbuída do hábito, esta força constante que amplifica a ausência de Albertine a um sofrimento que o coração frágil de Marcel não aguenta. O objetivo aqui torna-se então fazer com que Albertine regresse a todo o custo, mas de tal forma que ela não se aperceba do sofrimento que causou. Afinal Marcel ainda mantém os mesmos jogos e inconstâncias, mas talvez nem sejam malignos porque de todos os lugares para onde ela poderia ter partido, Montjouvain sendo o pior, Touraine era o melhor porque sendo a residência da tia, Albertine estaria controlada e impedida de encontros clandestinos. É só que quando Marcel descobre que foi justamente para Touraine que ela partiu que fica desolado, a notícia chega-lhe ao entendimento com toda a brutalidade com que um hábito é gradualmente destruído pelas forças do tempo.

Toda esta situação é enquadrada em tons bélicos. Pelo menos para ele trata-se de uma guerra de atrito em que ambos os lados estão cada vez mais desesperados mas nenhum quer ser o primeiro a admitir fraqueza, ainda que ele se aperceba de que talvez não haja desenlace possível exceto a derrota. A reconciliação seria impossível a não ser que incluísse uma permissão alusiva a um casamento aberto e amigável à natureza de Albertine, mas parece que agora não há como voltar atrás, por muito que Marcel, o protagonista de uma obra baseada em voltar atrás, assim o queira, quase que desesperadamente.

Se para esperar, para «aguentar», deixasse Albertine permanecer vários dias longe de mim, e até talvez várias semanas, deitaria por terra aquele que fora o meu objetivo ao longo de mais de um ano, o de não a deixar livre uma hora. Todas as minhas precauções se teriam tornado inúteis se eu lhe concedesse tempo e facilidade para me enganar quando quisesse; se, no fim, se rendesse, nunca mais eu poderia esquecer o tempo em que ela estivera só, e, mesmo acabando por sair vencedor, a verdade é que no passado, isto é, irreparavelmente, seria vencido. – página 21

Se isto é uma guerra então Robert Saint-Loup é o seu aliado, mostrando-se tão prestável como em O Lado de Guermantes. Anteriormente, Marcel teve medo de deixar Albertine sozinha com Saint-Loup, pois a sua mente era logo consumida por pensamentos de traição entre os dois. No entanto, Saint-Loup mantém-se leal ao seu amigo, obedecendo-o em todos os seus pedidos de aliciar a senhora Bontemps para obter dela ou das suas criadas informações acerca de Albertine, comunicando as suas descobertas por telegrama, sempre de forma diligente ainda que Marcel se demonstre frustrado com os seus fracassos. Saint-Loup parece até guardar rancor por Albertine ao saber que esta magoou o seu amigo, dotando esta amizade de uma lealdade absoluta. Mas com o passar do tempo chegam os primeiros dias de primavera, e sem grandes desenvolvimentos Marcel sente um presságio do futuro quando lhe ocorre que o esquecimento será a única força capaz de vencer o seu amor por Albertine, como um leão que é aprisionado numa jaula onde se descontrai apenas para descobrir uma cobra ao seu lado. E por várias páginas, por mais de metade deste volume aliás, temos muito disto, destas longas descrições do estado mental de Marcel perturbado por pequenas notícias que vai recebendo, ou perturbado mais ainda pela ausência delas. Ele pensa em Albertine ou em amor e saudade, ou em completa fúria e posse, mas cada vez mais pensa que o regresso não lhe restauraria a felicidade, e quanto maior é o desejo, menor é a posse. Neste propósito o narrador quase que quebra a proverbial quarta parede, pelo menos para mim, ao imaginar a decisão de um escritor que dedica o seu livro à mulher amada.

Quanto mais o desejo avança, mais se afasta a posse verdadeira. […] E imagino que, se um escritor emitisse verdades deste género, dedicaria o livro que as contivesse a uma mulher de quem assim se aproximasse deliciadamente dizendo-lhe: «Este é o teu livro.» E deste modo, dizendo verdades no seu livro, mentiria na dedicatória, porque faria tanto gosto em que o livro fosse daquela mulher como naquela pedra que dela recebeu e que para ele só será preciosa enquanto amar a mulher. Os laços entre uma pessoa e nós só existem no nosso pensamento. – página 35

Mas nisso ele reconhece alguma falsidade, ou talvez inutilidade. Nas páginas seguintes compara a sua paixão por Albertine a uma das suas árias favoritas, procurando encontrar-se na história através de um reflexo que só na ficção é real. No entanto, ele sabe que é-nos impossível ler uma história sem imaginar a heroína como a mulher que amamos, e por muito que a história acabe com uma cena bonita dela junto do herói, a mulher real que amamos não chegará até nós, não nos amará, e no fim nada terá feito qualquer diferença. É como se vivêssemos num constante solipsismo que nos impede de nos relacionarmos a sério com os outros, muito menos no que se refere a assuntos do coração, nos quais ainda somos adolescentes ingénuos a escrever mensagens de amor durante uma aula aborrecida ao final da tarde. Mas enfim... Quando Albertine descobre a espionagem de Saint-Loup escreve um telegrama a Marcel dizendo-lhe que se tivesse pedido, ela teria regressado. Marcel sente-se aliviado, sente que o regresso dela é iminente, mas persiste com os seus jogos e escreve-lhe uma carta na qual elogia a sua sensatez por ter partido, antecipando a impossibilidade do casamento e escolhendo assim preservar a amizade. Adicionalmente, relembra que até Albertine lhe chamou de um homem de hábitos, insinuando que a cada momento perde os hábitos de estar com ela como se ameaçasse esquecê-la. Por último, e mais controverso, tenta aliciá-la com mentiras e esquemas sobre devolver um iate e um automóvel, alegando precisar da assinatura dela.

Ora, isso parece não resultar, talvez Albertine seja menos materialista do que Marcel pensa. Ela concorda que essas compras devam ser anuladas, dizendo que Marcel não terá necessidade delas, mas recusa a hipótese de um encontro para finalizar a burocracia. Em resposta, Marcel opta por uma nova estratégia – envia-lhe uma outra carta relembrando o bando de Balbec, considerando-o a célula social mais prestigiosa da qual alguma vez fez parte, mas especifica Andrée, com quem se quer agora casar. No entanto não parece obter resposta, algo que aliado ao fracasso de Saint-Loup deixa-o em fúria e ciúme, imaginando que Albertine está feliz e finalmente livre. Os seus pensamentos assumem até um caráter feio quando, num dos inúmeros paralelos com Swann e Odette, imagina que só a morte de Albertine lhe daria a liberdade de viver... E aqui a história assume uma série de ironias. Apesar da sua fúria, Marcel engole o orgulho e escreve um último telegrama a Albertine, sem jogos nem rodeios, simplesmente pedindo-lhe que regresse. A resposta é imediata mas não vem de Albertine, vem da senhora Bontemps que o informa de que Albertine morreu num acidente de equitação.

Não, não foi a supressão do sofrimento, mas um sofrimento desconhecido, o de ficar a saber que ela não regressaria. Mas não tinha eu várias vezes repetido para mim mesmo que talvez ela não regressasse? De facto, tinha-o repetido para mim mesmo, mas percebia agora que nem por um instante havia acreditado. Como tinha necessidade da sua presença, dos seus beijos, para suportar o mal que as minhas suspeitas me faziam, ganhara o hábito, desde Balbec, de estar sempre com ela. Continuava a beijá-la mesmo quando ela saía, quando estava sozinho. E continuara depois de ela estar na Touraine. Precisava menos da sua fidelidade do que do seu regresso. E embora a minha razão o pusesse em dúvida algumas vezes, a minha imaginação nem por um instante deixava de o contemplar. Instintivamente, passava a mão pelo pescoço, pelos meus lábios que se viam beijados por ela desde que ela se fora e que nunca mais o seriam, passava a mão por eles do mesmo modo que a minha mãe me afagara aquando a morte da minha avó dizendo-me: «Meu menino querido, a tua avó que te amava tanto não te beijará mais.» – páginas 57-58

O impacto é obviamente profundo e faz-se sentir pela memória de Marcel até a ponto de relembrar um outro momento passado, porque nem sempre os momentos proustianos, as famosas madalenas, são agradáveis. Desta vez a morte de Albertine deixa-o tão abalado como a morte da avó, aqui transformando a sua paixão por Albertine em algo tão inocente. Só que as ironias não terminam aqui. Françoise, não tendo conhecimento do sucedido, entra no quarto para lhe entregar duas cartas, assinadas justamente por Albertine. A primeira revela que a tentativa de causar ciúmes não resultou, pois ela respondera aprovando o casamento com Andrée. Mas a segunda é muito mais interessante, datada de um dia depois e revela o exato oposto, revela uma mudança tão drástica e inconstante como tudo o resto nesta obra.

«Seria tarde demais se eu voltasse para sua casa? Se ainda não escreveu à Andrée, seria capaz de me aceitar outra vez? Inclinar-me-ei diante da sua decisão, e suplico-lhe que não tarde a dar-ma a conhecer, deve imaginar com que impaciência espero por ela. Se for a de eu regressar, meto-me imediatamente num comboio. Sua de todo o coração, Albertine.» – página 59

Todas estas inconstâncias levam-me a pensar em Proust como semelhante a Fernando Pessoa, pois ele começa agora mais vincadamente a falar em toda uma multiplicidade de seres, como se a pessoa que era Albertine não era só uma rapariga mas sim várias, uma por cada memória em cada fase da sua vida, e portanto superar as revelações destas cartas terá de ser feito ao esquecer cada uma dessas versões diferentes que residem na interseção entre as forças do hábito e os recessos da memória. Mas isso afigura-se impossível porque os momentos de memória involuntária nunca cessam, sendo que até um raio de sol arrasa Marcel com memórias de Balbec, onde conheceu e namorou com Albertine. Ele relembra a praia, o bosque, as planícies, todos os lugares para os quais viajou e que, mesmo que continuem a existir com a mesma inexorabilidade, não existirão mais da mesma forma porque ele nunca mais lá voltará com Albertine. E se o pôr do sol passa não será por isso que deixa de doer, porque a noite chega e uma estrela faz Marcel relembrar as saídas noturnas com Albertine, as viagens de carruagem ao lado dela e todos os momentos que passaram juntos até à aurora, esta que por sua vez só o faz pensar em como a luz do romper da manhã nunca mais regressará para Albertine, mas que para ele chega sempre como uma lâmina.

Os seus planos são drasticamente alterados. Já não quer fazer aquela viagem a Veneza decidida na manhã em que foi informado da ausência de Albertine, e como o verão é tão associado a ela, sente que terá de atravessar um inverno doloroso, cheio de um gelo que esconde o germe das suas primeiras paixões, tanto por Albertine como por Gilberte. Por acaso é notável como as quatro estações do ano adquirem uma relevância intensa em Proust, que nos deixa sempre com longas descrições do mundo em torno do protagonista como que para refletir o seu estado de espírito, às vezes em conformidade, outras vezes em antagonismo, mas sempre deixando que cada sensação adquira novas cores conforme os dias. Essa dualidade é um outro tema central, donde surgem as inconstâncias já muitas vezes referidas, porque até aqui, nestas longas páginas introspetivas, Marcel alterna constantemente entre ainda amar Albertine só para a esquecer e deixar de amar, só para logo depois a relembrar e amar de novo. E é neste momento que surge talvez a minha passagem favorita deste volume, dotada de uma certa sincronicidade à qual não consigo escapar. O primeiro motivo para isso é porque Proust inclui uma passagem idêntica à de Álvaro de Campos no seu poema Saí do Comboio, sobre o qual escrevi recentemente, e o segundo motivo é porque fiz de momentos semelhantes uma grande parte da minha própria escrita.

De modo que não teria que aniquilar em mim uma só Albertine, mas inúmeras. Cada uma ligada a uma ocasião, em cuja data dava comigo recolocado quando revia essa Albertine. E esses momentos do passado não são imóveis; conservam na nossa memória o movimento que os arrastava para o futuro – para um futuro que se tornou também passado –, a nós mesmos nos arrastando para lá. Nunca acariciara a Albertine vestida de borracha dos dias de chuva; queria pedir-lhe que despisse aquela armadura, seria conhecer com ela o amor do campo, a fraternidade da viagem. Mas já não era possível, ela estava morta. – página 68

Há uma forte melancolia neste pensamento, a ideia de tão completamente conseguirmos visualizar momentos casuais do nosso quotidiano mas que, em virtude da morte, tanto da pessoa como da paixão, ou até mesmo a morte de qualquer possibilidade dela, nunca mais voltarão a acontecer. O que nos sobra é a memória daquilo que foi e a fantasia daquilo que poderia ter sido, mas entre um e outro está o ciúme, com o qual Marcel ainda se debate. E como Albertine já não tem mais futuro, o que o atormenta agora é o seu passado, que será explorado com uma liberdade que nunca nos é concedida em vida. Agora quaisquer traições são impossíveis, mas para a mente ciumenta fazem doer como acontece aos braços de um homem a quem eles foram amputados. Neste propósito há um outro paralelo com Swann e Odette mas desta vez alternado, porque Marcel conseguiu ter Albertine junto de si de uma forma que Swann não conseguiu com Odette, mas no entanto este último conseguiu mantê-la como sua mulher até ao dia da sua morte, enquanto que Albertine, pelo seu espírito livre juntamente com as idiossincrasias controladoras de Marcel, escapou. Aliás, o narrador, aludindo às vicissitudes do tempo, que mais parece o destino, quase que considera Swann o criador desta sua paixão com Albertine, pois foi ele que suscitou no então jovem protagonista um profundo interesse por Balbec, que o levou lá no verão de À Sombra das Raparigas em Flor.

Com a chegada de alguma calma e racionalidade, Marcel procura então informar-se do passado de Albertine. Ocorrem-lhe pensamentos sobre as simples raparigas do campo ou até mesmo sobre todos os seres humanos que viveram antes dos meios de comunicação do seu tempo, e imagina que terão sofrido muito menos por não terem sentido falta daquilo que nunca conceberam ou que se conceberam foi-lhes tão distante que nem sequer lhes pareceu real. Sentir a falta só amplifica o desejo, e talvez agora ele sinta mais falta de Albertine do que quando, após passar a noite com ela, acordou com pensamentos de a deixar para trás e partir para Veneza. A propósito de investigar, porque ainda não abandonou os ciúmes, Marcel questiona Andrée, que defende a honra de Albertine, e envia Aimé, o empregado de hotel conhecido no segundo volume, a Balbec para descobrir mais sobre o passado de Albertine. Os relatórios chegam aos poucos, em telegramas escritos numa linguagem direta e simples, muito em contraste com a do narrador que, na sua típica e às vezes ligeiramente exagerada eloquência, entrecorta a narrativa com meditações sobre o amor, o tempo, e, neste caso, a morte.

A ideia de que morreremos é mais cruel que morrer, mas menos que a ideia de que outra pessoa morreu, de que, de novo plana depois de ter engolido uma criatura, se estende, sem deixar sequer um remoinho naquele lugar, uma realidade donde essa pessoa está excluída, onde já não existe qualquer querer, qualquer conhecimento, e da qual é tão difícil chegar até à ideia de que aquela pessoal esteve viva como é difícil pensar, partindo da memória ainda tão recente da sua vida, que ela é assimilável às imagens sem consistência, às recordações deixadas pelas personagens de um romance que lemos. – páginas 85-86

Ao relembrar os dias que passou com Albertine, cheios de mentiras e segredos, pergunta-se a si mesmo porque é que ela nunca simplesmente admitiu ter atrações por outras mulheres. Nesse passo de narrativa, e numa nova recordação muito curiosa para com o próprio Proust, ele relembra uma instância no verão em Balbec na qual terá confessado detestar os costumes associados a Gomorra. Em retrospetiva é provável que Albertine, já gostando dele, tenha desde então tentado suprimir a sua natureza, revelando que este casamento estava condenado a falhar desde o início. Mas ele não se recorda da reação dela a essa pequena conversa que na altura lhe pareceu tão insignificante, tendo-se agora juntado a outras memórias semelhantes que nos surgem após a morte de uma pessoa próxima, memórias que fazem nascer toda uma série de questões às quais nunca teremos resposta... A propósito disso, e como já se deve ter tornado óbvio, Gilberte vai ganhando cada vez mais relevância, surgindo mais omnipresente na memória de Marcel juntamente com os dias simples de Combray, que o levam a imaginar que está prestes a receber uma carta de amor da parte dela, ou talvez uma impossível carta de Albertine dizendo-o que afinal recuperara do seu acidente e que queria voltar a casa, deixando-o perpetuamente perdido entre ficção e realidade.

E, fazendo-me compreender muito bem a existência de certas loucuras mansas em pessoas que parecem muito sensatas, eu sentia coexistirem em mim a certeza de que ela tinha morrido e a incessante esperança de a ver entrar. – página 89

Com as investigações de Aimé, todos os ciúmes e sentimentos de posse ressurgem, sentimentos esses que talvez devessem ter sido enterrados. Mas os juízos errados que Marcel fizera sobre Albertine ainda o atormentam, ocorria-lhe que ela gostava de mulheres com o mesmo intuito com que dizemos que poderemos morrer no dia de hoje, ou seja, algo que sabemos como potencialmente verdade mas no qual nunca acreditamos seriamente e continuamos então com os nossos melhores planos. Quase que lhe surge o pensamento de que se tivesse sido atencioso para com essas inclinações, Albertine não teria partido e consequentemente não teria morrido, ou talvez se ela nunca tivesse tido essas inclinações o casamento entre eles poderia ter sido possível e feliz. Mas Aimé escreve uma carta que contém informações decisivas, tendo descoberto vários encontros que Albertine tivera com uma jovem lavadeira, encontros que lhe suscitaram um prazer audível numa expressão emotiva que chega agora a Marcel como se fizesse eco através dos anos.

E então contou-me que a menina Albertine se encontrava muitas vezes com ela na praia quando ia tomar banho. Que a menina Albertine tinha o hábito de se levantar de manhã cedo para ir tomar banho, num local onde o arvoredo é tão espesso que ninguém nos pode ver, e além disso não há ninguém que nos possa ver àquela hora. Depois a lavadeira trazia as suas amiguinhas e tomavam banho, e a seguir, como lá já faz muito calor e escaldava mesmo debaixo das árvores, ficavam deitadas na erva a secar, a acariciar-se, a fazer cócegas umas às outras, a brincar. A lavadeirinha confessou-me que gostava muito de se divertir com as suas amiguinhas e que, vendo que a menina Albertine se esfregava sempre nela com o seu roupão, dissera-lhe para o despir e fazia-lhe festas com a língua ao longo do pescoço e dos braços, e mesmo na planta dos pés que a menina Albertine lhe estendia. A lavadeira despia-se também e brincavam empurrando-se dentro de água. Chegada a este ponto não me disse mais nada. – página 99

Este momento é descrito em tons reminiscentes do banho das ninfas e de Nausícaa na Odisseia de Homero, mas por outro lado parece-nos inteiramente realista e plausível, sendo apenas literário e poético na conceção que o nosso entendimento, numa aliança entre a memória e a imaginação, faz de cada detalhe. É muito como se para sofrer com esses acontecimentos, Marcel nem sequer precisasse da memória deles, comparando a experiência à de um homem que apesar de já ter esquecido as belas noites que passou na floresta, ainda sofre dos reumatismos que lá contraiu. Então o passado de Albertine é comparado a traições de nacionalidade, com o narrador a capturar a situação nos mesmos tons bélicos de anteriormente, como se Albertine fosse uma agente secreta de um país inimigo, sendo que Proust quase que parece considerar as pertencentes de Gomorra como pessoas de uma raça diferente. No entanto, deve-lhes restar alguma humanidade, pois Marcel reconhece Albertine e esta sua amiga lavadeira num quadro de Elstir, e é apenas com esse poder restaurador da arte que consegue perdoar pelo menos uma das muitas Albertines.

Relembrei o belo olhar bondoso e compassivo dessa Albertine, as suas faces redondas, o seu pescoço com grandes sinais. Era a imagem de uma morta, mas como essa morta estava viva, ser-me-ia fácil fazer já o que teria infalivelmente feito se ela em vida estivesse ao pé de mim (o que faria se alguma vez tornasse a encontrá-la noutra vida), e perdoei-lhe. […] É que as recordações em amor não constituem uma exceção às leis gerais da memória, também ela regida pelas leis do Hábito. Como esta enfraquece tudo, o que mais nos faz lembrar uma pessoa é justamente aquilo que havíamos esquecido por ser insignificante e a que assim devolvemos toda a sua força. A melhor parte da nossa memória está deste modo fora de nós. Está num ar de chuva, num cheiro a quarto fechado ou no de um primeiro fogaréu, seja onde for que de nós mesmos encontremos aquilo que a nossa inteligência pusera de parte, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando se esgotam todas as outras, sabe ainda fazer-nos chorar. – página 105

O luto, tanto pelo casamento que nunca aconteceu assim como pela morte de Albertine, ainda deixa Marcel nas mesmas confusões a ponto de as dores que sente o fazerem pensar se não serão devidas a causas patológicas quando se pergunta se o renascimento da dor, mais do que um recordar a praia de Balbec como se fosse a história de outra pessoa, seja na verdade o começo de uma doença de coração. No desespero de descobrir que Albertine o traía com mulheres, com seres tão diferentes dele, Marcel suspira que teria preferido que Albertine se tivesse apaixonado por Saint-Loup. A veracidade dessa afirmação escapa-nos, até porque em Sodoma e Gomorra vimos como Marcel muito temeu uma paixão entre esses dois, mas é algo muito característico da natureza humana preferir tudo menos aquilo que nos calhou, mesmo que mais tarde chegue essa preferência e então de repente preferimos uma nova alternativa. Para Marcel essa memória perde-se constantemente entre Balbec, onde conheceu Albertine, e Paris, onde viveu com ela até à noite em que ela fugiu. A saudade e o ciúme por Albertine também persistem, levando Marcel a sentir-se indiferente para com outras mulheres, unindo-se numa mistura que Proust parece considerar como sendo a sua própria realidade na qual as almas se movem pelo tempo tal como os corpos pelo espaço. É uma ideia deveras interessante, e na minha ingenuidade até quero que seja real, quero que Proust tenha razão quando fala de como às vezes voltamos de uma terra à qual nunca mais regressaremos, e ao passar pela estação dos caminhos de ferro temos por instantes a ilusão de que estamos a regressar a essa mesma terra, tal como da primeira vez. É um momento feliz mas logo a ilusão cessa naquilo a que Proust apelida de a crueldade da memória. Em todo este idealismo ele sabe que o amor existe dentro dele, que a sua alma é livre de se mover pelos mares da memória, e que há de chegar o dia em que esquecerá a Albertine...

Agora, sensivelmente a meio do volume, Marcel adquire alguma calma e, como não podia deixar de ser, volta-se para a vida em sociedade. Só que aqui parece mais um regresso após um longo exílio em luto por Albertine, cuja cara ele ainda vê em todas as raparigas por quem passa na rua. Quanto às amizades refere ter cada vez menos interesse, encontrando o seu prazer, não na sociedade, mas sim na literatura, continuando uma mudança que já pressentimos há alguns volumes atrás. Num dos passeios pela cidade, Marcel encontra três raparigas que persegue, encontrando uma rapariga loira que sabe chamar-se menina d'Éporcheville, uma rapariga aristocrática que frequentava bordéis, anteriormente referida por Saint-Loup. Só que numa confusão tão típica de Proust, ele descobre que se enganara no nome, na verdade o nome era Forcheville, e então a menina de Forcheville é, muito ironicamente, Gilberte. É uma revelação bizarra, e precisamente aquela que me faz pensar em Swann como um personagem trágico. Em morte é usurpado pelo antigo amante da mulher, algo que me fazer entreter teorias sobre Gilberte não ser filha dele mas, não havendo evidências disso, fica apenas a absoluta confusão. No entanto, Gilberte deu-se bem com o novo casamento da mãe, tendo aceite o nome do padrasto como prova disso.

Gilberte tornou-se herdeira de grande fortuna, algo que a catapultou para a alta sociedade. O passado de Odette ainda a persegue mas já consegue avançar na sociedade dos Guermantes tal como Swann sempre quis. Muito do que se passa nestas páginas é semelhante às páginas mais aborrecidas de O Lado de Guermantes, mas aqui adquire um tom quase de tristeza, com Marcel a sentir que essa vida já não lhe interessa, e de que, apesar da presença desta nova Gilberte ser o centro da sua atenção, os melhores dias da vida em sociedade já passaram... Eventualmente relembra Albertine quando recusa um convite por se sentir ainda de luto, referindo pela primeira vez em voz alta um sofrimento que, ao ser verbalizado, deixa de sentir. À parte disso sobra-lhe todo um sentimento melancólico por sua vez espelhado em Gilberte que se insere numa sociedade que tanto ignorava Swann, deixando que cada vez mais o seu nome caia na morte e no esquecimento. Assim também Marcel, numa nota posterior de Proust, revela já não amar Albertine, sofrendo por um amor que já não existia. Em tudo isto, ele perde-se num meio-termo difícil de explicar mas fácil de entender – sente-se por um lado ainda jovem e portanto ainda vai a tempo para começar a sua vida, mas por outro lado sente-se demasiado velho ao contemplar todo o tempo perdido que tem agora atrás de si.

Talvez seja precisamente por isso que, por querer ser jovem outra vez, Marcel se encontra com Andrée, para obter dela mais informações sobre Albertine mas também algumas carícias, relembrando as relações semicarnais, expressão dele, que tivera com Albertine, e nesse momento de intimidade leva Andrée a contradizer as suas rejeições anteriores, quase que a brincar e de forma descuidada dizendo que não pode fazer com ele aquilo que fizera com Albertine, pois Marcel é homem. A isso segue-se uma revelação que Marcel fica sem saber se é verdade ou não – Andrée fala sobre um dia em que, aproveitando uma saída de Marcel e Françoise, se encontrou com Albertine na casa de Paris, por muito pouco não tendo sido apanhadas em situações comprometedoras. Albertine terá passado três dias em grandes remorsos e não mais se encontrou com Andrée, de novo mostrando que ela gostava de Marcel tanto como o temia, cristalizando o seu estatuto de prisioneira. Esta revelação chega numa incerteza, pois Proust faz às vezes questão de não dar ao seu protagonista mais sabedoria do que ele merece, e como tal não sabe se Andrée lhe diz a verdade ou não.

Não há ideia que não contenha em si a sua refutação possível, não há palavra que não contenha a palavra contrária. – página 168

Andrée está noiva de Octave, um sobrinho dos Verdurin, um jovem que era também querido pela senhora Bontemps para marido de Albertine, elucidando um outro motivo possível da fuga. De qualquer das formas, torna-se deveras estranho que apesar de um noivado ativo ela se encontre tão prontamente com Marcel, longe de quaisquer supervisão, de novo aludindo aos atalhos que Proust tomou com a sua história. É como se Andrée estivesse de alguma forma submissa a Albertine, e agora sente-se quase livre e autónoma, mesmo a ponto de ter um amante casual. Mas esta e muitas outras inconsistências da obra são às vezes quase que inerentes à escrita em si, com Proust nesta seguinte passagem, por exemplo, de alguma forma a salvaguardar a inconsistência de idades em À Sombra das Raparigas em Flor, famosamente criticada por Evelyn Waugh.

Aliás, que pouco eu sabia, e que pouco alguma vez saberia da história de Albertine, a única história que poderia ter-me interessado particularmente, e que, pelo menos, voltava a interessar-me em certas ocasiões! Porque o homem é aquele ser sem idade fixa, aquele ser com a faculdade de em alguns segundos tornar a ser muitos anos mais novo, e que, rodeado pelas paredes do tempo em que viveu, nele flutua, mas como que numa bacia cujo nível mudasse constantemente e o situasse ora ao alcance de uma época, ora de outra. – página 178

Agora que o volume se aproxima do fim, terminam as investigações sobre Albertine, sendo que só em morta é que os seus segredos emergiram, algo que o narrador insinua como elucidativo de que ninguém acredita na vida eterna. Ele considera que se acreditássemos na vida depois da morte manteríamos em segredo todas as indiscrições dos nossos entes queridos, preservando a nossa amizade para quando os reencontrarmos, ou apenas salvaguardando-nos da sua ira. Mas ninguém acredita, e sabemos que depois da morte só nos resta a memória, que também um dia desaparecerá. Em tudo isto vemos como Marcel, cada vez mais sóbrio e racional, procura constantemente pela juventude, procura por aquele verão em Balbec mais do que apenas por Albertine. Na sua memória perde-se ao imaginar as raparigas bonitas que perseguiu, mas quase que se deprime ao lembrar que também elas cresceram. Numa palavra, é muito como aquela sensação a todos certamente conhecida de ver que aqueles à nossa volta estão a prosseguir com as suas vidas, a crescer, a mudar, enquanto que nós, numa melancolia que só pode nascer da saudade, não queremos nada exceto voltar atrás.

Sabia que a juventude das que conhecera já não existia a não ser na minha memória ardente, e que, por muito desejoso que estivesse de as atingir quando a memória mas imaginava, não era a elas que devia apanhar, se queria verdadeiramente colher em flor a juventude do ano. – página 191

No entanto, o passado tem sempre um talento estranho de se ressuscitar a cada momento no presente, mas só quando não estamos à espera... O último segmento deste volume consiste de facto numa viagem a Veneza que Marcel faz com a mãe, uma espécie de breve paralelismo com o verão em Balbec que passou com a avó e durante o qual conheceu Albertine. Agora com a ausência de ambas, ele sente-se mais próximo da mãe, que já não lhe esconde o seu afeto e com quem passa tardes a admirar a arquitetura à sua volta numa constante apreciação estética da qual Proust sempre foi mestre. E após mais umas páginas de sociedade, reencontrando a senhora de Villeparisis e o diplomata Norpois que anteriormente avivou em Marcel os seus desejos de se tornar escritor, páginas essas por sua vez interrompidas pela vontade que Marcel tem de se encontrar com prostitutas, ele regressa ao hotel para receber um telegrama... de Albertine.

«Meu amigo, não me julgue morta, perdoe-me, estou bem viva, gostava de o ver, falar-lhe de casamento... Quando volta? Ternamente, Albertine» – página 202

Esta foi uma instância de memória, não necessariamente falsa mas sim confusa, que eu tinha deste volume. Recordo-me vagamente desta revelação quando fiz a minha primeira leitura de Em Busca do Tempo Perdido, mas achei que aparecia muito mais cedo na história e de que o seu impacto era muito maior, quase como o de um policial. Só que Marcel não reage com muita intensidade, é mais como se a Albertine que ele conhecera já tivesse morrido de qualquer das formas, e por isso ela afinal estar viva é-lhe agora indiferente, quase como olhar-se ao espelho depois de velho e não se reconhecer no reflexo pois a face deixou de ser a mesma. A memória que tem agora é de Albertine com o perfil da senhora Bontemps, concretizando a sua teoria previamente exposta de que para se adivinhar a aparência futura de uma rapariga bonita é necessário ver-lhe a mãe ou a tia. Por um lado isso soa superficial mas por outro entende-se este amor, ou a falta dele, como uma devoção à juventude, que contém em si todo o tempo perdido... Marcel quer rejeitar o telegrama, simplesmente deixou de amar Albertine, e escolhe então prosseguir com a sua vida em Veneza.

E como entre a memória de um sonho e a de uma realidade não há grandes diferenças, acabava por perguntar a mim mesmo se não fora durante o sono que acontecera num escuro pedaço de cristalização veneziana aquela estranha flutuação que oferecia à meditação prolongada do luar uma vasta praça rodeada de palácios românticos. – página 210

Num último momento, Marcel quer ficar para trás, deixando que a sua mãe parta sozinha no comboio. Ele senta-se numa esplanada e deixa-se admirar a cidade, à espera que o tempo passe, o comboio parta e o deixe para trás. Mas quando lhe surge um aperto, quando Veneza deixa de ser Veneza, quando a cidade se torna estranha em todos os aspetos, ele apressa-se ao comboio e junta-se à sua mãe, para muito alívio dela que lhe cita uma frase da avó que já em tempos dizia que não há ninguém mais insuportável, e ao mesmo tempo mais simpático, que o pequeno Marcel. E então dá-se uma outra revelação – Marcel senta-se junto da mãe a ler algumas cartas e reconhece a letra de Gilberte. É uma carta anunciando o seu noivado com Robert Saint-Loup, e é só ao analisar a caligrafia que ele se apercebe da confusão e descobre que Albertine não ressuscitara, o telegrama anterior era na verdade de Gilberte.

A história adquire um tom quase que de finalidade. Estamos mesmo perto do fim mas como isto é Proust ainda nos falta um volume inteiro. Veremos mais ainda do mesmo tom circular que permeia todo a obra, agora regressando à vida de Combray mas com Marcel e Gilberte já adultos e sábios, ela grávida do seu melhor amigo, e ele triste e cansado de tudo... A propósito disso, o narrador traz-nos uma última revelação que talvez explique alguns momentos de O Lado de Guermantes quando nos diz que Saint-Loup é bissexual. Em oferecer tantos detalhes íntimos deste novo casamento o narrador até considera que Saint-Loup se poderia ter casado com Albertine, precisamente porque ambos teriam liberdade de explorar esse lado da suas respetivas naturezas, algo que ele refere não considerar imoral. Ao esconder a sua bissexualidade, Saint-Loup leva Gilberte a pensar que o seu marido ainda ama Rachel, cuja sombra cai sobre este casamento, do qual há breves páginas fomos informados mas que fica já num distinto pessimismo de que não há de durar.

Entretanto, Marcel e Gilberte dão um passeio por Combray ao final da tarde. Ele sente-se cada vez mais desapontado por não sentir nada ao rever as mesmas ruas da sua infância até que em conversa com ela, num momento que só pode ser descrito como cinemático, descobre que os lados de Guermantes e os lados de Méséglise não eram afinal inconciliáveis, indicando uma continuidade e circularidade metafórica do tempo. Até os detalhes mais nítidos da sua infância, eloquentemente descrita na primeira parte do primeiro volume desta obra, são nascidos de erros de interpretação, algo que nos faz valorizar a memória com aquele mesmo jeito com o qual tomamos conta de coisas frágeis. E a última revelação neste volume cheio delas é de que Gilberte adorava Marcel, mesmo da primeira vez que o viu, sendo que ele interpretara mal a sua reação e essa descoberta fá-lo agora rever todas as suas memórias, unindo-as no lado de Méséglise, por onde passou para ver Gilberte, símbolo de todos os seus desejos de adolescência e detentora da última palavra deste volume.

«Tudo isso já lá vai bem longe», disse-me ela, «desde o dia em que fiquei noiva do Robert nunca mais pensei senão nele. E olhe que nem sequer é desses caprichos de criança que eu mais me censuro...» – página 247

§

Afinal Albertine morreu mesmo... É como se a cada página eu viesse a descobrir factos puros que provam que a minha primeira e muito incompleta leitura de Em Busca do Tempo Perdido me induziu em imensos erros. Só que por outro lado não gosto de pensar nessas coisas como erros, por um lado até gosto de pensar nesses detalhes como confusões da memória, tão inerentes não só a mim como também a toda a gente, incluindo o protagonista deste longo, longo romance. É estranho que Albertine morra assim, sem qualquer cerimónia, num acidente do qual ninguém parece ter culpa, um acidente que, embora soe forçoso em literatura, é às vezes representativo da vida real. Porque também neste nosso mundo as pessoas morrem sem grandes avisos, de um dia para o outro, de forma não tão diferente de nos esquecermos de uma memória insignificante. Às vezes nem sequer damos conta, ou não damos conta num momento para sentirmos tudo de uma só vez noutro a seguir... Mas enfim, é o que é, e embora gostasse de me alongar em pensamentos finais, sei também que não me é expediente fazê-lo porque ainda tenho um, mas só mesmo mais um, volume para ler. Não antecipo um verão muito calmo, pelo menos não tão calmo como queria, mas nesse aspeto parece que a vida nunca acontece de forma verdadeiramente conveniente, parece que nunca reúno as condições necessárias para fazer aquilo que quero mesmo. Mas vou tentar, e se não obtiver nenhuma revelação nem nada que se pareça, terei talvez de esperar um ano, ou uma década, ou uma vida inteira, para que a memória destes dias de agora, os únicos nos quais o tempo está, seja encontrada.

Comments

Popular posts

A Minha Interpretação Pessoal de “Às Vezes, em Sonho Triste” de Fernando Pessoa

Já há muito tempo que não lia nada que o Fernando Pessoa escreveu, e talvez por esse motivo, mas principalmente porque buscava ideias sobre as quais escrever aqui, decidi folhear um livro de poemas dele. E enquanto o fiz, tomei especial nota das marcas que apontei na margem de algumas páginas, significando alguns poemas que gostei quando os li pela primeira vez, há cerca de sete anos atrás. Poderia ter escolhido um poema mais nostálgico ou até mais famoso, mas ao folhear por todo o livro foi este o poema que me fez mais sentido escolher. Agora leio e releio estes versos e comprometo-me a tecer algo que não me atreverei a chamar de análise, porque não sou poeta nem crítico de poesia. Mas como qualquer outro estudante português, fui leitor de Fernando Pessoa e, ainda que talvez mais a uns Fernandos Pessoas do que a outros, devo a este homem um bom pedaço dos frutos da minha escrita, que até à data são poucos ou nenhuns. Mas enfim, estou a divagar... O que queria dizer a jeito de introduç...

Meditations on The Caretaker's “Everywhere at the End of Time”

I have always been sentimental about memory. Nostalgia was surely one of the first big boy words I learned. And all throughout my life I sort of developed a strong attachment memory, and subsequently to things, which became an obsession almost. I never wanted to see them go, even if they had lost any and all useful purpose, because they still retained a strong emotional attachment to me. I had a memory forever entwined with those old things, so I never wanted to see them go. However, in my late teens I realized I was being stupid, I realized there was no memory within the object itself, it was only in me. So I started to throw a bunch of stuff out, I went from a borderline hoarder to a borderline minimalist, and it was pretty good. I came to the realization that all things were inherently temporary. No matter how long I held on to them, eventually I would lose them one way or another, and if someone or some thing were to forcefully take them from me, I would be heartbroken beyond repai...

10 Atheist Arguments I No Longer Defend

I don't believe in God, I don't follow any religion. And yet, there was a time in my life when I could have said to be more of an atheist than I am now. In some ways I contributed to the new atheism movement, and in fact, for a little while there, Christopher Hitchens was my lord and savior. I greatly admired his extensive literary knowledge, his eloquence, his wit and his bravery. But now I've come to realize his eloquence was his double-edged sword, and because he criticized religion mostly from an ethics standpoint, greatly enhanced by his journalism background, some of the more philosophical questions and their implications were somewhat forgotten, or even dealt with in a little bit of sophistry. And now it's sad that he died... I for one would have loved to know what he would have said in these times when atheism seems to have gained territory, and yet people are deeply craving meaning and direction in their lives. In a nutshell, I think Hitchens versus Peterson wo...

Mármore

Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver. Era assim que escrevia o Bernardo numa página à parte, em pleno contraste com tantas outras páginas soltas e enamoradas de ilustrações coloridas, nas quais eram inteligíveis as suas várias tentativas de idealizar uma rapariga de cabelo castanho-claro, ou talvez vermelho, e com uns olhos grandes que pareciam evocar uma aura de mistério e de aventura, e com os braços estendidos na sua frente, terminando em mãos delicadas que se enlaçavam uma à outra, como se as suas palmas fossem uma concha do mar que guarda uma pérola imperfeita, como se cuidasse de um pássaro caído que tem pena de libertar, como se desafiasse um gesto tímido... Mas tal criação ficava sempre aquém daquilo que o Bernardo visualizava na sua mente. Na verdade não passava sequer de um protótipo mas havia algo ali, uma intenção, uma faísca com tanto potencial para deflagrar no escuro da página branca... se porventura ele fosse melhor artista. E embora a obra carecesse ...

A Synopsis Breakdown of “The Wandering King”

A collection of eight different short stories set in a world where the malignant and omniscient presence of the Wandering King is felt throughout, leading its inhabitants down a spiral of violence, paranoia and madness. That is my book's brief synopsis. And that is just how I like to keep it – brief and vague. I for one find that plot-oriented synopses often ruin the whole reading, or viewing, experience. For example, if you were to describe The Godfather as the story of an aging mafia don who, upon suffering a violent attempt on his life, is forced to transfer control of his crime family to his mild-mannered son, you have already spoiled half the movie. You have given away that Sollozzo is far more dangerous than he appears to be, you have given away that the Don survives the attempt, and you have given away that Michael is the one who will succeed him... Now, it could well be that some stories cannot be, or should not be, captured within a vague description. It could also be t...

In Defense of Ang Lee's “Hulk”

This movie isn't particularly well-liked, that much is no secret. People seem to dislike how odd and bizarrely subdued it is, especially considering the explosive nature of its titular superhero. In a nutshell, people find this movie boring. The criticism I most often hear is that it is essentially a very pretentious take on the Incredible Hulk, an ego-driven attempt to come up with some deep psychological meaning behind a green giant who smashes things. And it's tempting to agree, in a sense it's tempting to brush it off as pretentious and conclude that a film about the Hulk that fails to deliver two action-packed hours is an automatic failure. But of course, I disagree. Even when I was a kid and went into the cinema with my limited knowledge, but great appreciation, of the comics, I never saw the Hulk as a jolly green giant. At one point, the character was seen as a mere physical manifestation of Bruce Banner's repressed anger awakened by gamma radiation, but eventual...

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido I – Do Lado de Swann”

Estou a ler Marcel Proust pela segunda vez... Há quem diga que é comum da parte dos seus leitores iniciarem uma segunda leitura logo após a tortura que é a primeira. Quanto a mim posso dizer que seja esse o caso. Quando li este primeiro volume pela primeira vez decidi que não tinha interesse em ler os outros seis, mas depois mudei de ideias e li-os. Mas li quase como que só para poder dizer ter lido. Então o objetivo seria não mais pensar no livro mas isso afigurou-se estranhamente impossível. Surgia uma crescente curiosidade em ler sínteses ou resumos e ficava-me sempre aquela surpresa depois de ler sobre um acontecimento do qual já não tinha memória. Por isso é que me proponho agora a uma segunda e muito, muito mais demorada leitura, para que possa compreender o livro pelo menos o suficiente para dizer qualquer coisa interessante sobre ele. Em relação ao título deste artigo, do qual planeio fazer uma série, decidi usar o termo que usei porque nenhum outro me pareceu mais correto. Nã...

The Gospel According to Dragline

Yeah, well... sometimes the Gospel can be a real cool book. I'm of course referencing the 1967 classic Cool Hand Luke, one of my favorite films of all time. And, as it is often the case with me, this is a film I didn't really care for upon first viewing. Now I obviously think differently. In many ways, this is a movie made beautiful by it's simplicity. It is made visually striking by its backdrop of natural southern beauty in the US – the everlasting summer, the seemingly abandoned train tracks and the long dirt roads, almost fully deserted were it not for the prisoners working by the fields... It almost gives off the impression that there is no world beyond that road. And maybe as part of that isolation, the story doesn't shy away from grit. It is dirty, grimy and hence, it is real. Some modern movies seem to have an obsession with polishing every pixel of every frame, thus giving off a distinct sense of falsehood. The movie then becomes too colorful, too vibrant, it...

A Minha Interpretação Pessoal de “Sou um Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro

Em continuação com o meu artigo anterior, comprometo-me agora a uma interpretação de um outro poema do mesmo poeta... mais ou menos. Porque os vários heterónimos pessoanos são todos iguais e diferentes, e diferentes e iguais. Qualquer leitor encontra temas recorrentes nos vários poemas porque de certa forma todos estes poetas se propuseram a resolver as mesmas questões que tanto atormentavam o poeta original. Mas a solução encontrada por Alberto Caeiro é algo diferente na medida em que é quase invejável ao próprio Fernando Pessoa, ainda que talvez não seja invejável aos outros heterónimos. Por outro lado, talvez eu esteja a projetar porque em tempos esta poesia foi deveras invejável para mim. Ao contrário do poema anterior, do qual nem sequer tinha memória de ter lido e apenas sei que o li porque anotei marcas e sublinhados na margem da página, este poema é um que li, que gostei e que apresentei numa aula qualquer num dia que me vem agora à memória como idílico. Mas em típico estilo d...

Martha, You've Been on My Mind

Perhaps it is the color of this gray rainy sky at the end of spring, this cold but soothing day I hoped would be warm, bright and the end of something I gotta carry on. Or maybe it's that I'm thinking of old days to while away the time until new days come along. Perhaps it's all that or it's nothing at all, but Martha, you've been on my mind. I wouldn't dare to try and find you or even write to you, so instead I write about you, about who I think you are, because in truth I don't really know you. To me you're just a memory, a good memory though, and more importantly, you're the very first crossroads in my life. I had no free will before I saw you and chose what I chose... Two roads diverged in a yellow wood, you would have led me down one, and yet I chose the other. But I never stopped looking down your chosen path for as long as I could, and for a fleeting moment I could have sworn I saw you standing there, and then you just faded, almost as if you ...