Houve uma altura na minha vida, talvez durante a maior parte da minha vida, em que procrastinar, ou apenas não querer saber do tempo, foi-me um tema recorrente. Tão recorrente aliás que na altura nem me apercebi da sua omnipresença... Era comum passar dias inteiros não só sem fazer nada de especial como também sem sequer ter quaisquer planos para mudar isso. Passava dias e semanas e meses a ler livros que não me interessavam, ou a ver filmes e séries só porque sim, ou a ver vídeos no YouTube sobre coisas à sorte e de certa forma tão estúpidas que às vezes me faziam pensar que já não tinha idade para aquilo. Na verdade, muito mas mesmo muito de vez em quando surgiam-me pensamentos assim, imaginava o que os meus amigos da universidade estariam a fazer da vida e concluía que de certeza absoluta que não estavam a fazer o mesmo que eu, que estavam a construir os seus futuros, uma pedra de cada vez, até que eventualmente obtinham uma independência que a mim me iludia por completo. Mas agora, embora ainda procrastine aqui e ali, como acho que toda a gente o faz, e que até nem acho que seja uma coisa inteiramente terrível, agora sinto-me positivamente mal e nunca consigo deixar de pensar que tempo livre é quase que uma ilusão, ainda que talvez seja uma ilusão necessária.
Nos dias de universidade um amigo meu costumava dizer que às vezes tinha todo o seu trabalho feito, ou seja, tinha estudado todas as matérias até à data, tinha estudado até algumas das matérias mais à frente, tinha escrito os ensaios, tinha lido os livros, enfim, tinha feito tudo, e então sentia que queria relaxar um bocado, queria tirar férias de algumas breves horas. Por isso ele sentava-se a ver um ou dois filmes mas ainda antes de chegar a meio deles sentia-se mal, sentia que estava a perder tempo, tempo valioso no qual poderia ser produtivo se se dedicasse a coisas melhores. Porque mesmo estando a par de todo o seu trabalho ele sentia que podia sempre fazer mais ou melhor... Na altura eu não compreendi isso, na altura eu ia vivendo o semestre muito à vontade, sabendo que no final teria tempo de alcançar o que queria, e na maioria dos casos consegui mesmo, mas agora que comecei a escrever, a ideia de tirar férias é-me quase que impossível, e desperdiçar tempo, ainda que o faça ocasionalmente, dói-me como doía ao meu amigo.
Um outro amigo meu disse uma coisa semelhante, o meu amigo Tony Soprano. Numa das suas sessões de terapia ele descreveu uma ocasião em que estava a ver o filme Se7en e que até estava a gostar, mas a dada altura foi como que abatido pela verdade de que descobrir quem é o assassino não lhe trará qualquer diferença na sua vida. Então deixou o filme a meio e tentou fazer qualquer coisa produtiva, ainda que, aparentemente, tenha falhado... Acho que há muito que analisar aqui, incluindo detalhes que me ultrapassam. Primeiro, podemos dizer que pela mesma lógica nada faz diferença nas nossas vidas. Podemos ignorar todo o cinema, televisão, literatura, filosofia, arte, desporto e tudo o mais porque nada disso afeta as nossas vidas num sentido imediato ou estritamente necessário, o que quer que isso signifique, mas também por outro lado, acho que nenhum de nós quer viver num mundo sem essas coisas ocasionalmente consideradas frívolas. Segundo, há aqui uma faceta mais psicológica no sentido em que o Tony até estava a gostar do filme, estava completamente investido na narrativa até que lhe chegou um momento de racionalidade. Isso é estranho que aconteça porque seria de esperar que quando estamos investidos no entretenimento, tais pensamentos sobre a passagem do tempo não nos afetam, nem sequer nos ocorrem, mas como afetam ao Tony é de pensar que haja aqui talvez uma certa ansiedade, talvez mais do domínio do seu estado psicológico. E terceiro, é curioso que a atividade de ver o filme seja interrompida mesmo sem uma atividade concreta a fazer no seu lugar, o que talvez evidencia que o que nos custa mais da procrastinação é a perda de controlo, algo que, no que respeita cinema eu até tento mitigar de uma forma controversa.
Pessoalmente é esse terceiro ponto que me faz mais sentido, ainda que seja paradoxal também. Porque por um lado detesto estar numa situação em que tenho pouco ou nenhum controlo, uma situação na qual me fui meter e que agora tenho de completar mas não tenho como acelerar o processo. Mas por outro lado é precisamente começar uma qualquer tarefa estúpida que me dá a ilusão de que, apesar de estar a procrastinar, de não estar a avançar na minha vida, estou no entanto a fazer qualquer coisa produtiva. Só que o mais engraçado ainda é que às vezes uma atividade de procrastinação num momento negativo acaba por ter repercussões positivas muito à frente. Por exemplo, há uns anos atrás, depois de ter terminado a universidade, passei meses e meses a procrastinar com coisas estúpidas, uma delas foi durante um fim de semana quando decidi ver uma série de vídeos de várias horas sobre um jogo antigo no qual já nem sequer pensava há anos... Foi uma ação estúpida, feita só mesmo por nostalgia e para ter algumas horas em que não pensava na minha vida real, mas o irónico é que houve um ou dois momentos desse jogo, momentos cujo impacto só descobri com esses mesmos vídeos, que me inspiraram a escrever o meu segundo livro. E então foi um desperdício de tempo ou não? Talvez tenha sido, mas para tentar resgatar o que quer que fosse, tive de voltar atrás para lhe tirar algum significado. A diferença agora é que quando faço algo semelhante, mesmo racionalmente sabendo que poderá colher o seu fruto, não consigo deixar de pensar no tempo livre como uma perda de tempo.
E agora tenho este blog... Antes de o começar sempre tive muitas ideias, mas ou as ignorei ou imaginei que as incluiria num livro qualquer. Claro que isso não faz muito sentido, não há como incluir as milhares de palavras que já devo ter escrito aqui num só livro, e por isso comecei este blog e fui escrevendo. Mas apercebi-me rapidamente de que isto é mais um trabalho do que um hobby. Na verdade tenho constantemente de planear as minhas ideias, escrevê-las e editá-las, tudo dentro de um certo prazo que imponho a mim mesmo. Às vezes atraso-me no sentido em que devia ter escrito algo muito antes, mas até agora nunca publiquei nada fora do prazo porque me obrigo sempre a cumpri-los a todos. Por outras palavras, agora o meu tempo é valioso, não só por aquilo que faço mas também como por aquilo que tenho para fazer no mês seguinte. Porque se planeio um certo número de artigos num mês, e cumpro esse número a meio do mês, então embora possa descansar, não há nada que me impeça de continuar para que no próximo mês esteja adiantado, e no próximo a seguir a esse, e a seguir, e a seguir... Então por muito simples e intuitivo que possa parecer, a verdade é que só agora é que tenho uma ideia do que é valorizar o tempo, mas por outro lado, essa ideia significa que não sei desfrutar do meu tempo livre, ou até que não existe tempo livre, só existe tempo em que procrastinamos. E embora eu agora procrastine muito menos, o tempo livre dói-me muito mais...
Porque ainda tenho muito tempo assim, ainda passo horas distraído com outras coisas em vez de escrever o que quero. Em poucas palavras, se eu tivesse um supervisor ele ficaria muito irado comigo porque se me observasse várias vezes por dia iria ver pouco trabalho. Mas o facto é de que o produto final é sempre entregue, e então como é que ficamos? Consideramos que se o produto for entregue a horas não há problema, ou consideramos que esse tempo desperdiçado pelo meio é prova de que o produto poderia ter sido mais e melhor? Não sei e não sei se se aplica a todas as áreas, mas pelo menos com esta coisa de escrever, ocorre-me que é muitas vezes preciso desperdiçar tempo para depois escrever tudo de uma só vez e com uma motivação que só os últimos minutos de um relógio podem oferecer. Mas para isso é preciso valorizar o relógio, é preciso sentir que a passagem de um dia para o outro tem mais significado do que números num relógio ou num calendário, é preciso sentir que esta coisa de estarmos perdidos sem fazer nada irá um dia trazer um arrependimento brutal. Só que esse arrependimento até pode ser bom... Quanto a mim esse momento chegou num verão em que, após passar a tarde toda a fazer atividades repetitivas e aborrecidas num jogo que já nem me estava a agradar, recebi notícia de que um amigo meu estava a construir a sua vida e a seguir em frente. Então senti-me tão mal que retomei a escrita do meu primeiro livro nessa mesma noite, e só parei quando cheguei ao fim.
Agora, à parte de tudo isso, embora sinta que não faz sentido descansar e tirar férias, porque as ideias continuam a surgir, quer dizer, não é como se pudesse sair da loja, desligar o telemóvel e não me preocupar com o que se passa nela, tenho no entanto a salvaguarda de que, sempre que perder tempo a procrastinar, com nada ou com uma coisa qualquer, posso um dia voltar-me para a página e escrever qualquer coisa, para que pelo menos esse meu tempo perdido tenha valido um bocadinho a pena.
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