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Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido V – A Prisioneira”

Estou agora perto do fim, tanto da obra em si como desta série de ensaios que eu, nas minhas tentativas de compreender e apreciar Em Busca do Tempo Perdido, tenho escrito. Comecei no verão passado, tendo planos de finalizar a obra inteira justamente no verão seguinte, que é este aqui e agora. Ainda vou muito a tempo mas é curioso que, tanto quanto sei, sempre me atrasei na leitura de cada volume. Às vezes lia cinquenta páginas seguidas e a bom ritmo, mas outras vezes passava dias sem sequer ter vontade de abrir o livro. Sempre me foi assim mas por outro lado sempre consegui terminar o ensaio respetivo a cada volume no seu devido tempo, sendo que o derradeiro será algures no final deste verão. E se insisto sobre a importância do verão é porque ele é importante para mim. Para Proust também parece ser mas não faço questão de fazer misturas ou de oferecer objetividade com as minhas interpretações, pelo menos não como objetivo principal. O que mais quero com tudo isto é, muito sinceramente, tirar este livro da minha cabeça, algo que só posso fazer ao exorcizar os meus pensamentos, volume a volume, capítulo a capítulo, página a página, verão a verão. E como ainda tenho mais umas talvez quinhentas páginas de Marcel Proust para ler, de preferência o quanto antes, fico-me por aqui por agora.

“Girl Resting on Her Arms” de Eugène Vidal

Descreveria este quinto volume como o início do fim. É um cliché mas alguns clichés são clichés por um bom motivo. O motivo aqui é porque vemos como que um apressar da narrativa, pelo menos no sentido em que a noção de pressa se pode aplicar em Proust, um apressar decididamente marcado pela crescente sensação de que o que era mais importante de dizer já foi dito, algo que acabou por ser uma bênção porque este volume foi o último publicado ainda em vida do nosso autor. No entanto, a noção de morte, excetuando talvez metáforas para o fim de uma paixão, não está presente num tom muito fatalista, até porque Proust nunca escreveu de forma tão linear assim, mas algo notável que está de facto presente é quase que um constante relembrar do passado, muito como se o protagonista, o narrador, o próprio Proust, ou todos eles, se começassem a sentir cada vez mais nostálgicos pelas páginas dos volumes anteriores. Pessoalmente posso dizer que me sinto assim agora que relembro o verão anterior no qual li sobre Combray e Balbec, sobre dias mais simples na vida de um protagonista mais feliz. E nas armadilhas da minha memória relembro esses dias, tanto os dele como os meus, como absolutamente bons. Claro que nunca é bem assim mas é sempre assim que pensamos, isto é, as coisas nunca nos são boas agora mas são-nos sempre boas quando as relembramos. E é talvez com um pensamento assim que o nosso protagonista se perde na espiral de ciúme e saudade que é Albertine, em torno do qual, sem surpresas, este volume se centra.

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Antes de mais devo dizer que, ao contrário dos volumes anteriores, este é o primeiro no qual as escassas mas significativas divisões em capítulos não se aplicam. Ler Proust quase nunca pode ser feito de capítulo a capítulo porque alguns deles perduram literalmente centenas de páginas, com o exemplo mais caricato disso sendo À Sombra das Raparigas em Flor, que divide as suas quatrocentas e cinquenta páginas em apenas dois capítulos. De qualquer das formas, a esta altura já estamos habituados, já sabemos o que esperar do ritmo e estilo de Proust. É apenas de notar porque é um dos muitos sinais que mostram que, apesar de tudo, esta obra está inacabada.

Logo de manhã, ainda virado para a parede e antes de ver por cima dos grandes cortinados da janela que tonalidade tinha a risca de luz do dia, já eu sabia como estava o tempo. – página 7

Esta é a frase de abertura e pertence a um tipo de tipo narração que eu descreveria como descrições fenoménicas do tempo. Tais passagens vão-se tornando mais comuns neste volume, talvez porque o protagonista vai gradualmente apreciando mais o mundo à sua volta num sentido que, quando estava enclausurado pelas suas paixões ou saídas sociais, não conseguia. Numa palavra, começamos a notar uma pressa de encontrar o tempo perdido, mas falemos disso mais tarde. Por agora o protagonista descreve a sua vida com Albertine, ambos habitando na sua casa de Paris, acompanhados meramente pela intrometida Françoise, uma vez que a mãe do protagonista está em Combray cuidando da sua tia, e o pai está cada vez mais ausente exceto em referências passageiras e passadas. Uma dessas referências é quando, numa das muitas instâncias de um ligeiro complexo de Édipo, o protagonista compara os beijos que recebe de Albertine ao final do dia com aquele beijo que recebeu da mãe na primeiríssima parte da obra, quando ela dormiu no seu quarto para o acalmar.

Ainda assim, nem tudo é bom para ele. A mesma indecisão predominante em toda a obra aparece aqui também, com o protagonista em constantes e confusas alternâncias sobre se ama Albertine. Às vezes ele acorda e deixa-se ficar na cama, a admirar o mundo que vê do outro lado da janela, sem qualquer urgência de começar o seu dia com Albertine, com a qual se aborrece e, como sempre, já não acha bonita. E em mais do que esse aspeto esta relação é de facto caricata. Não faz muito sentido que, no tempo de Proust, um casal jovem viva debaixo do mesmo teto antes do casamento, antes sequer de as famílias se conhecerem oficialmente e anunciarem o noivado. A ideia com que ficamos é de que a senhora Bontemps, a tia de Albertine, aprova tacitamente a relação devido às riquezas da família do protagonista, entendendo o potencial casamento como uma mais-valia para Albertine. Mas isso não resolveria muito, tanto porque caso o relacionamento se rompesse seria Albertine quem sairia a perder, uma vez que nenhum outro pretendente teria interesse nela, e porque obviamente há pouco, ou nada, a ganhar para a família do protagonista.

E além dessa complexidade social, que Proust parece reconhecer uma vez que oferece essa explicação da parte da senhora Bontemps e faz com que o seu protagonista se refira a terceiros sobre Albertine como sendo sua prima, a relação é complexa noutros aspetos também. A aprovação da mãe do protagonista surge também como tácita mas mais negativa do que a da senhora Bontemps, precisamente na hora da mudança e instalação na casa, durante a qual as malas de Albertine são descritas, curiosamente, como caixões. Nesse sentido as alusões à morte como uma metáfora para o fim de uma relação são devidamente iniciadas... Entretanto estes dois vão vivendo juntos mas num relacionamento que nunca se compreende. Parte do motivo seria o caráter inconstante do protagonista, que num momento ama Albertine perdidamente para num segundo momento a querer deixar. Além disso há a dinâmica social aplicada à vida doméstica, porque embora nós esperemos que esta coisa de um casal jovem a viverem sozinhos seja uma experiência casual e despreocupada, este par é bastante formal, tratando um ao outro por você e respeitando os respetivos horários pessoais, nomeadamente os sonos do protagonista que nunca podem ser, em qualquer circunstância, interrompidos. No entanto ainda acontece passarem bastante tempo juntos, sendo que a presença de Albertine é como que comparada à de um animal doméstico que entra no quarto, encontra um lugar confortável onde se instalar e não incomoda ninguém. Ainda assim, e apesar dessas comparações algo indelicadas, ele também se perde em descrições de Albertine, passagens que mais abertamente revelam os poderes literários de Proust.

Os seus longos olhos azuis – mais alongados – não haviam conservado a mesma forma; tinham a mesma cor mas pareciam ter passado ao estado líquido. De tal modo que quando os fechava era como se com cortinas se ocultasse a vista do mar. Quando nos separávamos todas as noites, era sem dúvida dessa parte dela que sobretudo eu me recordava. Porque, por exemplo, todas as manhãs, muito pelo contrário, o encrespado do seu cabelo causou-me durante muito tempo a mesma surpresa, como se fosse algo de novo que eu nunca tivesse visto. E, contudo, sobre o olhar sorridente de uma rapariga, haverá coisa mais bela que aquela coroa anelada de violetas negras? – página 15

O motivo principal para a estranheza desta relação é o tema central desta parte da história – o ciúme. Neste ponto vemos revelado o sentido da obra inteira, sendo que o namoro de Swann com Odette é espelhado, muito como se os acontecimentos do romance se fossem ecoando pelos anos. O protagonista é atormentado por pensamentos indelicados sobre Albertine, tal com Swann foi, mas sempre que o melhor plano de ação que lhe ocorre é deixá-la chegam-lhe logo os ciúmes, dos quais não se consegue desfazer. Quase sempre que confronta Albertine descobre uma nova falha, uma pequena inconsistência nas suas histórias, e desespera-se vendo nela um reflexo de Odette, que mesmo com a verdade dizia mentiras. E a origem de todo esse ciúme, tal como em Swann, não é tanto a presença de outros homens, mas sim a de outras mulheres. Como ficou determinado no volume anterior, o protagonista vê Gomorra como uma cidade sem lugar físico, como uma nacionalidade errante da qual aparentemente todas as mulheres fazem parte. Gradualmente é como se todas as raparigas do passado de Albertine fossem antigas paixões dela, ou apenas raparigas com quem ela teve algum tipo prazer sexual despreocupado, algo que, para o nosso protagonista, é pior do que tudo, ainda que curiosamente, quando ela se ausenta, traz-lhe por vezes uma paz de espírito há muito desejada.

Não tendo ido acompanhar Albertine no seu longo passeio, ainda mais o meu espírito iria vagabundear e, por ter recusado saborear com os meus sentidos aquela manhã, desfrutava em imaginação de todas as manhãs semelhantes passadas ou possíveis, mais exatamente de um certo tipo de manhãs de que todas as do mesmo género eram apenas uma intermitente aparição e que eu depressa reconhecera; porque era o ar vivo que virava as páginas necessárias, e encontrava completamente assinalado à minha frente, para poder segui-lo da cama, o evangelho do dia. – página 21

Contudo, as instâncias de infidelidade, imaginadas ou reais, não são exclusivas a Albertine. Algo que o protagonista gosta bastante de fazer é, depois de acordar, ficar à janela a ver a sua porção de Paris, a admirar as lavadeiras, as padeiras, as leiteiras, as estudantes, tudo raparigas bonitas por quem ele se apaixona no breve momento em que as vê, apenas para nunca mais as voltar a ver. Na ausência de Albertine ele começa a imaginar uma paixão inteira com essas raparigas e quase que perde consideração por ela. É a propósito desta dinâmica que surgem os monólogos sobre ciúmes, enchendo páginas e páginas. Um dos pensamentos mais significativos é sobre a existência de homens que, incapazes de suscitar uma lealdade pura nas suas mulheres, deixam que elas tenham amantes, quer seja abertamente na sua própria casa onde o homem se sente em controlo, ou então permitem-lhes uma viagem a um lugar longínquo onde possam fazer tudo o que quiserem sem que o homem alguma vez venha a saber. Um acordo assim poderia porventura resultar para o protagonista se ele não fosse tão humanamente contraditório. Permitir a Albertine uma relação aberta na sua casa de Paris, onde ela é prisioneira e ele é captor, nunca lhe passaria pela cabeça, mas por outro lado, deixá-la partir para uma viagem não lhe serve de muito porque Gomorra, pelo menos para ele, é omnipresente, até mesmo no tempo.

Ainda assim, em toda esta confusão ele vai encontrando momentos bons. Tal como às vezes apreciava a presença de Albertine nos momentos mais pacíficos, vai-se entretendo também com aquele que será um tema cada vez mais importante – a arte. Ele descreve como que um panteão dos três grandes artistas que conheceu ao longo da sua vida, que são eles Elstir na pintura, Bergotte na literatura, e Vinteuil na música. Então o protagonista vai descobrindo que, em certos momentos tão evasivos como a memória, a arte e a vida real tocam-se, mas talvez a arte, ao contrário do ciúme e até mesmo da vida, seja para sempre.

Mas também Albertine ganhava com ser assim transportada de um para o outro dos dois mundos em que alternadamente temos acesso a um mesmo objeto e o podemos situar, escapando assim à esmagadora pressão da matéria para cintilar nos fluidos espaços do pensamento. Achava de repente, e por um instante, que podia experimentar pela fastidiosa rapariga sentimentos ardentes. Nesse momento ela tinha a aparência de uma obra de Elstir ou de Bergotte, sentia por ela uma exaltação momentânea, vendo-a com o recuo da imaginação e da arte. – página 47

Ocorre-me agora que talvez seja esse o grande defeito do protagonista, essa idiossincrasia estranha de querer ver Albertine quase como uma personagem de um livro ou como a figura de um quadro, até a ponto de não a entender como uma pessoal real. E de facto este volume nunca nos dá a versão de Albertine. Ela é-nos sempre distante, em pleno contraste com o narrador cujos pensamentos são-nos descritos ininterruptamente, ainda que sempre que ele divaga seja difícil de o seguir. Além disso ele parece até mesmo concordar com o estatuto de Albertine descrito no título, considerando-a enclausurada em casa dele, tão longe de Balbec onde o conheceu mas também onde alegadamente teve as suas paixões com raparigas. No entanto o protagonista não lhe fica muito melhor em termos de fidelidade, tanto para com ela no sentido mais tradicional do termo, mas também para connosco como leitores, porque ele revela, num passo bizarro, tanto em termos de narração como de contexto social, que tirou a virgindade a várias dessas raparigas.

Depois disso, os seus grandes olhos haviam-se desfeito, sem dúvida porque elas tinham deixado de ser crianças, mas também porque essas deslumbrantes desconhecidas, atrizes do romanesco primeiro ano, e sobre as quais eu não parava de procurar informações, já não tinham mistério para mim. Haviam-se tornado obedientes aos meus caprichos, simples raparigas em flor, das quais não pouco estava orgulhoso de ter colhido, de ter roubado a todos a mais bela das rosas. – página 57

Então é muito como se este casamento, que ainda é tudo menos oficial, estivesse condenado a falhar. Para o protagonista é um constante paradoxo. Quando está com Albertine não gosta dela e quer estar sozinho, mas quando ela se distrai ou adormece ele acalma-se com os seus pensamentos, até que então, tendo-a ali, na sua cama, tão dele, imagina-a como uma perfeita obra de arte. Mas quando sai, sozinho ou com ela, e vê passar uma mulher estranha, imagina toda uma paixão com ela e considera-se ele o prisioneiro desta obra. Só que quando é Albertine a olhar e a trocar sorrisos com uma mulher, os seus sentimentos de posse emergem de novo... Os únicos momentos de paz interior são apenas quando se deita com ela, muitas vezes para a ver dormir, e é num momento desses em que ela acorda depois de uma sesta pacífica que temos finalmente revelado, ao fim de quatro longos volumes, o nome do protagonista.

Nesse primeiro momento delicioso de incerteza, parecia-me tomar posse dela outra vez e mais completamente, visto que, em lugar de, regressada, entrar no seu quarto, era o meu quarto que, logo que reconhecido por Albertine, ia abarcá-la, contê-la, sem que os olhos da minha amiga manifestassem qualquer perturbação, tão calmos como se não tivesse dormido. A hesitação do despertar, revelada pelo seu silêncio, não o era pelo seu olhar. Retomava a fala, dizia as palavras «meu» ou «meu querido», seguidas em ambos os casos do meu nome de batismo, o que, dando ao narrador o mesmo nome próprio do autor deste livro, daria: «Meu Marcel», «meu querido Marcel». – página 62

E é só agora, ao fim de dezenas de páginas de ensaios, que eu me começo a referir ao protagonista desta obra como Marcel, não obstante a estranheza com que o nome é referido. De qualquer das formas há um certo sentido irónico, sendo o protagonista referido com o nome próprio do autor, e o autor sendo referido pelo seu apelido. Ainda assim, Marcel, Proust, o protagonista, o narrador e o autor são todos, sendo diferentes, ainda o mesmo, e o mesmo, ainda diferentes. Esse aspeto é inerente às inconsistências de Em Busca do Tempo Perdido, isto é, este tema recorrente de dar a cada personagem uma caracterização oposta a qualquer linearidade, fazendo uso de todas as inconsistências na história como inconsistências da natureza humana. Por exemplo, este segmento inicial do volume, separado do seguinte apenas por uma linha em branco, termina com alguns momentos de intimidade casual entre Marcel e Albertine, um simples momento de submissão da parte dela, mas não muito mais à frente, o narrador, agora mais velho e sábio, medita sobre como na profundidade de cada momento de doçura esconde-se um perigo do qual não estava perfeitamente ciente na sua juventude.

Durante todo o serão, gaiatamente enovelada numa bola em cima da minha cama, brincara comigo como uma gata grande; o seu narizinho cor de rosa, que ela ainda mais reduzia na ponta com um olhar gracioso que lhe conferia a finura privilegiada de certas pessoas um pouco gordas, dera-lhe uma aparência de teimosia e excitação, deixara cair uma madeixa dos seus longos cabelos negros sobre a face de cera rosada e, semicerrando os olhos, descruzando os braços, parecia dizer-me: «Faz de mim o que quiseres.» – páginas 64-65

Se eu fosse editor, o que ainda bem que não sou, exceto de mim mesmo, diria que a partir daqui Proust já escreveu o que queria e que portanto devia começar a cortar. Este volume divide-se essencialmente na relação tumultuosa com Albertine, marcada pelas longas reflexões sobre ciúme, e uma longa instância de vida social sobre a qual falarei brevemente. Mas Proust nunca gostou muito de brevidade, e por isso alonga-se, perdendo-se por entre devaneios sobre a natureza do homem ciumento e da mulher traidora. A dada altura ele parece novamente insinuar que a melhor opção seria uma situação na qual as traições da mulher seriam de alguma forma amigáveis e abertas, mas mesmo que isso resulte por uns momentos acaba sempre por marcar o fim da paixão. Em tudo isto, que não sei se está correto ou não, Proust continua com as suas teorias, e aqui digo Proust porque me parecem ser páginas relativas ao carácter ensaístico do livro. Em certos aspetos parece ser uma interpretação pessimista do amor, entendendo-o como muitas vezes em guerra com a racionalidade humana.

A maioria das vezes o amor só tem por objeto um corpo se uma emoção, o medo de o perder, a incerteza de o recuperar nele estiverem fundidos. Ora este género de ansiedade tem uma grande afinidade com os corpos. Acrescenta-lhes uma qualidade que ultrapassa a própria beleza, o que é uma das razões pelas quais vemos homens indiferentes às mulheres mais belas amarem apaixonadamente umas que nos parecem feias. A essas criaturas, a essas criaturas em fuga, a sua natureza e a nossa inquietação dão-lhes asas. – página 77

Entretanto a vida em Paris continua, com Marcel a fazer uso de Andrée para receber informações sobre Albertine. Contudo, ele nunca sabe se essas informações são verdadeiras ou não. Ele tem inevitavelmente de permitir algum espaço a Albertine mas procura sempre saber onde e com quem ela esteve a todos os momentos. Talvez isto só lhe traga mais dores de cabeça porque nem em Andrée confia, que tanto quanto ele sabe está a trabalhar como agente dupla. Nestas páginas surge uma nova comparação com Swann quando, numa conversa telefónica com Andrée ela refere o nome de Albertine, fazendo Marcel relembrar, num estilo não diferente do da madalena, um momento em que ouviu Swann referir-se ao nome de Odette num sentido tão casualmente possessivo, tendo em si toda a existência desta mulher fascinante resumida na dominação de um vocábulo. O que é um nome?... O conteúdo central dessas conversas telefónicas é um serão em casa dos Verdurin, ao qual Albertine quer aparentemente ir sem Marcel. A intenção dele torna-se então de evitar que ela vá, começando toda uma série de ações mesquinhas, possessivas e, enfim, fúteis. Naquilo a que ele chama as vicissitudes do ciúme ele sabe que não faz sentido continuar assim, ele sabe que qualquer pensamento de um lugar onde Albertine é mais feliz sem ele só lhe pode trazer sofrimento, mas que por outro lado, deixar que seja o demónio do ciúme a ganhar sobre ela traz-lhe o desapontamento de ter conquistado a sua fidelidade apenas à força.

As referências a acontecimentos antigos continuam, toda uma série de lembranças que até ao leitor são nostálgicas, quase como se tivessem acontecido mesmo. A dada altura, Marcel relembra a sua avó e o dia em que ela, sentido os inícios da doença, queria tirar uma fotografia com o seu neto em Balbec, e ele, tão ingénuo, troçara dela. Ainda assim, quer seja por ele neste momento da sua vida se tornar mais distante ou por simplesmente envelhecer e aprender a seguir em frente, já não sente dores pela memória da avó. E ela não é a única, porque também Gilberte é aqui referida como estando quase morta para o protagonista ainda que ele agora se recorde do namoro com ela, de como todos sabiam que ela lhe era infiel e que até a criada de quarto lhe mentia para esconder os encontros da sua pequena patroa... Entretanto, talvez por saudades, e através de uma constante ambiguidade de idades, Marcel presta sempre atenção às várias raparigas que trabalham pela cidade, e pede a Françoise que traga uma leiteira bonita para cumprir um recado. E apesar de ele inicialmente admirar a sua beleza, ainda que isso seja muito bizarro em mais do que um aspeto, acaba por se desapontar e entretém-se antes a ler uma carta da sua mãe. Essa carta traz saudades e preocupações porque claramente ela ainda não aprova da relação e faz uma referência financeira direita quando pergunta onde o seu filho está a gastar o seu dinheiro, de novo aludindo mas não resolvendo as noções de realismo que Proust tanto evita.

A relação permanece tumultuosa, e como Albertine é uma personagem inacessível, muito ao contrário de quase todas as outras, das quais o narrador tem um conhecimento omnisciente, ficamos por agora sem resolução. Num momento vemos que Albertine envia um bilhete a Marcel, referindo-se a ele em palavras muito doces, tratando-o pelo nome como se o adorasse, dizendo que tanto anseia por ele e se apressa mas que se atrasou por motivos de força maior e que nesse intervalo de tempo só pensa em regressar a ele. Só que por outro lado essa dedicação é apagada porque mais tarde ou mais cedo chegam sempre a Marcel os intensos ataques de ciúmes provocados pelo passado de Albertine em Balbec, um tempo no qual, mesmo após o ter conhecido, aliava-se com toda uma série de mulheres cuja presença naquela praia ressuscitava Gomorra a cada momento.

E assim alternava com o tédio algo pesado que eu sentia ao pé dela um desejo fremente, cheio de magníficos temporais e de lamentações, consoante estava a meu lado no quarto ou eu lhe devolvia a sua liberdade na minha memória, no dique, no seu alegre traje de praia, ao som dos instrumentos musicais do mar, pois Albertine, ora saída daquele meio, possuída e sem grande valor, ora nele de novo mergulhada, escapando-me para um passado que eu não poderia conhecer, oferecendo-me ao pé da dama, da sua amiga, tanto como o salpico da vaga ou o atordoamento do sol, Albertine recolocada na praia, ou regressada ao meu quarto, numa espécie de amor anfíbio. – páginas 132-133

Esta noção de amor anfíbio é característica em toda a obra. E nessas inconstâncias do coração, Marcel encontra alguma paz apenas na arte, justamente quando se senta a tocar uma sonata de Vinteuil. Aparentemente o nosso protagonista tem talento musical, além da sua sensibilidade para toda a arte, demonstrada em longas reflexões íntimas que, para nós como leitores são do melhor que a obra oferece, mas que para Albertine talvez sejam condescendentes. Ao tocar piano, Marcel quase que se perde ao relembrar os dias simples de Combray, dias nos quais decidiu ser artista, mas essa simplicidade perde-se em conversa com Albertine. Aqui as diferenças entre os dois sobressaem demasiado. Marcel é sensível, intelectual, de saúde frágil e muito exigente com as suas idiossincrasias. Albertine é simples, quase que desinteressada por conversas intelectuais, e é muito mais física, sendo ciclista e golfista. É muito como se houvesse um crescente abismo entre os dois, e esse abismo é maior ainda quando Marcel se alonga com explicações de arte, explicações essas que Albertine tenta ouvir mesmo sem verbalizar grandes contributos, mas que durante as quais talvez se sinta constrangida. Pelo menos é assim que eu, como leitor, me sinto a ler essas conversas, que estão muito em oposição às reflexões sobre arte que o narrador tem em forma de monólogo.

A música, nisso bem diferente do convívio com Albertine, ajudava-me a descer dentro de mim mesmo, a descobrir em mim algo de novo: a verdade que em vão eu procurava na vida, ou na viagem cuja nostalgia me era dada, contudo, por aquela maré sonora que trazia para morrerem a meu lado as suas vagas ensolaradas. – página 134

A este ponto, a sensivelmente a meio do volume, chegamos a um intervalo na narrativa de Albertine. Enquanto pinta um quadro ela refere casualmente que nunca teve uma única aula de desenho, e é consequentemente apanhada numa outra mentira porque uma vez em Balbec dissera a Marcel que tinha ficado retida precisamente numa aula de desenho... Sem escapatória possível ela admite que em tempos lhe mentiu bastante mas que já não mente mais. Quando Marcel lhe pede por mais confissões ela admite uma mentira insignificante, que o ar do mar afinal não lhe fazia mal. Assim, perante uma óbvia confissão dissimulada em jeito de deflexão, Marcel deixa de insistir e a nossa história muda um pouco para se focar noutras personagens.

Aliás, neste volume temos um autor sedento de sangue, se bem que com alguns remorsos... A sua primeira vítima é Bergotte, o escritor favorito de Marcel, descoberto ainda em Do Lado de Swann. Aqui ele apresenta-se envelhecido e doente, mantido vivo apenas por tratamentos medicinais. Nos seus últimos dias era atormentado por insónias que, quando misericordiosamente passavam, chegava-lhe então um sono cheio de pesadelos. Entretanto foi deixando a vida social, tornou-se recluso e procurava concentrar-se nos seus livros, muito como fez o Proust real, que por sua vez vem espreitar a narração para nos dar um detalhe de pura omnisciência, revelando os últimos pensamentos de Bergotte pois este, mesmo antes de desmaiar e morrer numa galeria de arte, pensou que o seu mal-estar era apenas uma instância de indigestão... E então este escritor morre mas não sem uma última e muito nobre despedida na qual, mais uma vez, a importância da arte é salientada, desta vez como a única chance de vida eterna.

Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, arrumados em grupos de três, velavam como anjos de asas abertas e pareciam ser, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição. – página 158

Tendo demonstrado a esta morte o seu devido respeito, a nossa história prossegue, mas logo depois traz-nos a segunda morte – a de Swann. Tendo impedido Albertine de visitar os Verdurin, Marcel decide visita-los ele próprio. No caminho encontra Brichot, a quem pergunta sobre o passado de Swann. Este por sua vez estranha como é que o jovem Marcel tenha conhecimento dessas histórias antigas, o que suscita uma ideia interessante. É muito como se o narrador e o protagonista se misturassem, como se o jovem Marcel neste ponto tivesse um conhecimento básico de uma história que só iria conhecer na íntegra muito mais tarde, quando escrevesse sobre ela e fizesse de Swann o protagonista do seu primeiro volume... Quanto à morte de Swann essa já foi profetizada no final de O Lado de Guermantes, quando o vimos aceitando a sua doença com um estoicismo que já há muito lhe era característico. No entanto, ainda vejo Swann como uma figura trágica, mas direi mais sobre isso quando falar sobre os volumes posteriores. O que neste momento consome Marcel é o arrependimento de não ter admirado Swann em vida, este homem que, agora que morreu, aparece-lhe no entendimento como inteligente e muito admirável, como um dos melhores e mais inteligentes conversadores que alguma vez conhecera.

Continuando no contexto social vemos de novo o barão de Charlus, que está presentemente envolvido numa relação estranha com Morel, um jovem violinista que anteriormente Marcel viu insultando veementemente a sua potencial noiva, insultos que ecoaram pela cabeça de Marcel que os imaginava aplicados a Albertine, mas que também ecoaram pelo próprio Morel que mais tarde se sentou a chorar em amargo arrependimento. É uma relação secundária atribulada, e apesar de Morel não parecer ser propriamente homossexual, mantém ainda assim uma espécie de amizade platónica com Charlus, uma espécie de sentimento de posse e superioridade do qual o barão recebe mais prazer do que se fosse amor, mas que por sua vez exaspera quando Morel recebe tanta atenção de todo o tipo de mulheres bonitas, ainda que ele as descreva com uma palavra muito menos simpática. Não obstante, Charlus é dotado de um discurso exímio, e ao falar com Marcel sobre a sua “prima” Albertine, soa como se pudesse ter sido um grande escritor. De facto, Marcel sente pena que Charlus nunca tenha escrito nada, marcando uma outra instância desta crescente, ainda que subconsciente, apreciação pela arte em vez das banalidades da sociedade.

E banalidade é mesmo o adjetivo correto... Saniette, o homem tímido que já em Do Lado de Swann foi publicamente insultado por Forcheville, continua aqui a ser constantemente insultado pelos Verdurin, até a ponto de começar a gaguejar nervosamente e mais tarde ter um ataque cardíaco. A senhora Verdurin, ao ouvir sobre a morte da princesa Sherbatoff, admite ser inútil fingir sentimentos que não se tem. A morte do médico Cottard também é vista casualmente e com a ironia de que um médico que afastou a morte de tanta gente não conseguiu afastar a sua. São toda uma série de comportamentos desagradáveis pela parte de pessoas arrogantes, mas a frieza para com a morte de Cottard é no entanto compreensível porque ele será mais tarde ressuscitado numa da duas ressurreições em Proust, a segunda sendo a senhora de Villeparisis... E por falar em ressuscitar, eventualmente dá-se um pequeno concerto no qual se toca uma peça de Vinteuil, peça que, tal como aconteceu com Swann décadas antes, faz agora renascer em Marcel uma renovada apreciação pela arte, da qual brota mais do seu amor, ainda que tumultuoso, por Albertine.

Enquanto a sonata abria para uma aurora lirial e campestre, dividindo, sim, a sua candura ligeira, mas para se suspender no emaranhado leve mas consistente de um caramanchão rústico de madressilvas sobre gerânios brancos, era em superfícies lisas e planas como as do mar que, numa manhã de temporal, começava, por entre um ácido silêncio, num infinito vazio, a nova obra, e era num róseo de alvorada que, para se conseguir progressivamente à minha frente, aquele universo desconhecido era arrancado ao silêncio e à noite. Aquele vermelho tão novo, tão ausente da terna, campestre e cândida sonata, tingia todo o céu, como a aurora, de uma misteriosa esperança. – páginas 211-212

Entretanto, embora a reação das outras personagens à música não nos seja dada, e possamos até entender algum desinteresse ao ver como o ressonar da cadela da senhora Verdurin é confundido com o ressonar da própria senhora, Marcel perde-se em devaneios. A sua reação emocional fá-lo crer que a música deu a Vinteuil alguma forma de imortalidade, tal como a Bergotte a literatura, não de todo ele na sua essência, na sua carne, mas de uma parte dele que existirá sempre que quaisquer instrumentos tocarem as suas notas. Assim, o narrador crê numa existência individual da alma, algo mais do que meramente carnal que permite o descobrimento de tudo o que é superior nos seres humanos. Algo ironicamente, até lhe ocorre que se os seres humanos não tivessem optado pela via da linguagem e da escrita teriam porventura feito da música o seu único, e talvez mais espiritual, meio de comunicação. E de facto a música de Vinteuil comunica-lhe algo de profundo, fá-lo categoricamente lembrar aquilo a que chama as veleidades de amar Albertine – o início do verão em Balbec, aquele jogo do anel quando deram as mãos, aquela última noite no hotel em que chorou sobre Albertine nos braços da mãe, e agora que as suas vidas estão unidas na mesma casa... Num momento tudo menos cronológico ele relembra todas as fases e metamorfoses do seu amor por ela, culminando infelizmente na recordação da menina Vinteuil, ainda que seja só ironicamente pelo arrependimento desta em relação à memória do seu pai que a peça de música tenha sido preservada.

Já agora, o final desta longa sequência trouxe-me uma memória falsa... Na minha primeira leitura da obra fiquei com ideia de que Albertine teria aproveitado a ausência de Marcel para fugir nessa mesma noite, mas afinal não, afinal quando ele regressa ainda a confronta, dizendo-lhe que esteve com os Verdurin. A reação dela é de fúria e dá-se então o culminar de todas as frustrações até então. Albertine admite que uma suposta viagem a Balbec que fizera, sob a vigilância do motorista, nem sequer aconteceu, tendo passado três dias em Auteuil em casa de uma amiga. Como resposta, Marcel finalmente confronta-a com a natureza da menina Vinteuil, mas Albertine responde que nunca a conheceu bem e que inventara uma amizade com ela apenas para se aproximar dos Vinteuil que Marcel tanto admirava. Então é muito como se a grande preocupação dele fosse uma mentira cuja verdade é muito mais benevolente, mas nós como leitores nunca temos certezas de nada, mesmo quando Albertine explode com uma frase ordinária, terminada com o verbo “levar” antes de se interromper em vergonha. Por um momento, Marcel não faz a mínima ideia onde a frase iria, até porque revela que, quando ele e Albertine se acariciam, usam todo o tipo de linguagem perversa, aludindo a uma espécie de relação sexual ainda por consumar. Mais ou menos neste propósito, e pouco depois confrontado com a expressão que terminava esse verbo de Albertine, e em toda esta confusão de amar e deixar de amar, de querer possuí-la e de deixá-la para sempre, o protagonista exaspera perante as dificuldades de ser o narrador da sua própria história.

Se o leitor tem de tal facto apenas uma impressão bastante ténue é porque, sendo narrador, lhe exponho os meus sentimentos ao mesmo tempo que lhe repito as minhas palavras. Mas se lhe ocultasse os primeiros e ele apenas conhecesse as segundas, os meus atos, tão pouco de harmonia com elas, tantas vezes lhe dariam a impressão de estranhas reviravoltas que quase me julgaria louco. – página 295

Ainda bem que esta passagem existe porque salva algumas inconsistências de toda a obra. As reviravoltas são deveras cansativas, esta circularidade de num momento amar tanto uma mulher para noutro a detestar para noutro a amar outra vez... Ele decide-se a deixar Albertine cinquenta vezes apenas para se decidir a amá-la cinquenta e uma. Até Gilberte, por quem já há muito se professava indiferente, vem-lhe agora à memória com a tristeza do dia em que teve de a deixar. Mas no final de contas, estas inconsistências são inerentemente humanas, e se ficam caricatas numa história é porque as histórias são tradicionalmente contadas com brevidade e de forma a fazer sentido linear. Mas Proust nunca foi breve nem linear, e por isso as contradições humanas são constantes ao longo de todas as suas páginas.

No entanto algumas contradições são de facto estranhas. As mortes e ressurreições de Cottard e da senhora Villeparisis são inconsistências óbvias, mas ocorrem-me outras também. Ocorre-me a estranheza com que Marcel é um jovem tímido e frágil, até quase que efeminado, mas que aparentemente seduziu todas as raparigas de Balbec, algo que terá acontecido num verão em que já era crescido mas choroso pela avó, ou num verão em que era jovem e constantemente acompanhado por ela, sem a qual se desfazia em lágrimas ou birras. Depois há a situação de ser amado pelos amigos militares de Saint-Loup, que se deixam encantar por um jovem que tem tudo de tudo menos de soldado, e agora nesta fase final do volume temos o relato de um jantar com dois amigos sem nome e as suas respetivas amantes também sem nome, no qual as duas raparigas se apaixonaram logo uma pela outra e construíram uma mentira através da qual trair os seus respetivos amantes. É tudo muito estranho, não faz sentido que um acontecimento assim tenha sido esquecido até agora nem que tenha sido uma traição secreta a todos menos a Marcel. Este passo assemelha-se mais a um traço de inspiração de Proust mas que, devido à extensão da obra, não pôde incluir antes. De qualquer das formas é mais uma instância de omnisciência e de um tipo de comportamentos que atormentam o protagonista, mesmo que nem sequer sejam verdade...

Porque verdade é mesmo o que mais falta aqui. A este ponto nem Marcel nem nós leitores sabemos o que é verdade. Sabemos que ele chora e que agora, acrescentada à menina Vinteuil e a sua amiga, Andrée e as raparigas de Balbec, e todas as raparigas por quem Albertine passou e sorriu, é referida Léa, a atriz cuja reputação promíscua com outras mulheres é algo famosa. Albertine professa também não ter tido qualquer paixão com Léa apesar de a conhecer pessoalmente, e então, sem sabermos se isso é verdade ou não, a discussão continua mas vai-se apagando. Eventualmente o que persevera é o cansaço, e no fim deste duelo, cheio de confusão e mal-entendidos, parece dar-se uma reconciliação, com Marcel a pedir a Albertine que dê mais umas semanas a esta relação, ao que ela responde dizendo que o ama cem vezes mais do que antes. Depois de tudo se acalmar, Albertine adormece, com a rapidez com que sempre lhe foi característica, e Marcel observa-a dormir, como uma figura alegórica da morte.

Era uma mentira, mas para a qual eu não tinha a coragem de procurar outra solução que não fosse a minha morte. E assim permanecia, com a peliça que não despira ainda desde que regressara de casa dos Verdurin, diante daquele corpo torcido, daquela figura alegórica – de quê? da minha morte? da minha obra? Logo comecei a ouvir-lhe a respiração regular. Fui sentar-me na beira da cama para fazer aquela cura calmante de brisa e de contemplação. E depois retirei-me muito devagarinho para não a acordar. – página 306

Parece-nos um final mas o volume continua, e nas páginas seguintes regressamos a alguma normalidade. Essa calma parece ter sido trazida por uma reflexão do narrador sobre a aparente contradição na maneira como somos tratados conforme o nosso interesse, porque tanto no amor como em sociedade se nos mantivermos distantes e desinteressados suscitamos muito mais interesse do que quando perseguimos alguém. Sempre que perseguimos, o nosso desespero torna-se um odor, concluímos que se alguém nos quer é porque vale menos do que nós. Mas se alguém não nos quer, se alguém se distancia de livre vontade, talvez seja porque valha a pena, talvez seja melhor do que nós... Confesso que isso talvez tenha um fundo de verdade, tanto em paixões, como em amizades, como em tudo o resto, mas o efeito adverso pode ser uma superioridade de arrogância, marcada pelo retorno das conversas intelectuais condescendentes que Marcel tem com Albertine, dominando-a com longos discursos sobre literatura. Quando a conversa chega a Dostoiévski ele de facto propõe ideias interessantes, elogiando os vastos retratos psicológicos das suas personagens inseridas num desespero que faz emergir as partes mais feias da natureza humana, mas sempre com um fundo de arrependimento quase que metafísico escondido algures. No entanto, Albertine não parece interessada, não gostando das histórias e dizendo que Dostoiévski é obcecado por crime. Depois elogia a sabedoria de Marcel, dizendo que ele devia ser professor pois os conteúdos lecionados em aula eram sempre inferiores às suas ideias, e então relembra a famosa carta de Gisèle em À Sombra das Raparigas em Flor, algo que é agora uma memória antiga que este casal tem em comum, um “lembras-te daquela vez” que até a nós leitores se aplica.

E de facto, agora perto do final do volume, Marcel é cada vez mais relembrado do passado, até da chávena de chá em Balbec, da tia Léonie, dos Campos Elísios e da praia em Balbec, tudo reavivado enquanto Albertine toca piano e ele a observa como se ela fosse uma obra de arte. A descrição subsequente dura duas páginas, capturando cada detalhe da sua feminidade desinteressada num devaneio que tão completamente caracteriza Em Busca do Tempo Perdido. Mas no final de cada devaneio desses há sempre a realidade dececionante.

E por contraste com tanto relevo, e também devido à harmonia que fundia cada peça com ela, que adaptara a sua atitude à forma e à utilização da pianola que parcialmente a ocultava como uma caixão de órgão, a estante e todo aquele canto do quarto pareciam compelidos a ser apenas o santuário iluminado, o presépio daquele anjo músico, obra de arte que, dali a pouco, por doce magia, iria soltar-se do seu nicho e oferecer aos meus beijos a sua substância preciosa e rosada. Mas não; Albertine de modo algum era para mim uma obra de arte. – página 325

É o paradoxo constante, tanto da arte e da vida, como do amor e do desinteresse. Quando há ciúme há sofrimento, e esse ciúme poderia ser apenas o simples ato de querer, não somente uma pessoa mas sim o de querer alcançar uma sensação. Mas por outro lado a ausência do ciúme traz inevitavelmente o tédio. Para com Albertine esta dinâmica é óbvia mas também se parece estender à vida de Marcel em geral. Querer perseguir o sabor naquela chávena de chá, um sabor tão ilusório mas tão cheio de memória, é perdê-lo, muito como perseguir o amor de Albertine é logo começar a achar que não vale a pena, até que esse amor lhe foge e ele a quer outra vez. Então ele quase que concebe do amor como uma realidade no mundo, como o seu próprio espaço e tempo que, em raras circunstâncias, o coração apreende.

Desse paradoxo não parece haver saída. A paixão aproxima-se do fim a ponto de Marcel falar da morte dela como se fosse a morte de Albertine, como se o fim de uma paixão fosse a morte das pessoas apaixonadas, pois ainda que continuem vivas, morre a parte delas que estava apaixonada. Neste final temos um novo relembrar de Combray quando Albertine vem ao quarto de Marcel para lhe dar um beijo de boa noite, só que beija-o na cara, deixando-o em mais tormentos do que ele alguma vez admitiria. Depois ela retira-se para o seu quarto e abre a janela quase com força e despreocupação, apesar de saber as regras estritas de manter as janelas fechadas durante a noite para prevenir qualquer tipo de corrente de ar em defesa da saúde do protagonista. E curiosamente a narração centra-se justamente em Marcel mas o pensamento em terceira pessoa atribuído a Albertine, e possivelmente correto, é o de que esse gesto de abrir a janela foi todo um ato de se sentir sufocada e de tão absolutamente precisar de ar...

Marcel acorda para uma manhã de primavera, não a manhã seguinte mas poderia perfeitamente ser. A beleza do novo dia lá fora traz-lhe um mundo de possibilidades. Faz-lhe relembrar Balbec, dá-lhe vontade de partir pela estrada fora e explorar lugares novos com uma mulher desconhecida, tudo capturado no estilo típico e mais belo que esta obra oferece, ainda que a este ponto o livro se fragmente tão ligeiramente, com algumas frases inacabadas e deixadas em branco no original, aquando a morte de Proust. Mas não ficam tão em falta quanto isso devido a esta natureza fugaz do livro, e mesmo no fim, anunciando a morte de uma relação, e para nós a morte de um autor, os pensamentos de Marcel são de viagem, são de Veneza, são de vida, são de finalmente libertar Albertine para se libertar a si próprio... Seria, tal como ele ouve na sua cabeça, um dizer sim à vida.

«Levanta-te, parisiense, levanta-te, vem almoçar ao campo e andar de barco no ribeiro, à sombra das árvores, com uma linda rapariga, levanta-te, levanta-te.» […] Sim, havia que partir, era o momento. Uma vez que Albertine já não parecia estar zangada comigo, possuí-la já não parecia ser um bem daqueles em troca dos quais estamos prontos a ceder todos os outros. Talvez porque o faríamos para nos desembaraçarmos de uma aflição ou de uma ansiedade, agora aquietadas. Conseguimos passar através do arco de pano que por momentos julgámos que nunca seríamos capazes de atravessar. Clareámos o temporal, reconquistámos a serenidade do sorriso. O mistério angustiante de um ódio sem causa conhecida, e porventura sem fim, está dissipado. E encontramo-nos por conseguinte em face do problema, momentaneamente afastado, de uma felicidade que sabemos impossível. Agora que a vida com Albertine de novo se tornara possível, senti que dali só poderia recolher infortúnios, visto que não era amado por ela. Mais valia deixá-la na doçura da sua aquiescência, que iria prolongar pela memória. Sim, era este o momento. – páginas 348-349-350

Essa decisão é egoísta, ainda que provavelmente seja o melhor para os dois. É então que Marcel, tão absolutamente decidido a deixar Albertine, toca a campainha para que Françoise entre e o ajude a começar o seu dia, com ideias de que lhe traga um guia para os caminhos de ferro, através dos quais ele irá planear a sua viagem a Veneza, longe de Albertine. No entanto, Françoise entra para lhe avisar que Albertine acordou às oito horas, fez as suas malas, e partiu às nove, tendo deixado uma carta. Então Marcel leva as mãos ao peito e, mesmo sentindo uma dor que só o ciúme lhe fez causar, justamente no preciso momento em que descobriu os detalhes secretos do passado de Albertine, quer reais ou imaginários, simplesmente age com tranquilidade, agradece Françoise por não o ter acordado e pede por mais um momento sozinho.

§

Bem, este demorou-me mais do que estava à espera... Notando a brevidade deste volume comparado aos dois anteriores achei que seria mais fácil, mas a troca de ser mais breve é que é mais importante, pelo menos para mim. Não faço segredo de que nestes meus ensaios deixo que o contexto mais decididamente social e histórico da obra me passe um pouco ao lado, mas aqui não tive muito por onde escapar. Apesar do serão nos Verdurin ser talvez cem páginas, todas as restantes incidem sempre sobre esta constante tribulação que faz de Albertine a verdadeira protagonista desta fase da obra, ainda que uma deveras silenciosa. Quanto ao jovem Marcel não deve ser segredo que aquele agradecimento a Françoise, com o qual o volume termina deixando-nos na expectativa do próximo, não foi de todo genuíno. A ideia de posse sempre lhe foi um paradoxo, ele nunca soube o que quis quando o teve, como um cão com dois ossos. Talvez por isso é que, mais do que o amor, a verdadeira busca é do tempo... A ausência de Albertine só contribuirá para o seu constante mistério, um que eu faço questão de tentar desvendar o quanto antes, um objetivo para o qual, apesar de eu ainda estar muito adiantado no meu calendário, terei de me apressar. Isto porque quero reencontrar o tempo perdido o quanto antes, só que o mais engraçado é que, ainda a dois volumes do fim, já me ocorrem pensamentos sobre quando no futuro não tão distante é que terei vontade de reler esta obra.

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