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Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido IV – Sodoma e Gomorra”

Como tenho dito, fiz questão de escrever sobre o terceiro e agora quarto volumes de Em Busca do Tempo Perdido o quanto antes para que possa concluir a obra na íntegra antes do final do verão. E como tal, é algo irónico que comece este artigo num dia em que, já se fazendo sentir o calor, ainda se encontra lá fora um céu estranho e cinzento. Não sei bem porque é que incluo esse detalhe mas agora deixo estar... Na verdade a leitura deste volume e do anterior foi, apesar de a ter concluído muito antes do que esperava, bastante árdua, sendo que deixei que passassem muitos mais dias do que queria, sempre com os volumes a ocupar-me espaço na secretária e na mente. E talvez seja essa a principal sensação a ler Marcel Proust, esta coisa de adorar e de detestar ao mesmo tempo, esta coisa de às vezes ler cem páginas seguidas numa daquelas tardes em que se perde a noção do tempo, mas outras vezes passar dias sem sequer ter apetite para abrir o livro. Quanto a mim diria que foi esse o caso, agravado porque esta secção intermédia do livro é sem dúvida a mais cansativa. Além disso, e apesar de ter sido um bocadinho agressivo para com o volume anterior, que considerei o pior, fico agora na dúvida sobre se este quarto e controverso volume não lhe seja, apesar de tudo, equiparável. No entanto, tendo agora mesmo chegado à última página, não consigo deixar de pensar que valeu a pena.

“Le Boulevard Montmartre” de Jean Béraud

O motivo pelo qual se considera esta obra tão controversa é óbvio, até porque a fonte da controvérsia está logo no título. A alusão bíblica é claramente um elemento complicado mas icónico da história da religião, e essa breve passagem no primeiro livro da Bíblia ficou para sempre marcada na história da literatura, tanto para crentes como para ateus. No entanto, e apesar de Proust encher este livro com referências ao Antigo Testamento, os nomes destas cidades gémeas parecem antes descrever uma espécie de estatuto espiritual. De facto, este volume começa com uma citação de Alfred de Vigny que diz – A mulher terá Gomorra e o homem terá Sodoma. E com efeito é precisamente esse pensamento que irá invadir os pensamentos do protagonista, que frequentemente associa essa cidadania espiritual, não necessariamente a ideias religiosas ou até morais, mas sim ao que respeita os encontros secretos entre pessoas do mesmo sexo. Sendo assim, o já conhecido contexto social é aprofundado com um elemento mais íntimo, acrescentando novos detalhes nos retratos de certas personagens principais, mas também trazendo consigo um novo drama ao protagonista. Porque enquanto que aqueles que ele refere como habitantes de Sodoma o fascinam, aquelas que ele refere como habitantes de Gomorra causar-lhe-ão um transtorno que talvez nunca será resolvido.

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SODOMA E GOMORRA I

Este volume começa logo com o protagonista a revelar uma descoberta que já há algum tempo queria relatar. Isto soa-nos estranho porque é raro encontrar momentos na obra em que os relatos do narrador surjam de forma ritmada ou planeada. Na verdade isto parece mais algo como um reflexo do próprio Proust que, sabendo que a sua obra teria alusões a homossexualidade, não obstante hesitou em escrever sobre elas, ou melhor, hesitou em as revelar abertamente. Mas com este volume já não pôde esperar mais, e tal revelação surge-nos com, como talvez seria de esperar, o senhor de Charlus. A relembrar, no primeiro volume fala-se de que Odette tem vários encontros com o senhor de Charlus, algo do qual Swann está ciente mas no entanto parece não sentir quaisquer ciúmes. Bem, é agora que descobrimos porquê...

Enquanto que o protagonista aguarda a chegada dos Guermantes, que por sua vez aguardam a encomenda de um inseto que irá fertilizar uma planta rara no seu jardim, ele segue o senhor de Charlus, sendo que a partir daqui a descrição do seu encontro será decorada com vários temas de fertilidade, ou nomeadamente a falta dela. Enquanto observa, de novo adquirindo um já conhecido carácter de espião, o protagonista nota como Charlus, tão obcecado com todo o tipo de virilidade, que considera qualquer falha de caráter num homem como terrivelmente efeminada, tinha na sua expressão, no seu sorriso feliz, um traço decididamente feminino... O indivíduo com quem Charlus se encontra é Jupien, um alfaiate já previamente referido e que Françoise considera que faria uma mulher muito feliz. Ambos parecem tentar agir casualmente mas o protagonista nota que aquele encontro parece ser uma espécie de ritual, algo que ambos praticam em segredo já há algum tempo. Quando a união decorre mesmo, o protagonista descreve os sons que ouve, sons violentos quase como um crime, mas logo lhe ocorre que os sons de sofrimento são por vezes indistinguíveis dos sons de prazer, e num típico estilo proustiano, naquele jeito ao de leve segundo o qual se não se prestar atenção nem se nota no que está escrito, ele descreve a natureza do encontro.

Verdade se diga que esses sons eram tão violentos que, se não tivessem sido sempre repetidos uma oitava acima por um gemido paralelo, teria podido julgar que estava uma pessoa a degolar outro a meu lado e que, depois o assassino e a sua vítima ressuscitada tomavam um banho para apagar os vestígios do crime. Daqui concluí mais tarde que existe uma coisa tão ruidosa como o sofrimento, que é o prazer, sobretudo quando se lhe juntam […] preocupações imediatas de limpeza. – página 18

Posteriormente o protagonista detém-se a ouvir a conversa entre ambos. Charlus começa a referir vários rapazes da cidade, aparentemente interessado em os conhecer, algo que ofende Jupien que por sua vez insulta o coração inconstante do seu amigo secreto. Isto remete-nos para o episódio bizarro no volume anterior em que Charlus se demonstra profundamente ofendido pelas alegadas rejeições do protagonista. Ora, Charlus detesta ser rejeitado, algo que muito ofende a sua aparência pessoal mas talvez ofenda ainda mais o seu muito adorado estatuto de barão, mas o motivo pelo qual é agora revelado com a sua homossexualidade secreta. Quanto a Jupien a ofensa não dura muito porque Charlus logo o elogia, criando uma breve conversa cheia de doces elogios de um para o outro. Perante esta revelação o protagonista demonstra-se estupefacto, tal como Ulisses não reconheceu Atena nos seus vários disfarces, e persistindo ainda nos temas de fecundação, compara a descoberta da natureza de Charlus com o constrangimento que decorre quando alguém não se apercebe de que uma mulher fatigada pelo peso da sua barriga está grávida.

A seguir, no que é talvez a sequência mais bizarra da obra, o protagonista devaneia sobre a natureza de Charlus, concluindo que ele é uma mulher, descrevendo-o como um ser contraditório uma vez que a sua aparência exterior e os ideais a que aspira são tão masculinos e viris, mas cujo temperamento é feminino. Através deste pensamento, Proust evita a palavra “homossexualidade” que é utilizada muito esporadicamente na obra, e faz antes uso do termo “invertido” para descrever Charlus e aqueles que compartilham da sua natureza. E então, na frase mais longa de toda a obra, uma frase que perdura duas páginas inteiras até encontrar um ponto final, Proust entra num discurso febril sobre temas como a nação de Israel, a natureza de Cristo, a alta aristocracia e a maçonaria, tudo para descrever o estatuto daqueles a que chama invertidos e das formas secretas que têm de agir numa sociedade que não os aceita completamente... Depois, aproximando-se do fim deste segmento, o narrador retoma os tons de fecundação no reino animal e vegetal, parecendo identificar no encontro de Charlus e Jupien uma fecundação moral, uma vez que no sentido biológico a relação é obviamente estéril, e então, perdendo-se em admiração por todas as artimanhas que a natureza inventa para a fecundação, considera que o encontro que presenciou é maravilhoso e um milagre da natureza. Por último, ele faz ressurgir o título deste volume com diretas referências à nação de Sodoma no Antigo Testamento, como que aludindo a uma espécie de reestabelecimento da cidade, um reestabelecimento espiritual que parece já acontecer em todas as grandes cidades da Europa sempre que os apetites da natureza se tornam irresistíveis, como os lobos esfomeados que emergem das florestas.

É possível que para lá voltem um dia. Formam, evidentemente, em todos os países, uma colónia oriental, cultivada, musical, maledicente, que possui qualidades sedutoras e insuportáveis defeitos. Iremos vê-los de uma forma mais aprofundada no decurso das páginas que vão seguir-se; mas quisemos provisoriamente prevenir o erro funesto que consistiria em criar um movimento sodomita e restabelecer Sodoma, tal como se fomentou um movimento sionista. – página 38

E este primeiro segmento termina assim, com uma breve referência a Gomorra e àquelas que com ela fizeram um pacto, efetivamente dividindo a obra desta forma. O protagonista lamenta que, apesar de fascinado pela união de Charlus com Jupien, sente-se desapontado por ter perdido a fecundação da flor dos Guermantes pelo inseto.

SODOMA E GOMORRA II – CAPÍTULO PRIMEIRO

Grande parte do resto deste volume retoma a vida social do protagonista. As suas intenções são de frequentar um serão em casa dos Guermantes, mas uma vez que não tem a certeza se foi ou não convidado, não tem pressa de lá chegar e de ser o primeiro. E por isso, ao deambular pelo caminho deixa-se perder em pensamentos sobre o verão, que terá uma certa relevância nesta parte da história.

A lua estava agora no céu como o quarto de uma laranja delicadamente descascada embora um bocadinho cortada. Mas iria mais tarde tornar-se de ouro, e do mais resistente. Encolhida e só atrás dela, uma pobre estrelinha iria ser a única companhia da lua solitária, enquanto esta, sem deixar de proteger a sua amiga, mas mais ousada e seguindo à frente, brandiria como arma irresistível, como um símbolo oriental, o seu amplo e maravilhoso crescente de ouro. – página 41

Ao chegar ao serão o protagonista relata ter dito o seu nome ao porteiro, que o anunciou maquinalmente e causando-lhe inquietação devido aos seus medos de não ter sido convidado. Num contexto alargado faço menção deste detalhe porque mais uma vez temos uma instância em que o nome do protagonista é referido mas não revelado... Ao ser aceite pela princesa de Guermantes ele junta-se à soirée, e nós como leitores somos agora lançados a mais umas centenas de páginas de vida social. Só que agora o protagonista compreende melhor as reações de Charlus, tendo descoberto o segredo que explica as situações anteriores, e confessa que não suspeitara de quaisquer intenções românticas da parte de Charlus, de não ter suspeitado minimamente da sua natureza... Ele também conhece um novo casal, os Vaugoubert, que inicialmente o aborrecem pois ele tem planos para depois desse serão encontrar-se com Albertine. E da mesma forma que ele considera Charlus uma mulher, considera a senhora Vaugoubert um homem, isto é, considera-a feia e com temperamento masculino, insinuando que o tipo de homem que se casa com uma mulher dessas é um adolescente que, não gostando de mulheres, se casa com uma mulher masculina para tentar “curar” os seus interesses... Adicionalmente, por entre estas várias conversas no serão, tudo em tentativas de ser introduzido ao príncipe de Guermantes, o narrador parece quase forçar-se a narrar, quebrando a proverbial quarta parede.

Um pouco de insónia não é inútil para apreciar o sono, para projetar alguma luz nessa noite. Uma memória sem desfalecimentos não é um estímulo muito poderoso para o estudo dos fenómenos da memória. «Enfim, a senhora de Arpajon apresentou-me ao príncipe?» Não, mas cale-se e deixe-me retomar o fio da minha história. – página 57

Ainda sobre o estilo da narração, este volume parece marcar uma ligeira mudança no que respeita a omnisciência do narrador. Há certos momentos na obra em que os conhecimentos a que ele tem acesso são mais abrangentes, o maior exemplo sendo toda a história de como Swann e Odette se conheceram. No entanto, o resto do livro é contado na primeira pessoa, com o narrador por vezes ocultando certas revelações das quais não teria conhecimento na altura, e outras podemos antes entender como o narrador que, agora idoso, relembra os momentos da sua infância e juventude com uma sabedoria superior. Mas ainda assim, por vezes temos acesso a informações muito íntimas sobre todas as pessoas que compõem o universo de Proust, são-nos revelados vários detalhes solipsistas que talvez nem as próprias personagens conheçam sobre si mesmas. Tudo isto serve para causar alguma confusão na obra, algo que devido à sua extensão era inevitável. Parece-me impossível escrever um livro assim sem qualquer tipo de incoerências ou erros, alguns deles quase que naturais, como por exemplo as várias citações de outras obras que Proust cita com variações.

Mas enfim, continuando nesta soirée eventualmente chega Swann que, débil pela doença e cada vez mais ostracizado da sociedade, tem ainda acesso ao ouvido do príncipe de Guermantes. É quase como se nesta sociedade abrangente e hipócrita que Proust quer criticar, Swann tenha caído em grande desfavor apesar de se manter ainda inteligente e interessante para quem o conhece bem e cuja presença admira, muito para o desgosto e inveja dos outros membros da sociedade. Até o próprio protagonista considera que Swann, agora doente, perdeu o seu charme, e uma vez que já não ama Gilberte, deixou de admirar o seu possível sogro. Aos olhos dos outros fieis esse desinteresse é agravado porque Swann apoia Dreyfus, em torno do qual se desenvolveu uma questão política que divide a sociedade em linhas de nacionalismo e anti-semitismo. De relevância aqui está o senhor de Guermantes que considera que Swann defende Dreyfus apenas pela sua etnia, referindo uma espécie de acordo secreto.

«Estão a ver», continuou o senhor de Guermantes, «mesmo do ponto de vista dos seus queridos judeus, visto que insiste absolutamente em apoiá-los, Swann fez uma tolice de incalculável dimensão. Prova que estão todos secretamente unidos e que de certo modo são obrigados a prestar apoio a quem seja da sua raça, mesmo que não o conheçam. – página 81

A chegada de Saint-Loup traz algum apoio a Swann uma vez que este também é apoiante de Dreyfus, ainda que o seu apoio seja inconstante e portanto desconsiderado pelos outros membros da sociedade. Saint-Loup emerge agora, nas palavras do narrador, curado do amor, aparentemente tendo deixado Rachel e agora demonstrando uma desconsideração por qualquer tipo de namoro, falando de prostitutas, de mulheres lésbicas e apoiando o facto de que o seu tio Charlus tem amantes, este que entretanto está a admirar o filho da senhora Surgis, com alguma ironia mas ainda com um interesse que o protagonista compara ao interesse que um costureiro tem pelas roupas dos seus interlocutores. Apesar de tudo isto ser agora tão óbvio ao protagonista, Saint-Loup e Swann parecem mais ou menos ignorantes, com Swann considerando Charlus um bom amigo mas puramente platónico, de certa forma reconhecendo um possível lado secreto de Charlus mas rejeitando que os rumores se manifestem na realidade... Entretanto, e perto do final da soirée, Swann faz renascer páginas antigas e sugere ao protagonista que venha visitar Gilberte, dizendo que ela está crescida e muito diferente, e que ficaria bastante feliz com a sua visita. No entanto, tal convite, tal possível regresso à primeira metade de À Sombra das Raparigas em Flor deixa o protagonista indiferente.

Eu já não amava Gilberte. Era para mim como uma morta longamente chorada, até que chegou o olvido; e se ressuscitasse já não poderia inserir-se numa vida que já não era feita para ela. Já não sentia vontade de a ver, nem sequer a vontade de lhe mostrar que não estava interessado em vê-la, aquela vontade que todos os dias, quando a amava, havia decidido manifestar-lhe quando deixasse de amá-la. – página 109

Ainda assim o nosso protagonista não está muito diferente, deixando-se obcecar com a criada de quarto da senhora Putbus, uma rapariga bela e leviana referida por Saint-Loup, e que agora o protagonista quer tanto conhecer só pela impossibilidade de saber quem ela é... Mas esta longa soirée vai chegando ao fim, com o senhor de Guermantes a preparar-se para um baile de máscaras e comparando um problema no seu fato com o anúncio da morte de um outro fiel que frequentava esses mesmos eventos. E com esta cena reminiscente do final do terceiro volume, o protagonista regressa a casa para um possível encontro com Albertine mas, descobrindo que ela ainda não chegara e que talvez não tinha interesse em aparecer de todo, começa a duvidar dela, a tentar desvendar o grande mistério da obra, aqui pressagiado, que será Albertine Simonet.

No que toca a Albertine, eu sentia que nunca viria a saber nada, que no meio da multiplicidade enredada dos pormenores reais e dos factos falsos nunca conseguiria desenvencilhar-me. E que seria sempre assim, a não ser que a aprisionasse (mas há quem fuja) até ao fim. Naquela noite esta convicção apenas fez perpassar por mim uma inquietação, mas em que sentia estremecer como que uma antecipação de longos sofrimentos. – páginas 126-127

Enquanto Albertine não chega, o protagonista discute brevemente sobre ela com Françoise que, na sua sabedoria popular e típica impulsividade, não considera Albertine boa pessoa, insinuando que ela apenas se encontra com o protagonista porque ele a mima com objetos caros. Pouco depois, Albertine chega para um encontro breve, e embora o protagonista ansiasse a sua visita, demonstra-se casual e distante, fingindo que estava a escrever uma carta a Gilberte. Ele oferece a Albertine uma carteira que considera agora tão vazia de emoção como o berlinde que Gilberte lhe oferecera nos Campos Elísios. E em tudo isto, esta associação das duas raparigas que amou, o protagonista tem um outro ressurgimento da memória, e como é frequente em toda a obra, ainda que ele não se aperceba, os seus devaneios terminam sempre em Combray.

AS INTERMITÊNCIAS DO CORAÇÃO

Este segmento não aparece como um novo capítulo propriamente dito mas sim como um longo parágrafo intitulado no final do capítulo anterior. No entanto, como é um segmento importante, e como não confio muito no critério que Proust teve ao dividir a sua obra, concluo que faz sentido dividir assim. Este segmento está batizado com um dos primeiros títulos que Proust pensou para Em Busca do Tempo Perdido, sendo que estas tais intermitências são os intervalos de tempo, mais ou menos longos, entre uma experiência significativa e a nossa resposta emocional a ela. É semelhante ao famoso momento da madalena no sentido em que o verdadeiro impacto do evento só foi sentido muito depois, décadas até, renascido da recordação involuntária. No entanto, a intermitência que se dará aqui alude mais ao futuro do que ao passado, e a recordação é mais angustiante do que qualquer nostalgia de infância.

Por agora a mudança narrativa leva-nos de novo a Balbec, e de certa forma temos um constante ressurgir do segundo volume. O protagonista, agora mais independente e adulto, é recebido no mesmo hotel e tratado com toda a deferência que lhe é devida, ainda que se mostre um pouco frustrado e pretensioso, nomeadamente para com o gerente do hotel e os seus constantes malapropismos que, aborrecendo e irritando o nosso sensível protagonista, induzem-no a divagar.

Pensava nas imagens que me haviam decidido a voltar a Balbec. Eram muito diferentes das de outros tempos, a visão que vinha procurar era tão resplandecente como a primeira era brumosa; mas não iriam desapontar-me menos. As imagens escolhidas pela memória são tão arbitrárias, tão estreitas, tão impalpáveis, como as que a imaginação construíra e a realidade destruíra. Não há qualquer razão para que fora de nós um lugar real possua mais as imagens da memória que as do sonho. E, além disso, talvez uma realidade nova nos faça esquecer, e até detestar os desejos por causa dos quais tínhamos partido. – página 142

Entretanto ele vai-se reajustando à vida social em Balbec, que não parece ser muito diferente da vida social em Paris, até porque muitas das mesmas personagens regressam, ou se não regressam, regressam apenas outras algo indistinguíveis. Mas há uma personagem que não aparece mais – a avó... A intermitência do coração é então o apercebimento súbito de que a sua avó já não lá está, um apercebimento plenamente racional da sua morte que no volume anterior não foi particularmente sentida. É só agora, um ano depois da sua morte e com este regresso a Balbec, só agora ao reviver os mesmos momentos sem se aperceber de que nenhuns dois momentos são sempre os mesmos, que o protagonista descobre que ela morreu mesmo, que ela já não dorme no quarto adjacente e que não virá em seu socorro caso ele precise dela e dê os três toques na parede.

Acabava de distinguir na minha memória, debruçado sobre o meu cansaço, o rosto terno, inquieto e desanimado da minha avó, não o daquela que com tanta surpresa e auto-recriminação eu tão pouco havia chorado, e que dela só tinha o nome, mas o da minha avó verdadeira, cuja realidade viva reencontrava, numa lembrança involuntária e completa, pela primeira vez desde os Campos Elísios onde sofrera o seu ataque. – página 145

Agora veraneando em Balbec, a sua estadia é constantemente agravada por essas recordações antigas e pelas memórias daquele verão que passou com a avó que são agora vistas com novos olhos. Ele não consegue deixar de repensar todos os momentos em que causou infelicidade à avó, em que foi contra os seus desejos e ela, para bem do neto, tentou esconder o seu desapontamento, na altura com sucesso mas agora, através do redescobrimento da memória, todos seus sentimentos são revelados. Mas por outro lado, todas essas memórias dolorosas são prova de que a memória em si é real, de que a memória estava mesmo no protagonista, e que não o deixará durante muito tempo... Entretanto ele tenta-se forçar a esquecer, tanto com a sua vida social como também com a procura de uma vida amorosa acordada pelo calor, referindo o interesse em conhecer novas raparigas, ainda que continue interessado em Albertine.

Tais memórias dolorosas eventualmente, ou talvez inevitavelmente, manifestam-se em sonhos, com o protagonista a imaginar uma conversa doce com a avó ainda viva e pedindo-lhe que, mesmo com o passar dos anos, nunca deixe de a visitar, ao que ele responde que nunca a deixará de todo, que só a tem a ela no mundo. No entanto, os meses foram passando e quando ele a quis visitar, decidiu pedir ao pai pela morada mas ele responde que depois de tanto tempo é melhor não lá voltar, que só causará mais dor à sua triste e frágil avó... Depois com o acordar, e agravando ainda mais as dores, chega uma revelação de Françoise de que, no dia em que Saint-Loup tirou uma fotografia da avó, esta tinha-se sentido mal em duas ocasiões, exigindo que o seu neto não fosse informado. Tudo isto é arrasador para o protagonista que tenta aguentar-se o melhor que consegue, tentando usufruir de um verão em Balbec mas sempre sozinho, afastando-se de qualquer vida social e recusando-se a ver Albertine. No entanto é talvez a sua mãe que sofre mais e que, ainda de luto, transforma-se na avó.

Em todas as três cartas que recebi da minha mãe antes da sua chegada a Balbec citou-me Madame de Sévigné como se essas três cartas fossem dirigidas, não a mim por ela, mas pela minha avó a ela. Quis descer ao molhe porque pretendia ver aquela praia de que a minha avó lhe falava todos os dias quando lhe escrevia. Eu observava-a da janela, toda de preto, levando na mão a sombrinha da mãe, a caminhar em passos tímidos, piedosos, sobre a areia que uns pés amados haviam pisado antes dela, e parecia que ia em busca de uma morta que as ondas haviam de trazer. – páginas 157-158

Uma tarde, o nosso protagonista, a pedido da mãe, deita-se num local oculto pelas dunas, desfrutando da praia até que adormece. Então a avó aparece-lhe sentada num cadeirão mas completamente indiferente, continuando a viver mas imune à presença e aos beijos do seu neto. E em toda a frustração, o pai dele diz-lhe que os mortos são os mortos, uma breve mas triste tautologia que parece iniciar a aceitação da morte... Posteriormente já não lhe custava tanto olhar para a fotografia que Saint-Loup tirara, e passa então a identificar na avó um rosto menos doente do que pensava. Assim, com o passar do tempo o protagonista recupera, de novo interessando-se pela vida, querendo estar com Albertine, querendo regressar ao mundo e ouvir todos os seus sons, e o narrador, agora mais sábio e estoico, termina esta intermitência ao constatar o tempo inconstante, que muda tão absolutamente como o nosso estado de espírito, e que mesmo quando parece que vai chover para sempre, chega sempre o sol.

Depois, aos raios de sol sucederam-se subitamente os da chuva; riscaram todo o horizonte, encerraram a enfiada de macieiras na sua rede cinzenta. Mas elas continuavam a ostentar a sua beleza florida e rósea, no vento que se tornara glacial sob o aguaceiro que caía: era um dia de primavera. – página 167

SODOMA E GOMORRA II – CAPÍTULO SEGUNDO

A partir daqui a história retoma os contextos de sociedade presentes no volume anterior, mas com a distinta diferença de que a vida do protagonista vai sendo gradualmente marcada por Albertine. Contudo, este namoro é sempre inconstante por toda a obra, cheio de mudanças de interesse tanto da parte de um como do outro, assim como uma série de jogos e manipulações. De novo apelando ao seu senso comum, Françoise admite não gostar de Albertine, algo que o protagonista ignora uma vez que não valoriza particularmente a sua opinião. Infelizmente para ele, a relação será sempre complicada, até porque a segunda metade do título deste volume será revelada, sendo que Albertine é uma daquelas que fez um pacto com Gomorra. No entanto, e pelo menos a meu ver, nada neste casal é particularmente justo ou saudável, com o protagonista a admitir, num novo detalhe aparentemente inconsistente, que namorou com várias amigas de Albertine na praia de Balbec, treze delas para ser exato.

Entretanto, e num jeito proustiano de drásticas mudanças de assunto, como por exemplo alterar de uma longa página em que descreve casualmente a idiossincrasia de um ascensor no hotel dizer “está visto” quando alguém lhe explica uma situação que ele não compreende, e até repetindo a mesma expressão quando o protagonista lhe diz o exato oposto, a narrativa muda então para um incidente em que o protagonista, parado na rua devido a uma avaria no transporte, ouve Albertine rir-se na distância e a dançar com Andrée, peito a peito. Este momento, agravado pelos comentários de Cottard sobre os costumes dessas raparigas, leva o protagonista a entrar em perpétuos ciúmes de Albertine, obcecado com a possibilidade de ela ser bissexual e de ter encontros com raparigas. E este ciúme será manifestado em vários comportamentos negativos, algo que, nesta minha leitura mais atenta, me faz pensar neste protagonista como manipulador e como alguém que estranhamente vangloria-se na sua fraqueza, tentado fazer Albertine sentir-se culpada por preferir visitar as suas amigas mesmo quando ele tenta fazê-la sentir pena, dizendo que se sente tão sozinho, tão doente e tão desolado.

Em tudo isto o protagonista começa a ver a amizade de Albertine com Andrée, e até mesmo a sua amizade no verão passado com Gisèle, como possíveis indícios de algo mais. Todos os olhares, as danças, os beijos no pescoço, as poses em que se sentavam na praia, tudo isso lhe surge como novas redescobertas da memória, e por entre esses devaneios, esta redescoberta do passado, ele confessa sentir-se como Swann se sentiu com Odette, de novo aludindo à importância central que esse casamento tem em toda a obra. E de facto esse tipo de namoro bizarro será categórico e recorrente. Albertine parece de facto ser desonesta mas o protagonista não é particularmente melhor. Ele confessa ter tido várias raparigas, confessa até ter tido interesse nelas durante o seu namoro com Albertine, mas também entra em constantes jogos e manipulações, como por exemplo confessar a Albertine que ama Andrée para tentar julgar a sua reação, chegando até, no seu fingimento, a produzir lágrimas.

Aliás, é próprio do amor tornar-nos ao mesmo tempo mais desconfiados e mais crédulos, fazer-nos suspeitar da mulher amada mais depressa do que o faríamos de outra pessoa e acreditar mais facilmente nas suas negativas. É preciso amar para nos preocuparmos com o facto de não haver apenas mulheres honestas, o mesmo é dizer para darmos por isso, e é igualmente preciso amar para desejar que existam, isto é, para ter a certeza de que existem. É humano procurarmos a dor e logo depois livrarmo-nos dela. – páginas 210-211

Embora os paralelos com Odette se estejam a amontoar, e para nós seja mais fácil de notar as inconsistências do protagonista, ele fica aliviado ao ouvir Albertine negar qualquer relação com Andrée, sendo que Odette por sua vez admitiu a Swann ter tido relações com mulheres. E considerando que Albertine não tem grande interesse em mentir, dá-se uma espécie de reconciliação, com um beijo que o protagonista não retribui completamente, entristecendo Albertine. No entanto, ele parece deter-se nos pequenos detalhes insignificantes e, tal como Swann, quase que prefere permanecer na ignorância de que as palavras da sua amante são todas verdade, mesmo quando não são.

Naquela noite devia ter-me ido embora e nunca mais tornar a vê-la. Já então pressentia que, no amor não partilhado – o mesmo é dizer, no amor, porque há seres para quem não existe amor partilhado –, só se pode saborear da felicidade aquele simulacro que dela me era dado num daqueles momentos únicos em que a bondade de uma mulher, ou o seu capricho, ou o acaso, ajustam aos nossos desejos, numa coincidência perfeita, as mesmas palavras, as mesmas ações de como se fôssemos amados de verdade. – página 212

Nas páginas seguintes os ciúmes vão crescendo com todas as ações e interações de Albertine. A irmã de Bloch aparece com uma amiga cujos olhares e risinhos quando Albertine passa por si são suspeitos, assim como os olhares intensos de uma outra rapariga que é depois abordada pelo seu marido, uma situação que o protagonista interpreta como um marido desesperado que tenta impedir a sua mulher de visitar Gomorra. E depois, mais curioso ainda, Albertine namorisca com Saint-Loup com alguma agressividade mas é rejeitada, algo que o protagonista parece confiar da parte de Saint-Loup devido à sua amizade, mas que não confia da parte de Albertine. No entanto, tal ação dela leva-o a concluir que ela não pode gostar de raparigas. E isso parece-me boa ocasião para deixar uma nota sobre todo este drama... Porque o mais comum seria precisamente o oposto, seria que namoriscar com um dos melhores amigos dele seja das piores traições que Albertine poderia cometer, mas no entanto o protagonista parece de alguma forma entender que ela assim o faça e em vez disso o que lhe dói mais são os encontros lésbicos que ela tem. Isto é de facto bizarro porque, sem tentar ser crasso, diria que a esmagadora maioria dos homens não tem grandes problemas com a ideia de que a sua namorada seja bissexual, mas este protagonista tem, quase que preferindo uma traição heterossexual... É especulado que este traço psicológico seja um reflexo da homossexualidade do próprio Proust que, por um motivo que terei de investigar nos próximos dois volumes, decidiu fazer do seu protagonista heterossexual, ainda que a obra seja quase biográfica. No entanto é possível que os géneros se confundam e que, como se costuma dizer, em Proust é preciso ler as raparigas como se fossem rapazes. Isso até faria algum sentido porque a situação seria assim uma relação homossexual em que um dos intervenientes na verdade prefere raparigas, o que faria “Albertine” deveras impossível ao protagonista...

Mas enfim, em certos aspetos a obra é leve e deixa-se ficar pela ambiguidade, e no contexto social também o protagonista será leve com os seus compromissos. Apesar de ter tantos ciúmes de Albertine ele ainda se sente atraído pelas raparigas bonitas com quem se cruza, como por exemplo uma rapariga bonita no comboio que abre a janela do seu compartimento para fumar um cigarro, perguntando se o fumo não o incomoda e ele, querendo tanto convidá-la a jantar para a conhecer, responde apenas que o fumo não o incomoda, e para seu eterno desapontamento, um daqueles desapontamentos que perduram décadas para com um encontro de chance que poderia ter mudado a nossa vida, nunca mais a volta a ver.

Já não somos capazes de assumir a fadiga de acertar o passo com a juventude. Tanto pior para nós se o desejo carnal redobra em lugar de esmorecer... Chamamos então a nós uma mulher a quem não cuidaremos de agradar, que só por uma noite partilhará a nossa cama e que não tornaremos a ver. – página 253

As páginas seguintes, infelizmente, enchem-se de conversa de sociedade. O protagonista começa a frequentar as quartas-feiras da senhora Verdurin, introduzindo um novo elenco de personagens que, no meu honesto desinteresse, se confundem todas umas com as outras. É-me muito difícil ler estas páginas e adquirir um grande entendimento uma vez que é virtualmente impossível distinguir toda esta gente da aristocracia francesa. Para além disso, é bastante fácil perder o fio narrativo e é também bastante fácil sentirmo-nos alienados pelos temas de conversa. No fim vai dar tudo ao mesmo, e Proust alonga-se por páginas e páginas cada vez mais pesadas, com Brichot por exemplo que não se cala com detalhes sobre a origem dos nomes de vários locais, e Saniette, o homem previamente envergonhado por Forcheville, a regressar em cena com os seus mesmos momentos constrangedores. Um último detalhe interessante que retive foi de que, nestas soirées, o protagonista refere por vezes pedir um cobertor, não por frio mas sim para ocultar os segredos do prazer com Albertine, indicando que a sua relação ainda continua, ainda que em ações juvenis. Mas em tudo isto, pensamentos sobre casar com ela começam-lhe a surgir, ainda que a sua mãe hesite em dar a sua opinião honesta sobre ela, e como tal começam finalmente a surgir pensamentos sobre a emergência da idade adulta.

Mas com estas mesmas palavras, que colocavam nas minhas mãos a decisão sobre a minha felicidade, pusera-me a minha mãe naquele estado de dúvida em que já estivera quando, na altura em que o meu pai me autorizou a ir à Fedra, e sobretudo a ser um homem de letras, sentira de repente uma responsabilidade enorme, o medo de o desgostar e aquela melancolia de, quando deixamos de obedecer a ordens que, no dia a dia, nos ocultam o futuro, verificarmos que começámos enfim a viver a sério, como adultos, a vida, a única vida que está à disposição de cada um de nós. – página 290

SODOMA E GOMORRA II – CAPÍTULO TERCEIRO

Este penúltimo segmento tem início com uma reflexão sobre o sono, um dos principais temas recorrentes em Proust mas que já há algumas páginas que não era descrito com intimidade. Talvez porque o verão se aproxima do fim, e porque a sua relação com Albertine começa a exigir uma decisão final, os pensamentos do protagonista começam-se a prender com a absoluta necessidade de obedecer às leis do tempo e de fazer o que a vida lhe exige, tanto no mundo com o que respeita à sua ocupação, assim como no coração no que respeita Albertine. Ou então, dito de forma simples, ele precisa de se fazer homem e seguir em frente.

De fantasmas perseguidos, esquecidos e de novo procurados, às vezes para uma única entrevista e para aflorar uma vida irreal que logo se escapava, deles estavam cheios aqueles caminhos de Balbec. Ao pensar que as suas árvores, pereiras, macieiras, tamarizes, haveriam de me sobreviver, parecia-me receber deles o conselho de me lançar enfim ao trabalho enquanto não soara ainda a hora do repouso eterno. – página 362

Mas nunca é assim tão simples... Quando ele quer sentar-se a escrever distrai-se ou apercebe-se de que não tem nada a dizer, por isso adia sempre mais um dia. E quando quer comunicar a Albertine uma palavra decisiva, tanto para sim como para não, fogem-lhe as palavras até porque a resposta nem sempre está em nós, aliás eu começo a achar que, ao contrário do que se costuma dizer como sabedoria corrente, a resposta raramente está em nós, e nós nem sempre sabemos onde estamos...

A conversa de uma mulher que amamos assemelha-se a um solo que cobre uma água subterrânea e perigosa; a todo o momento sentimos atrás das palavras a presença, o frio penetrante de um lençol invisível; distinguimos aqui e além a sua pérfida exsudação, mas ele permanece oculto. Logo que ouvia a frase de Albertine ficava destruída a minha calma. – página 366

Os ciúmes não param, é impossível que Albertine tenha a sua vida social sem que o protagonista se encha de pensamentos sobre onde ela estará, o que estará a fazer e com quem, e se ela está mesmo a dizer a verdade quando diz que vai visitar uma familiar ou se isso é apenas um pretexto... O protagonista não consegue fazer nada exceto continuar com as mesmas manipulações, assim como as ofertas a Albertine que, no seu estatuto de órfã, embora a alta sociedade não lhe pareça inacessível, se deixa deslumbrar pelo dinheiro do protagonista, referido com alguma preocupação talvez pela primeira vez em toda a obra quando a mãe do protagonista o critica por gastar tanto dinheiro com Albertine... E então, já perto do final do volume, Bloch encontra-se com o protagonista em Doncières, enche-o de elogios no seu típico e exagerado vocabulário repleto de temas helénicos e insiste que venha cumprimentar o seu pai, o que ele recusa por receio de deixar Albertine sozinha com Saint-Loup. Então, por entre meditações sobre como os mal-entendidos e os nossos motivos secundários podem ser fatais para com amizades, e por entre meditações sobre o significado dos nomes dos lugares durante a viagem de regresso no comboio, o protagonista é atacado pela súbita certeza de que casar com Albertine é uma loucura.

SODOMA E GOMORRA II – CAPÍTULO QUARTO

Este segmento final do volume, ao qual é atribuído um título apesar de ser mais breve do que outras secções às quais só foi atribuída uma linha em branco, começa com uma nova intermitência do coração, uma talvez tão dolorosa como a anterior mas mais difícil de compreender. Porque neste momento o protagonista encontra-se num paradoxo – ele ainda ama Albertine mas também reconhece que as suspeitas acerca das suas traições com raparigas são todas verdade. Tentar encontrar um meio termo nesta complexidade será essencialmente o tema central dos próximos volumes.

Lembrei-me da exaltação que me havia causado, quando a avistara do comboio no dia da minha chegada a Balbec, aquela mesma imagem de uma tarde que não precedia a noite, mas um novo dia. Mas agora já nenhum dia seria novo para mim, já nenhum despertaria em mim o desejo de uma felicidade desconhecida, e apenas prolongaria os meus sofrimentos até não ter mais forças para os suportar. – página 450

A grande causa desta tormenta é a revelação de que Albertine conhece a menina Vinteuil, a filha do compositor falecido em Do Lado de Swann cuja amiga, na verdade namorada, a convenceu a praticar um ato de sadismo para com um quadro do seu falecido pai. E ter observado esse evento é agora a nova intermitência do protagonista, pois nesse primeiro volume o evento é descrito como um simples facto, como uma descoberta distante da sexualidade destas duas personagens, não tão diferente da descoberta da sexualidade de Charlus e Jupien. Mas agora, no seu desespero o protagonista cai na imoralidade de tentar manipular Albertine com ameaças sobre o seu próprio suicídio, originado pelo desgosto de ter rompido um bom casamento por sua causa, tudo mentiras... O seu grande objetivo é convencer Albertine a ficar com ele, a não voltar para onde poderá certamente estar a sós com a amiga da menina Vinteuil, considerando até que se se tornasse marido de Albertine poderia mimá-la com automóveis e iates, um detalhe bizarro uma vez que a riqueza do protagonista parece inconstante. E de novo aludindo a Swann e Saint-Loup ele considera que se amar uma mulher não pode nunca ser amado por ela de volta, talvez justificando todas as inconstâncias com que joga e que nos levam por entre leituras incertas em que num momento ele ama uma mulher mas no outro já não ama só para depois a amar outra vez.

O pescoço de Albertine, que lhe saía inteiro da camisa, era forte, dourado, com grandes sinais. Beijei-a com tanta pureza como se beijasse a minha mãe para mitigar um desgosto de criança que julgava então não poder expulsar nunca do meu coração. Albertine deixou-me para ir vestir-se. – página 456

Nas páginas finais ele medita sobre todas as outras raparigas que considera ter amado, pelas quais ansiava toda a noite e com as quais queria sonhar quando o sono lhe caía, mas a única verdadeira alegria que tinha com elas era precisamente em ansiar por elas, e todas as qualidades dessas raparigas, até a sua própria beleza, eram quase como que secundárias... Todas as alusões a divindades gregas parecem-se materializar no sentido em que, para este protagonista, amar e namorar é como obedecer a uma deusa, sempre distante e ignorante de nós, o que nos faz amá-la tanto, mas quando ela finalmente nos retribui o amor, faz-nos feliz só por um momento, porque quando ela nos ama, faz-se nossa igual e deixa de ser deusa... Mas Albertine parece ser a exceção, Albertine parece ser aquela sem a qual o protagonista não consegue viver. Novamente ele volta a pensar em beijá-la, confessando detalhes ligeiramente estranhos ao comparar esse beijo aos beijos que dava à mãe durante a sua infância em Combray para apaziguar todas as suas muitas angústias. E por coincidência, a sua mãe ouve-o chorar por entre as paredes e, tal como a avó fizera em tempos distantes, aparece no quarto para apaziguar o seu filho. E ele, tão cheio de lágrimas causadas por uma visão de Albertine traindo-o numa volúpia como a da menina Vinteuil, não sabe que mais fazer exceto pedir perdão por ter enganado a mãe e por ter um coração inconstante – ele decide que tem de casar com Albertine.

§

E pronto, acabo agora a fase mais difícil desta obra, muito antes do que esperava e ao mesmo tempo muito mais tarde... Porque na minha mente planeio sempre fazer as coisas de forma muito mais ritmada do que concretizo na realidade, mas depois vejo passar os dias e, quando me sinto incapaz de fazer muito, só os vejo como, ironicamente, tempo perdido. E como já há algum tempo que trago Proust comigo, e como já estava cansado de ver estes volumes em cima da minha secretária, começo agora a desesperar pelo final da obra. O mais engraçado é que com cada volume que começo sinto-me feliz por estar a ler momentos interessantes, mas com cada página que leio só consigo pensar em como o próximo volume é que será o mais interessante de todos... Aliás, escrevi várias vezes que O Lado de Guermantes era o mais denso mas, tendo lido agora este, fico na dúvida. E como com todos os volumes anteriores, estou ainda esperançoso pelos próximos que, apesar de estar tão cansado de Proust, me dão vontade de ler agora mesmo, e quem sabe se não me darão vontade de um dia os reler... Mas enfim, estou a dizer tudo isto como uma breve nota para o quão inconstantes são os nossos desejos, cujas alternâncias fazem o tempo parecer positivamente circular, muito como se as histórias antigas ainda se fizessem sentir, e como se as mudanças inconstantes de cada detalhe em Em Busca do Tempo Perdido não fossem mais do que um retrato fiel do quão infiel é a memória.

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