A continuidade da memória é aquilo que constitui a nossa identidade. O problema de perder a memória nem é tanto o problema de perder coisas boas, é mais o problema de nos apercebermos estranhos no nosso próprio corpo. Se o mundo nos alienar pelo menos nunca nos alienaremos a nós mesmos, isto é, desde que mantenhamos a nossa memória. Assim, por muito que alguns momentos ou fases das nossas vidas sejam menos bons, ou até mesmo bastante maus, é por perseveramos que chegamos ao fim deles e descobrimos algo que não teríamos descoberto de outra forma, e então torna-se impossível dizer que só queremos ficar com os bons aspetos das nossas vidas, até porque se pudéssemos voltar atrás no tempo e refazer tudo de novo, corrigir os nossos erros teria também eliminado todo o bem que nasceu deles. Quanto a mim, que muitas vezes quero voltar atrás no tempo e refazer os meus piores momentos, sei que nunca o poderia fazer porque se o fizesse nunca teria escrito o que escrevi, e os meus livros são hoje coisas que valorizo de tal maneira a achar que os meus erros são um preço pequeno a pagar por eles. E refiro tudo isto para dizer que, ao olhar para trás, ao relembrar o passado, todo ele, começo a pensar que os seres humanos conseguem relembrar sem ressentimento para com os maus momentos, que por virtude de já terem passado, se tornam boas memórias.
Na verdade não sei bem o que é que estou para aqui a tentar dizer, mas espero que à medida que continue que comece a fazer algum sentido. Pessoalmente, são muito poucas as fases da minha vida que posso dizer terem sido boas, mas mesmo ao pensar nessas fases consigo ainda encontrar momentos maus. E no entanto, quando penso nas fases más, que são quase todas, não consigo deixar de encontrar um lado positivo, não consigo deixar de pensar que alguns dias, ou até mesmo alguns momentos, foram confortáveis, foram momentos que, tendo tudo em conta, eu até gostaria de reviver, não por serem bons, mas sim por terem valido a pena. Simplesmente não consigo deixar de pensar que, apesar de tudo, valeu a pena ter continuado, que valeu a pena ter chegado ao fim de um mau momento, e esta ideia de voltar atrás para ter vivido um vida completamente diferente torna-se deveras assustadora quando penso que se assim o fizesse não seria quem sou agora. A continuidade da memória perder-se-ia, e com ela a minha identidade... Enfim, acho que o que estou a tentar dizer é que, como se costuma dizer melhor do que eu digo, isto também há de passar.
Mas talvez esteja a dizer algo mais do que isso, se é que me atrevo. Talvez esteja a dizer que, apesar de tudo, também estes dias maus e até bizarros, que esperemos que estejam próximos do fim, irão um dia ser memórias, mas mais do que isso, serão memórias das quais nos relembraremos apenas das melhores partes... Quanto a mim, e no entanto sem querer entrar em grande detalhe, porque descrever uma memória sempre resiste ao detalhe, posso dizer que foi neste ano passado que concluí o meu muito demorado segundo livro, e foi também quando comecei este meu blog, no qual já escrevi muito mais do que estava à espera. À parte disso também me recordo de um ou outro bom momento, de momentos de inspiração acerca dos quais também não posso entrar em detalhe sem soar pretensioso, e também alguns daqueles momentos de apenas me sentir bem disposto, que são tão raros que não os sei descrever sem os matar. Por isso não entrarei em detalhe, só escrevo isto como que para me perguntar se serei o único que, mesmo no meu pessimismo, procura relembrar o bom de uma memória má.
Mas não será insensível falar dos momentos bons numa fase má da vida, e até do mundo? Talvez seja, mas não será igualmente insensível que quem sofreu momentos maus impeça todos os outros de aproveitar a vida? É quase como comer uma maçã em frente ao Tântalo, mas não quereria o Tântalo, se se redimisse verdadeiramente, que quem pode desfrutar da vida que o faça? Eu gosto de pensar que sim, ou pelo menos gosto de pensar que sim enquanto escrevo isto agora mesmo. Porque na verdade, quer seja uma coisa boa ou má, parece ser o caso que apesar de tudo, as pessoas têm uma força estranha para continuar, para perseverar de tal modo que nada nos impede. Há muita coisa que nos cansa, que nos impede, que nos faz sofrer, mas nada nos faz parar... E nestes últimos dias, em que houve muita estranheza e confusão, incluindo nos momentos em que as coisas não faziam sentido e era como se o mundo tivesse deixado de existir, também houve dias bons, porque para um dia ser bom bastam dois ou três momentos... No entanto, talvez seja assim para os dias maus também, pelo menos para mim bastam dois ou três momentos maus para que o dia todo seja um desperdício. Mas no futuro, ao relembrar esse mesmo dia, que tanto quanto interessa pode ser mesmo o dia de hoje, não irei relembrar os momentos maus, irei antes relembrar os momentos bons, que sempre que me chegam fazem-me sentir como o Tântalo... mas num bom sentido.
E no fim de tudo isto não sei de onde vem essa capacidade... Relembro os momentos menos bons da minha vida e, talvez por saber que os sobrevivi até fico com algumas saudades deles, encontro neles algum conforto e até algum humor, mesmo nas minhas maiores asneiras. É como quando ficamos doentes e sentimos o mundo a acabar, sentimos que nunca mais nos vai deixar de doer o que nos dói e de que tudo de bom no mundo nunca mais será nosso, mas eventualmente tudo passa e relatamos aos nossos amigos o episódio da doença num tom autodepreciativo que não é mais do que aceitar a miséria e rir na cara dela... Ainda assim, é com hipocrisia que escrevo estas palavras porque não sou esse tipo de pessoa, não sou particularmente capaz de aceitar os dias difíceis com o estoicismo que tanto admiro. Mas sei que há quem o consiga e é essa gente que eu mais admiro, mais do que ao estoicismo em si. Por isso gosto de pensar que estes dias maus deste ano que passou e que ainda não acabou, serão um dia uma memória, mas mais do que isso, e de uma forma que prova a força da raça humana com uma verdade que eu não compreendo, serão uma memória cheia de coisas boas.
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