Skip to main content

Ponderando sobre os Efeitos Prolongados do Isolamento Social

Estar sozinho é algo que sempre me fez sentido. Sempre preferi estar no sossego do meu quarto, de preferência completamente sozinho em casa, até mesmo ao longo de vários dias seguidos, mesmo quando esses dias se transformavam em semanas, e as semanas em meses. E enfim, devido a uma mistura entre a minha personalidade e os meus gostos pessoais, nunca precisei de muita gente à minha volta para me sentir confortável e para alcançar o que queria do meu dia. Não quero com isso dizer que sou muito produtivo e assertivo, muito pelo contrário, mas quero dizer que, em termos simples, safo-me bem sozinho. Numa palavra, sou introvertido, e por isso esta ideia cada vez mais antiga de estar em casa e de praticar isolamento social não me fez assim tanta confusão quanto isso, pelo menos não na prática. Mas desde cedo reconheci que nem toda a gente é como eu, algumas pessoas preferem passar os seus dias rodeadas de outras pessoas, e os seus hobbies são inerentemente associados a uma vida social ativa. Assim sendo, um estado de isolamento social prolongado não há de ser o mais indicado, nem para mim nem para ninguém, e talvez haja certas consequências mais íntimas a considerar, consequências que vão além do simples pragmatismo do dia a dia. Porque como já dizia Aristóteles, o homem é um animal social, e embora pareça simples abdicar momentaneamente dessa qualidade, a aritmética das vantagens do isolamento social não se traduzem na realidade. E nas minhas observações de psicólogo amador comecei a achar que para algumas pessoas estar fechado em casa traz efeitos negativos equivalentes aos de uma doença feia. Tudo indica que a dada altura, a ausência de uma coisa boa é pior do que a presença de uma coisa má.


No seu livro Shooting an Elephant, George Orwell escreve sobre as suas experiências na prisão e entra em algum detalhe sobre como certos prisioneiros, dos quais se poderia dizer que tinham alguma afinidade com letras e ideias, davam-se muito melhor quando enviados para a solitária do que prisioneiros que não tinham essa mesma afinidade. Porque quando estamos completamente sozinhos, sem absolutamente ninguém com quem falar e sem absolutamente nada que fazer, somos forçados a encontrar companhia nos nossos pensamentos. O problema é que às vezes não gostamos muito da voz que nos fala de volta... Eu sei que isolamento social não pode ser visto como perfeitamente equivalente à solitária de uma prisão, pois o nosso estado presente não se trata de um castigo moral e não nos são retirados os bens que temos em casa nem a companhia daqueles com quem vivemos. Mas ainda assim há algo de semelhante, há esta ideia de que ao fim de algum tempo apercebo-nos de que estamos sozinhos e temos de aproveitar o dia da melhor maneira que conseguirmos. Para algumas pessoas isso é fácil, pelo menos para mim que estou mais ou menos habituado a fazê-lo, até porque infelizmente já o faço há muito tempo, não por ser ativo mas precisamente por ser inativo. E assim, isolamento social não me foi novidade nenhuma. Foi mais do mesmo, mas eu não me tinha apercebido de que esse mesmo podia ser assim tão mau.

E claro está, tenho de reconhecer que eu não sou toda a gente, e tenho de reconhecer também que até a mim a história deste último ano não foi sem consequências negativas, sendo que hesito em empregar esse verbo no pretérito perfeito... Parte da lógica corrente nestes últimos dias parece ter sido de que ficarmos sozinhos é categoricamente imperativo, é o maior, melhor e talvez único remédio, e os seus efeitos secundários são inexistentes, negligenciáveis ou somente mínimos quando comparados com a alternativa. E com efeito essa lógica até fez bastante sentido, principalmente no início quando até as palavras que usávamos para descrever o mundo eram estranhas, tanto é que o dicionário online as incluía a todas na lista de palavras mais procuradas do dia. Mas o problema com esse tipo de lógica é de que perde a sua força com cada dia que passa... O que é preferível? Uma semana fechado em casa ou o risco de contrair uma doença desconhecida? Qualquer pessoa abençoada com senso comum escolheria a primeira opção, mas e se os termos da oferta se alterarem para um mês fechado em casa? Três meses? Seis meses? Um ano? Dois anos? Três anos?... A dada altura os termos do contrato tornam-se impossíveis, a dada altura começa mesmo a parecer que a cura é pior do que a doença, e quando os efeitos negativos do isolamento social se começam a fazer sentir com mais força, é a saúde mental que entra em estado crítico.

E se eu me coloco no lado das pessoas introvertidas que até se aguentam bem na solitária, o que hei de dizer às pessoas que não se aguentam tão bem? Se for para ser egoísta posso ignorá-las, e posso ainda dizer que se tivesse o meu próprio apartamento e um salário devidamente assegurado não me faria grande confusão se nos mantivéssemos em isolamento durante cinco ou dez anos. Simplesmente não me faria muita diferença... Mas para quem faria toda a diferença não sei o que recomendar. Da mesma maneira que muitas vezes prefiro estar sozinho, tenho também de reconhecer que há gente que precisa de estar com alguém, extrovertidos que justamente se sentem mal quando estão sozinhos, e toda esta situação começa-lhes a causar uma estranheza cada vez mais alienante. E então até que ponto é que podemos dizer que as consequências positivas do isolamento social não compensam os aspetos positivos que trazem? Até que ponto é que dizemos que mais vale correr o risco de morrer lá fora do que morrer cá dentro? Porque não é como se no mundo houvesse um só veneno, do qual estamos todos protegidos desde que estejamos em casa... Porque stress, náusea, depressão, solidão, vício, violência, abuso e tudo mais, nada disso nos deixa porque nem todas as nossas casas estão imunes, e é de uma arrogância extrema que todo o tipo de celebridades tanto recomendem que fiquemos nas nossas casas quando na verdade não aguentariam dentro delas um único segundo... E se quem era feliz antes começa agora a sofrer sozinho, então começa-me a parecer que não estamos a evitar doença nenhuma, estamos só a trocar uma por outra, e eu que muito tempo passei em casa, sozinho, desnorteado e sem nada a fazer exceto esperar pela fome e pelo sono, consigo imaginar o quão difícil deve ser para quem sempre preferiu encontrar o seu conforto no mundo lá fora e não o pôde, durante um ano inteiro.

Ainda assim, e para ser perfeitamente justo, parece estranho que hoje em dia se fale sobre estar em casa sem nada para fazer, sobre não ser produtivo, sobre tanto aborrecimento e inércia... Afinal de contas temos tanta tecnologia que é difícil imaginar alguém estar parado, temos nos bolsos tecnologia que faz de qualquer um de nós um autodidata. Se eu quiser aprender italiano, por exemplo, posso começar a fazê-lo agora mesmo, não preciso de sair de casa, e aliás, talvez até seja melhor fazê-lo precisamente não saindo de casa. E também posso memorizar novas aberturas de xadrez, posso aprender a fazer yoga, posso estudar o sistema digestivo dos tubarões, posso descobrir o que me der na cabeça, e se o fizer terei de repente tantas horas do meu dia preenchidas que não saberei onde buscar mais tempo para me dedicar a essa nova iniciativa de uma forma séria... Mas nada disto se parece traduzir na realidade. Na minha experiência pessoal, e observando as pessoas à minha volta, o isolamento social fomenta um ambiente em que ser energético e encontrar uma nova forma de nos sentirmos produtivos, um novo hobby ou o que quer que seja, não nos chega assim com tanta facilidade ou nem sequer chega de todo. É quase como se para a maioria das pessoas a vida normal é a vida social, e a ausência dela é toda uma espiral de aborrecimento que nos afeta a saúde mental de uma forma lenta e invisível, mas prolongada e contínua. No final de contas, cada dia de isolamento social é mais um dia em que os problemas que não se resolvem, pioram.

De resto não sei... Podia tentar dizer coisas mais inteligentes sobre saúde mental mas isso seria estúpido da minha parte. Podia então tentar dizer coisas sobre viver uma vida social ativa mas isso seria hipócrita. Então não sei que mais dizer exceto talvez que, agora que chegamos sensivelmente a um ano da mesma história, começo a pensar retrospetivamente e a chegar à conclusão de que, por entre tanta miséria, o que reina é a revolta. Porque se até alguém como eu, que sempre preferiu estar sozinho, já está cansado disto, então para quem se sente preso, para quem vê fotografias de festas e chora ao sentir que está a desperdiçar a sua vida em casa, isso deve ser tortura... Ainda assim não é sem consideração que relembro este último ano, sobre o qual irei escrever mais dois artigos em sequência imediata, sendo este o primeiro numa pequena trilogia na qual não digo nada, e do que digo não sei do que falo. Numa palavra, estou a divagar, tal como alguém o faz na paragem do autocarro na companhia de um estranho completo, tal como alguém o faz no café com os seus amigos depois de muito tempo sozinho, tal como alguém o faz quando, após um sonho bizarro que parece ter durado um ano inteiro, só quer partilhar os seus pensamentos para saber que ainda existe.

Comments

Popular posts

A Minha Interpretação Pessoal de “Às Vezes, em Sonho Triste” de Fernando Pessoa

Já há muito tempo que não lia nada que o Fernando Pessoa escreveu, e talvez por esse motivo, mas principalmente porque buscava ideias sobre as quais escrever aqui, decidi folhear um livro de poemas dele. E enquanto o fiz, tomei especial nota das marcas que apontei na margem de algumas páginas, significando alguns poemas que gostei quando os li pela primeira vez, há cerca de sete anos atrás. Poderia ter escolhido um poema mais nostálgico ou até mais famoso, mas ao folhear por todo o livro foi este o poema que me fez mais sentido escolher. Agora leio e releio estes versos e comprometo-me a tecer algo que não me atreverei a chamar de análise, porque não sou poeta nem crítico de poesia. Mas como qualquer outro estudante português, fui leitor de Fernando Pessoa e, ainda que talvez mais a uns Fernandos Pessoas do que a outros, devo a este homem um bom pedaço dos frutos da minha escrita, que até à data são poucos ou nenhuns. Mas enfim, estou a divagar... O que queria dizer a jeito de introduç...

Meditations on The Caretaker's “Everywhere at the End of Time”

I have always been sentimental about memory. Nostalgia was surely one of the first big boy words I learned. And all throughout my life I sort of developed a strong attachment memory, and subsequently to things, which became an obsession almost. I never wanted to see them go, even if they had lost any and all useful purpose, because they still retained a strong emotional attachment to me. I had a memory forever entwined with those old things, so I never wanted to see them go. However, in my late teens I realized I was being stupid, I realized there was no memory within the object itself, it was only in me. So I started to throw a bunch of stuff out, I went from a borderline hoarder to a borderline minimalist, and it was pretty good. I came to the realization that all things were inherently temporary. No matter how long I held on to them, eventually I would lose them one way or another, and if someone or some thing were to forcefully take them from me, I would be heartbroken beyond repai...

10 Atheist Arguments I No Longer Defend

I don't believe in God, I don't follow any religion. And yet, there was a time in my life when I could have said to be more of an atheist than I am now. In some ways I contributed to the new atheism movement, and in fact, for a little while there, Christopher Hitchens was my lord and savior. I greatly admired his extensive literary knowledge, his eloquence, his wit and his bravery. But now I've come to realize his eloquence was his double-edged sword, and because he criticized religion mostly from an ethics standpoint, greatly enhanced by his journalism background, some of the more philosophical questions and their implications were somewhat forgotten, or even dealt with in a little bit of sophistry. And now it's sad that he died... I for one would have loved to know what he would have said in these times when atheism seems to have gained territory, and yet people are deeply craving meaning and direction in their lives. In a nutshell, I think Hitchens versus Peterson wo...

Mármore

Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver. Era assim que escrevia o Bernardo numa página à parte, em pleno contraste com tantas outras páginas soltas e enamoradas de ilustrações coloridas, nas quais eram inteligíveis as suas várias tentativas de idealizar uma rapariga de cabelo castanho-claro, ou talvez vermelho, e com uns olhos grandes que pareciam evocar uma aura de mistério e de aventura, e com os braços estendidos na sua frente, terminando em mãos delicadas que se enlaçavam uma à outra, como se as suas palmas fossem uma concha do mar que guarda uma pérola imperfeita, como se cuidasse de um pássaro caído que tem pena de libertar, como se desafiasse um gesto tímido... Mas tal criação ficava sempre aquém daquilo que o Bernardo visualizava na sua mente. Na verdade não passava sequer de um protótipo mas havia algo ali, uma intenção, uma faísca com tanto potencial para deflagrar no escuro da página branca... se porventura ele fosse melhor artista. E embora a obra carecesse ...

A Synopsis Breakdown of “The Wandering King”

A collection of eight different short stories set in a world where the malignant and omniscient presence of the Wandering King is felt throughout, leading its inhabitants down a spiral of violence, paranoia and madness. That is my book's brief synopsis. And that is just how I like to keep it – brief and vague. I for one find that plot-oriented synopses often ruin the whole reading, or viewing, experience. For example, if you were to describe The Godfather as the story of an aging mafia don who, upon suffering a violent attempt on his life, is forced to transfer control of his crime family to his mild-mannered son, you have already spoiled half the movie. You have given away that Sollozzo is far more dangerous than he appears to be, you have given away that the Don survives the attempt, and you have given away that Michael is the one who will succeed him... Now, it could well be that some stories cannot be, or should not be, captured within a vague description. It could also be t...

In Defense of Ang Lee's “Hulk”

This movie isn't particularly well-liked, that much is no secret. People seem to dislike how odd and bizarrely subdued it is, especially considering the explosive nature of its titular superhero. In a nutshell, people find this movie boring. The criticism I most often hear is that it is essentially a very pretentious take on the Incredible Hulk, an ego-driven attempt to come up with some deep psychological meaning behind a green giant who smashes things. And it's tempting to agree, in a sense it's tempting to brush it off as pretentious and conclude that a film about the Hulk that fails to deliver two action-packed hours is an automatic failure. But of course, I disagree. Even when I was a kid and went into the cinema with my limited knowledge, but great appreciation, of the comics, I never saw the Hulk as a jolly green giant. At one point, the character was seen as a mere physical manifestation of Bruce Banner's repressed anger awakened by gamma radiation, but eventual...

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido I – Do Lado de Swann”

Estou a ler Marcel Proust pela segunda vez... Há quem diga que é comum da parte dos seus leitores iniciarem uma segunda leitura logo após a tortura que é a primeira. Quanto a mim posso dizer que seja esse o caso. Quando li este primeiro volume pela primeira vez decidi que não tinha interesse em ler os outros seis, mas depois mudei de ideias e li-os. Mas li quase como que só para poder dizer ter lido. Então o objetivo seria não mais pensar no livro mas isso afigurou-se estranhamente impossível. Surgia uma crescente curiosidade em ler sínteses ou resumos e ficava-me sempre aquela surpresa depois de ler sobre um acontecimento do qual já não tinha memória. Por isso é que me proponho agora a uma segunda e muito, muito mais demorada leitura, para que possa compreender o livro pelo menos o suficiente para dizer qualquer coisa interessante sobre ele. Em relação ao título deste artigo, do qual planeio fazer uma série, decidi usar o termo que usei porque nenhum outro me pareceu mais correto. Nã...

The Gospel According to Dragline

Yeah, well... sometimes the Gospel can be a real cool book. I'm of course referencing the 1967 classic Cool Hand Luke, one of my favorite films of all time. And, as it is often the case with me, this is a film I didn't really care for upon first viewing. Now I obviously think differently. In many ways, this is a movie made beautiful by it's simplicity. It is made visually striking by its backdrop of natural southern beauty in the US – the everlasting summer, the seemingly abandoned train tracks and the long dirt roads, almost fully deserted were it not for the prisoners working by the fields... It almost gives off the impression that there is no world beyond that road. And maybe as part of that isolation, the story doesn't shy away from grit. It is dirty, grimy and hence, it is real. Some modern movies seem to have an obsession with polishing every pixel of every frame, thus giving off a distinct sense of falsehood. The movie then becomes too colorful, too vibrant, it...

A Minha Interpretação Pessoal de “Sou um Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro

Em continuação com o meu artigo anterior, comprometo-me agora a uma interpretação de um outro poema do mesmo poeta... mais ou menos. Porque os vários heterónimos pessoanos são todos iguais e diferentes, e diferentes e iguais. Qualquer leitor encontra temas recorrentes nos vários poemas porque de certa forma todos estes poetas se propuseram a resolver as mesmas questões que tanto atormentavam o poeta original. Mas a solução encontrada por Alberto Caeiro é algo diferente na medida em que é quase invejável ao próprio Fernando Pessoa, ainda que talvez não seja invejável aos outros heterónimos. Por outro lado, talvez eu esteja a projetar porque em tempos esta poesia foi deveras invejável para mim. Ao contrário do poema anterior, do qual nem sequer tinha memória de ter lido e apenas sei que o li porque anotei marcas e sublinhados na margem da página, este poema é um que li, que gostei e que apresentei numa aula qualquer num dia que me vem agora à memória como idílico. Mas em típico estilo d...

Martha, You've Been on My Mind

Perhaps it is the color of this gray rainy sky at the end of spring, this cold but soothing day I hoped would be warm, bright and the end of something I gotta carry on. Or maybe it's that I'm thinking of old days to while away the time until new days come along. Perhaps it's all that or it's nothing at all, but Martha, you've been on my mind. I wouldn't dare to try and find you or even write to you, so instead I write about you, about who I think you are, because in truth I don't really know you. To me you're just a memory, a good memory though, and more importantly, you're the very first crossroads in my life. I had no free will before I saw you and chose what I chose... Two roads diverged in a yellow wood, you would have led me down one, and yet I chose the other. But I never stopped looking down your chosen path for as long as I could, and for a fleeting moment I could have sworn I saw you standing there, and then you just faded, almost as if you ...