Estar sozinho é algo que sempre me fez sentido. Sempre preferi estar no sossego do meu quarto, de preferência completamente sozinho em casa, até mesmo ao longo de vários dias seguidos, mesmo quando esses dias se transformavam em semanas, e as semanas em meses. E enfim, devido a uma mistura entre a minha personalidade e os meus gostos pessoais, nunca precisei de muita gente à minha volta para me sentir confortável e para alcançar o que queria do meu dia. Não quero com isso dizer que sou muito produtivo e assertivo, muito pelo contrário, mas quero dizer que, em termos simples, safo-me bem sozinho. Numa palavra, sou introvertido, e por isso esta ideia cada vez mais antiga de estar em casa e de praticar isolamento social não me fez assim tanta confusão quanto isso, pelo menos não na prática. Mas desde cedo reconheci que nem toda a gente é como eu, algumas pessoas preferem passar os seus dias rodeadas de outras pessoas, e os seus hobbies são inerentemente associados a uma vida social ativa. Assim sendo, um estado de isolamento social prolongado não há de ser o mais indicado, nem para mim nem para ninguém, e talvez haja certas consequências mais íntimas a considerar, consequências que vão além do simples pragmatismo do dia a dia. Porque como já dizia Aristóteles, o homem é um animal social, e embora pareça simples abdicar momentaneamente dessa qualidade, a aritmética das vantagens do isolamento social não se traduzem na realidade. E nas minhas observações de psicólogo amador comecei a achar que para algumas pessoas estar fechado em casa traz efeitos negativos equivalentes aos de uma doença feia. Tudo indica que a dada altura, a ausência de uma coisa boa é pior do que a presença de uma coisa má.
E claro está, tenho de reconhecer que eu não sou toda a gente, e tenho de reconhecer também que até a mim a história deste último ano não foi sem consequências negativas, sendo que hesito em empregar esse verbo no pretérito perfeito... Parte da lógica corrente nestes últimos dias parece ter sido de que ficarmos sozinhos é categoricamente imperativo, é o maior, melhor e talvez único remédio, e os seus efeitos secundários são inexistentes, negligenciáveis ou somente mínimos quando comparados com a alternativa. E com efeito essa lógica até fez bastante sentido, principalmente no início quando até as palavras que usávamos para descrever o mundo eram estranhas, tanto é que o dicionário online as incluía a todas na lista de palavras mais procuradas do dia. Mas o problema com esse tipo de lógica é de que perde a sua força com cada dia que passa... O que é preferível? Uma semana fechado em casa ou o risco de contrair uma doença desconhecida? Qualquer pessoa abençoada com senso comum escolheria a primeira opção, mas e se os termos da oferta se alterarem para um mês fechado em casa? Três meses? Seis meses? Um ano? Dois anos? Três anos?... A dada altura os termos do contrato tornam-se impossíveis, a dada altura começa mesmo a parecer que a cura é pior do que a doença, e quando os efeitos negativos do isolamento social se começam a fazer sentir com mais força, é a saúde mental que entra em estado crítico.
E se eu me coloco no lado das pessoas introvertidas que até se aguentam bem na solitária, o que hei de dizer às pessoas que não se aguentam tão bem? Se for para ser egoísta posso ignorá-las, e posso ainda dizer que se tivesse o meu próprio apartamento e um salário devidamente assegurado não me faria grande confusão se nos mantivéssemos em isolamento durante cinco ou dez anos. Simplesmente não me faria muita diferença... Mas para quem faria toda a diferença não sei o que recomendar. Da mesma maneira que muitas vezes prefiro estar sozinho, tenho também de reconhecer que há gente que precisa de estar com alguém, extrovertidos que justamente se sentem mal quando estão sozinhos, e toda esta situação começa-lhes a causar uma estranheza cada vez mais alienante. E então até que ponto é que podemos dizer que as consequências positivas do isolamento social não compensam os aspetos positivos que trazem? Até que ponto é que dizemos que mais vale correr o risco de morrer lá fora do que morrer cá dentro? Porque não é como se no mundo houvesse um só veneno, do qual estamos todos protegidos desde que estejamos em casa... Porque stress, náusea, depressão, solidão, vício, violência, abuso e tudo mais, nada disso nos deixa porque nem todas as nossas casas estão imunes, e é de uma arrogância extrema que todo o tipo de celebridades tanto recomendem que fiquemos nas nossas casas quando na verdade não aguentariam dentro delas um único segundo... E se quem era feliz antes começa agora a sofrer sozinho, então começa-me a parecer que não estamos a evitar doença nenhuma, estamos só a trocar uma por outra, e eu que muito tempo passei em casa, sozinho, desnorteado e sem nada a fazer exceto esperar pela fome e pelo sono, consigo imaginar o quão difícil deve ser para quem sempre preferiu encontrar o seu conforto no mundo lá fora e não o pôde, durante um ano inteiro.
Ainda assim, e para ser perfeitamente justo, parece estranho que hoje em dia se fale sobre estar em casa sem nada para fazer, sobre não ser produtivo, sobre tanto aborrecimento e inércia... Afinal de contas temos tanta tecnologia que é difícil imaginar alguém estar parado, temos nos bolsos tecnologia que faz de qualquer um de nós um autodidata. Se eu quiser aprender italiano, por exemplo, posso começar a fazê-lo agora mesmo, não preciso de sair de casa, e aliás, talvez até seja melhor fazê-lo precisamente não saindo de casa. E também posso memorizar novas aberturas de xadrez, posso aprender a fazer yoga, posso estudar o sistema digestivo dos tubarões, posso descobrir o que me der na cabeça, e se o fizer terei de repente tantas horas do meu dia preenchidas que não saberei onde buscar mais tempo para me dedicar a essa nova iniciativa de uma forma séria... Mas nada disto se parece traduzir na realidade. Na minha experiência pessoal, e observando as pessoas à minha volta, o isolamento social fomenta um ambiente em que ser energético e encontrar uma nova forma de nos sentirmos produtivos, um novo hobby ou o que quer que seja, não nos chega assim com tanta facilidade ou nem sequer chega de todo. É quase como se para a maioria das pessoas a vida normal é a vida social, e a ausência dela é toda uma espiral de aborrecimento que nos afeta a saúde mental de uma forma lenta e invisível, mas prolongada e contínua. No final de contas, cada dia de isolamento social é mais um dia em que os problemas que não se resolvem, pioram.
De resto não sei... Podia tentar dizer coisas mais inteligentes sobre saúde mental mas isso seria estúpido da minha parte. Podia então tentar dizer coisas sobre viver uma vida social ativa mas isso seria hipócrita. Então não sei que mais dizer exceto talvez que, agora que chegamos sensivelmente a um ano da mesma história, começo a pensar retrospetivamente e a chegar à conclusão de que, por entre tanta miséria, o que reina é a revolta. Porque se até alguém como eu, que sempre preferiu estar sozinho, já está cansado disto, então para quem se sente preso, para quem vê fotografias de festas e chora ao sentir que está a desperdiçar a sua vida em casa, isso deve ser tortura... Ainda assim não é sem consideração que relembro este último ano, sobre o qual irei escrever mais dois artigos em sequência imediata, sendo este o primeiro numa pequena trilogia na qual não digo nada, e do que digo não sei do que falo. Numa palavra, estou a divagar, tal como alguém o faz na paragem do autocarro na companhia de um estranho completo, tal como alguém o faz no café com os seus amigos depois de muito tempo sozinho, tal como alguém o faz quando, após um sonho bizarro que parece ter durado um ano inteiro, só quer partilhar os seus pensamentos para saber que ainda existe.
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