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Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido III – O Lado de Guermantes”

Este terceiro volume é aquele que confronta o leitor com a verdadeira extensão de toda a obra. É quase como olhar para o nosso prato ainda cheio quando nos começamos a sentir mais do que saciados, e a visão daquilo que ainda falta consumir surge-nos quase como um pesadelo... Certamente que essa comparação não é a mais laudatória com que começar este artigo, mas é honesta porque se eu tivesse de apostar diria que este volume, embora contenha os seus aspetos positivos, é o pior de toda a obra. De um ponto de vista geral é decididamente marcado pela típica indulgência proustiana, esta coisa de entrar por um devaneio e só sair dele ao fim de dezenas de páginas. E enquanto que os dois primeiros volumes contêm bastantes reflexões intimas sobre a memória e sobre os retratos psicológicos das várias personagens, ou seja, o maior talento de Proust, este volume foca-se muito mais na vida de alta sociedade na qual o protagonista é inserido, agora com mais seriedade. Além disso, as paixões infantis e juvenis que tanto marcaram os primeiros dois volumes estão aqui, com uma breve exceção, ausentes, e portanto a extensão deste volume, aliada ao facto de a história se centrar no aspeto social, faz de O Lado de Guermantes o pior volume da obra e o maior desafio a enfrentar na sua leitura completa. Porque como eu digo, os dois primeiros volumes são leitura obrigatória, e os últimos três talvez também sejam, ainda não sei com certeza. Mas para lá chegar é preciso atravessar o mar de sargaço que é este volume, cheio de páginas e páginas de nomes estranhos a discutir outros nomes estranhos, em jantares cujo contexto social foi, ironicamente, perdido pelo tempo. Mas agora que acabei este volume escrevo sobre ele, e ainda planeio concluir toda a obra no final deste verão.

“Une Soirée” de Jean Béraud

Mais concretamente, e no entanto ainda a jeito de introdução, que mais posso dizer? Posso continuar com algumas opiniões menos bonitas e dizer que este volume nunca devia ter sido escrito... O que mais eloquentemente se pode dizer de Em Busca do Tempo Perdido, justamente quando estamos a tentar convencer alguém da qualidade de Marcel Proust, é de que a obra é rica em belas descrições do quão íntima e elusiva é a memória, de como a cada momento, mesmo nas situações mais mundanas, está sempre a acontecer algo de belo e de interessante desde que estejamos lá para ver, de como o mundo é um espetáculo constante desde que sejamos observadores atentos, tal como o protagonista da obra é sempre... Isso é tudo verdade, mas é bastante difícil de manter em mente quando temos de enfrentar centenas de páginas sobre jantares chiques em que pessoas estranhas com comportamentos sociais que nos ultrapassam discutem políticos e artistas que já há muito morreram e que talvez nem os mais inteligentes professores de história conheçam. Na minha opinião, qualquer obra de arte pode ser universal, e a obra de Proust de facto é, mas os seus aspetos negativos são justamente a razão pela qual evito, na minha escrita, fazer referências específicas sobre eventos atuais. Porque tal como o protagonista há de descobrir ao longo dos anos, o tempo é demasiado elusivo para se encontrar em algo tão passageiro como a atualidade.

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O LADO DE GUERMANTES I

Este volume começa com o protagonista a relatar que a sua família mudou de casa por motivos de saúde da avó. Esse motivo em particular será relevante mais tarde, mas ocorre-me agora que, apesar de a obra começar com uma mudança de casa, a família do protagonista está um pouco ausente e não terá grande participação neste volume, principalmente o pai. O que mais nos será relatado será a família de Guermantes, que em Combray habitava no lado de Méséglise, pessoas aristocráticas das quais o protagonista vive agora muito mais próximo e, avistando-os à distância, eleva-os no plano social como gente superior, como se nos seus salões estivesse, quem sabe, o tempo perdido. Adicionalmente, apontando um outro tema já recorrente, a admiração que o protagonista tem pela duquesa de Guermantes, os devaneios sobre como deve ser a sua vida e sobre o sentido do seu nome, começam a suscitar nele intensos sentimentos amorosos.

Na idade em que os Nomes, por nos oferecerem a imagem do incognoscível que neles vazámos, justamente porque designam também para nós um lugar real, nos forçam por isso mesmo a identificar um com o outro, a tal ponto que numa cidade partimos à procura de uma alma que ela não pode conter mas que já não temos o poder de expulsar do seu nome, não é apenas às cidades e aos rios que eles conferem uma individualidade, como acontece com as pinturas alegóricas, não é apenas o universo físico que matizam de diferenças, que povoam de maravilhoso, é também o universo social: então, cada solar, cada palácio ou palacete famoso, tem a sua dama ou a sua fada, assim como as florestas têm os seus génios e as águas as suas divindades. Por vezes, oculta no fundo do seu nome, a fada transforma-se em conformidade com a vida da nossa imaginação que a alimenta; e assim era que a atmosfera em que a senhora de Guermantes existia em mim, depois de durante anos não ter passado de um reflexo num vidro de lanterna-mágica e de um vitral de igreja, começava a desvanecer as suas cores, quando sonhos muito diferentes a impregnaram da espumante humidade das torrentes. – páginas 12-13

Por muito contrário que eu possa parecer face a este volume, esse tipo de parágrafo é precisamente o porquê de ler Proust, é precisamente em busca de passagens como essa que vale a pena perseverar por estes volumes... A título de análise posso dizer que temos mais uma vez a imaginação do protagonista a elevar alguém, neste caso uma mulher muito mais velha do que ele, a um estatuto mais do que humano, neste caso ao de uma fada, sendo que o apelo a criaturas mitológicas, geralmente da mitologia grega, da qual Bloch no volume anterior fazia a sua falsa religião, é um tema recorrente também nestes elogios estéticos traçados pelo protagonista. A título de honestidade posso dizer que nos meus apontamentos tomei nota desse parágrafo e, por um motivo que agora me ilude, escrevi dois nomes femininos do meu passado...

Nestes dias o protagonista parece adaptar-se bem à mudança de casa, perdendo-se em queixas sobre a Françoise, cujos constantes atalhos na língua francesa e saudades de Combray parecem ser origem de irritação. Quanto à sua linguagem, isso é outro dos aspetos da obra que me parecem errados, e por dois motivos. O primeiro é porque ao fim de algum tempo torna-se repetitivo e desagradável que o protagonista tanto comente a linguagem mais simples de uma pessoa menos dada às letras, o que, pelo menos para mim, afigura-se mais como uma questão de sotaque uma vez que, no fundo, todas as palavras são inventadas. E o segundo motivo é porque me parece bastante desinteressante tentar comunicar uma idiossincrasia sonora através de um meio literário. Talvez resulte, pelo menos ao James Joyce parece resultar, e talvez com esta obra até resulte no francês original, mas é algo que, tanto quanto consigo apreender, dificulta a leitura e será ainda mais vincado ao longo do volume, principalmente nas soirées em que trocadilhos e pronúncias erradas são autênticos pecados... Mas talvez estas descrições da Françoise não sejam todas em vão porque nas suas lamentações sobre Combray ela refere algo que, se bem me lembro da minha primeira leitura da obra, será relevante mais para o fim.

Ai, pobre Combray! Talvez só torne a ver-te depois de morta, quando me atirarem como uma pedra para o buraco da sepultura. Então já não sentirei o cheirinho dos teus belos espinheiros todos brancos. Mas no sono da morte acho que ainda ouvirei melhor aqueles três toques de campainha que me terão feito a vida num inferno. – página 19

Tais saudades não se aplicam ao protagonista, pelo menos por agora, uma vez que nesta sua nova vida em Paris, este novo mundo social que faz o mundo de Combray parecer pequeno, o que mais lhe ocupa os pensamentos são os Guermantes e uma subsequente vontade constante de querer fazer parte do mundo deles... Numa noite no teatro, contemplando mais uma atuação da Berma, o protagonista parece não obstante mais interessado em observar a plateia, descrevendo em detalhe a aparência e vestuário dos vários membros de alta sociedade, entre os quais avista a princesa, não a duquesa, de Guermantes, que ele descreve nas suas alturas, a presidir a atuação como uma deusa ou uma ninfa num rochedo de coral. Entretanto, quando pode concentrar-se na atuação da sua atriz favorita, que eu nunca compreendo se ele gosta ou não, questiona-se se o motivo pelo qual não sentira prazer na atuação seria porque, como quando se encontrava com Gilberte nos Campos Elísios, antecipava o evento com um desejo excessivo que, para o bem e para o mal, é uma constante busca pela perfeição que talvez não exista exceto na memória de dias felizes.

E mesmo nos meus desejos mais carnais, sempre orientados para um certo lado, sempre concentrados em torno de um mesmo sonho, teria podido reconhecer como primeiro motor uma ideia, uma ideia a que seria capaz de sacrificar a minha vida, e em cujo ponto mais central, como nas minhas fantasias durante as tardes de leitura no jardim em Combray, estava a ideia de perfeição. – página 42

E no fim de todo este segmento, numa das muitas frases proustianas que só encontra um ponto final ao fim de várias linhas, o protagonista sente-se como se lhe tivesse sido atribuída uma existência individual no preciso momento em que a duquesa lhe acenou a sua mão divina em jeito de amizade, e mais importante ainda, num gesto de graciosidade de uma deusa grega, ela sorriu.

A partir daí, talvez imaginando esse sorriso como muito mais significativo do que fora na realidade, o protagonista começa a inventar situações através das quais poderia conhecer a duquesa, tais como sair de casa à mesma hora que ela e fazer o mesmo percurso, efetivamente perseguindo-a. E durante uma dessas caminhadas confessa que a sua crescente obsessão com a duquesa nasceu da ausência das duas, ou neste caso três, raparigas da sua vida – Gilberte, Gisèle e Albertine. Esta constante obsessão com raparigas já há muito que é típico do protagonista, mas há algo que me escapa ao ver que um jovem que perdeu as suas paixões adolescentes decide perseguir e apaixonar-se por uma senhora casada e consideravelmente mais velha do que ele, se bem que isso é a mesma história do costume... Enfim, eventualmente o protagonista apercebe-se, talvez com ajuda da Françoise que, num parêntesis estranho em que o narrador admite que este grande devaneio é na verdade uma obra dividida em volumes, a verdade não precisa de ser dita para ser manifestada e de que essas perseguições causavam irritação silenciosa à duquesa. Então o protagonista decide mudar de estratégia.

No entanto não é com plena racionalidade que esse ato irracional decorre. Numa outra confissão íntima, acerca da qual talvez se possa dizer que todos temos pensamentos semelhantes, o protagonista admite umas fantasias sádicas sobre a sua obsessão com a duquesa, imaginando-a caindo na miséria para que, humilhando-se, tivesse de se voltar para o protagonista em submissão absoluta.

Eu amava verdadeiramente a senhora de Guermantes. A maior felicidade que poderia pedir a Deus seria a de que fizesse despenhar-se sobre ela todas as calamidades e que, arruinada, desconsiderada, despojada de todos os privilégios que dela me separavam, já sem casa onde morar nem pessoas que acedessem a cumprimentá-la, viesse pedir-me asilo. – página 61

Mas como a duquesa era excessivamente rica e altiva, e porque Deus não estava aparentemente disposto a reencenar o livro de Job com uma qualquer senhora francesa, o protagonista decide visitar Doncières, onde o já conhecido Robert Saint-Loup, sobrinho da duquesa, habita em regime militar. Ora, este segmento, já que em Proust não é significativo falar de capítulos, é talvez o mais estranho até agora. E digo isso porque aqui os três aspetos mais confusos da obra surgem todos ao mesmo tempo – a idade ambígua do protagonista, o seu estilo de vida demasiado luxuoso uma vez que ele não parecer ter qualquer rendimento próprio, e a sua presença incompreensivelmente admirada em situações sociais. A questão da idade, como já vimos e continuamos a ver, permanece ambígua porque num momento o protagonista parece ser bastante jovem e emocionalmente frágil, ainda com necessidade de ser acompanhado e cuidado, mas noutras ocasiões é independente e muito procurado por toda a alta sociedade. Em continuidade com isso, ele não parece nunca trabalhar nem ter qualquer necessidade de o fazer, exceto quando ocasionalmente tenta tornar-se escritor, mas ainda assim nunca lhe surgem quaisquer preocupações financeiras. E por último, e aqui eu talvez possa estar errado, mas custa-me entender o que é que o protagonista faz, para além de simplesmente existir, para que a sua presença seja tão adorada por tantas personagens diferentes ao longo de toda a obra...

Neste segmento de Doncières esse último fator surge com ainda mais força. O protagonista decide visitar Saint-Loup e acaba por passar uns dias vivendo na região, inserindo-se num contexto militar e, pelo menos na minha imaginação, bastante masculino, um contexto onde a força física, ainda que aliada à inteligência para estratégia, é talvez o valor mais elevado. E então aparece este protagonista intelectual, que nunca fez qualquer esforço físico, que nunca trabalhou, que é frágil e tem vários problemas de saúde, e no entanto é recebido na guarnição militar como o centro das atenções. Inicialmente é só Saint-Loup que o recebe, obviamente, mas fá-lo num estilo que eu não esperava, enchendo o protagonista de elogios, chamando-o de sublime, excelente e incomparável, e demonstrando muita preocupação para com a sua saúde e interesse para com a sua escrita inexistente. Para além disso, antecipando a vontade do protagonista, Saint-Loup pede ao capitão que deixe o seu adorado amigo dormir no quartel, faz questão de pedir que lhe tragam jantar, e sempre que algum dos seus companheiros vai a entrar no quarto, ele expulsa-os sem qualquer cerimónia para que não aborreçam o seu amigo com conversas banais... Adicionalmente, o protagonista vê uma fotografia da tia de Saint-Loup, ou seja, a duquesa de Guermantes, e então pede que lhe seja oferecida como presente, mas é-lhe rejeitada. Ainda assim, ao olhar para ela nota as mesmas feições superiores dos Guermantes na face deste seu amigo. Por isso a admiração que o protagonista tem pelos Guermantes aplica-se a Saint-Loup, mas é estranho que Saint-Loup tenha tanta admiração pelo protagonista.

E quando ele é eventualmente introduzido aos companheiros de Saint-Loup é logo feito o centro das atenções, e os seus comentários durante os jantares em grupo são considerados os mais geniais, um deles aliás que Saint-Loup tanto elogia depois de entrar em sua defesa quando alguém tenta interromper. Quanto a mim isto não faz grande sentido, custa-me acreditar que este protagonista, que à data não revelou ter quaisquer conhecimentos de história militar, seja agora um génio que até a militares reais impressiona, este mesmo protagonista que, atormentado por problemas asmáticos e emocionais, seja categoricamente heroicizado num contexto militar, este protagonista que no volume anterior estava a oferecer berlindes a uma rapariga de quem gostava... O meu palpite é de que, em grande medida, Em Busca do Tempo Perdido tornou-se algo como o mundo à parte de Proust, um mundo no qual ele frequentemente divagava e, mais ainda, vivia, manipulando os vários acontecimentos à sua vontade, transformando-os numa realidade melhor do que a sua, uma realidade feita infeliz tanto pelo contexto histórico como pelo isolamento, no qual ele tanto buscava o passado.

Mas nem todos os acontecimentos são assim tão misteriosamente bons. Ao fim de alguns dias neste meio, e a tentar encontrar desculpas para que Saint-Loup o introduza à sua tia, desculpas como querer admirar os quadros de Elstir que ela tem na sua galeria, ele começa-se a preocupar com a saúde da avó e chama Saint-Loup, que não só aparece muito prestável e atencioso às necessidades emocionais do seu amigo, aconselhando que durma, mas também informa que até o seu capitão disse que, pelo protagonista, Saint-Loup tinha de comparecer... É um desenvolvimento deveras estranho mas no fim dele, meditativo e com vontade de dormir, o protagonista, ou talvez o narrador, surge com um outro pensamento íntimo sobre a memória.

Sentia-me cheio de força, a vida desdobrava-se mais longa à minha frente; é que recuara até às boas estafas da minha infância em Combray, nos dias seguintes àqueles em que tínhamos passeado para o lado de Guermantes. Os poetas pretendem que reencontramos momentaneamente o que fomos noutros tempos ao entrar em determinada casa, ou em certo jardim onde vivemos na juventude. Essas são peregrinações muito arriscadas que nos conduzem a tantas deceções como êxitos. Os lugares fixos, contemporâneos de anos diferentes, mais vale procurá-los dentro de nós mesmos. Para isso é que, em certa medida, nos pode servir uma grande fadiga seguida de uma boa noite. Essas, pelo menos, para nos fazerem descer às galerias mais subterrâneas do sono, onde nenhum reflexo da vigília, nenhum clarão de memória iluminam já o monólogo interior, se é que também ele não cessa, revolvem tão bem o solo e o subsolo do nosso corpo que nos fazem reencontrar, onde os nossos músculos mergulham e torcem as suas ramificações, e aspiram a vida nova, o jardim onde fomos crianças. Não é preciso viajar para tornar a vê-lo, é preciso descer para tornar a encontrá-lo. O que cobriu a terra já não está sobre ela, mas sob ela; não basta a excursão para visitar a cidade morta, são necessárias escavações. – páginas 81-82

Posso ter as minhas críticas sobre este volume, mas é por parágrafos assim que continuar a ler vale a pena... E para além disso, nestas páginas também é interessante ver como o narrador, que muitas vezes parece relatar acontecimentos que o fazem parecer demasiado nobre, também relata detalhes íntimos e menos agradáveis, como por exemplo, ele ao passear por Doncières à noite imagina encontros anónimos com uma qualquer transeunte assustada, talvez uma prostituta, que lhe aparecesse à frente para lhe satisfazer os seus desejos carnais e fazê-lo esquecer a duquesa de Guermantes, cujo primeiro nome, incidentalmente, é umas páginas mais à frente revelado como sendo Oriane... Seja como for, a vida em Doncières vai correndo bem, e embora o protagonista atravesse a cidade à noite com tantas saudades da duquesa que às vezes nem consegue respirar, ao regressar ao restaurante é sempre recebido pelos amigos de Saint-Loup que se mostram dispostos a ajudá-lo, oferecendo as suas carruagens, cavalos, casas e horas de liberdade, todos eles jovens tão prestáveis que nem parece real. Ou isso ou este protagonista é de um charme incrível...

Mas apesar dessa receção, a estadia em Doncières aproxima-se do fim quando o protagonista recebe um telefonema da avó e, sendo o telefone uma invenção recente no seu tempo, ele devaneia sobre a estranheza que é saber que uma voz tão próxima ao ouvido, e tão querida ao coração, está no entanto tão distante que o fim do telefonema será uma inevitável deceção, na qual ele parece pressentir uma tristeza na voz da avó que pressagia a doença.

Muitas vezes me pareceu, estando assim à escuta, sem ver quem me falava de tão longe, que aquela voz clamava das profundidades donde se não volta e conheci a ansiedade que um dia me haveria de oprimir, quando uma voz regressasse assim (sozinha, e já sem ligação com um corpo que nunca iria tornar a ver) para murmurar ao meu ouvido palavras que de passagem gostaria de beijar em lábios para sempre desfeitos em pó. – página 119

Embora a avó lhe diga que fique em Doncières, a maior vontade do protagonista é de voltar, sentindo-se subitamente consumido por um medo compreensível de perder a avó. E com efeito, as páginas seguintes estão repletas de termos sombrios, com imagens de noite, de fantasmas, de angústia e sofrimento causados pelo desejo não respondido, pela morte inevitável na qual redescobre uma memória de infância sobre um dia em que ficou momentaneamente separado da avó por entre uma multidão. E esse sentimento tão característico dos pesadelos é feito mais real ainda quando o protagonista é chamado para um telefonema mas logo sente toda a sua antecipação desvanecer quando o atende e ouve a voz de uma avó inglesa, cujo neto tinha um nome semelhante ao seu, toda uma confusão que resultara de um engano da parte do hotel.

Então o protagonista regressa a Paris, encontrando a avó cansada e doente, mas após tanta preocupação regressa à sua vida normal. O seu pai refere-lhe a senhora de Villeparisis, recomendando que a conheça, procurando assim aumentar o seu estatuto social, e refere as intenções que o seu filho tem de ser escritor, uma carreira que ainda não favorece mas, aceitando que ele não tarda a fazer-se homem, implicando que não é homem ainda, permite que seja ele a escolher o seu próprio futuro. No entanto, o protagonista ainda não consegue escrever, e por isso deambulará por mais umas centenas de páginas, e até volumes.

Ao fim de alguns dias, Saint-Loup chega também a Paris mas o seu reencontro com o protagonista traz uma dinâmica algo diferente da de Doncières. Isto porque, em vez do contexto militar, aqui temos um Saint-Loup apaixonado, sendo que a sua companheira controversa, aludida no volume anterior, é agora revelada como sendo Rachel, a atriz e prostituta que, ironicamente, o protagonista já conheceu e mais chocante ainda, com quem aparentemente dormiu.

Mas o que de certo modo me fora oferecido à partida, aquele rosto condescendente, fora para Robert um ponto de chegada para o qual se dirigira através de quantas esperanças, dúvidas, suspeitas, sonhos! Sim, ele dera mais de um milhão para ter, para que não fosse de outros, o que a mim, como a qualquer outro, me fora oferecido por vinte francos. – páginas 140-141

Esta é mais uma das revelações bizarras de toda a obra, revelações que parecem surgir completamente do nada e que nos pintam um retrato bizarro do protagonista, não tanto surpreendente mas mais aleatório, como se tivesse ocorrido ao próprio Proust num fluxo de consciência ao qual a sua caneta não resistiu. Num momento este protagonista parece tão simples e inocente com Gilberte, parece tão frágil física e emocionalmente que ainda precisa tanto da avó e da mãe, mas noutro momento é-nos revelado de passagem que ele consulta os serviços de prostitutas... Enfim, essa relação com Rachel traz a Saint-Loup bastante desgosto, não só pelo motivo óbvio de namorar com alguém com essa profissão, mas também porque ela parece entreter-se ao namoriscar com outros homens. Só que apesar de tudo isso, e de forma reminiscente de Swann e Odette, Saint-Loup trata-a com bastante deferência e planeia oferecer-lhe um colar bastante luxuoso. Ainda assim, qualquer homem que lhe apareça à frente é um inimigo, especialmente porque Rachel gosta de fomentar ciúmes, mas como não podia deixar de ser, o protagonista é o único imune, até a ponto de ser convidado para um almoço constrangedor com Saint-Loup e Rachel, no qual os ânimos são excitados a ponto de Saint-Loup se irritar com um jornalista que se recusa a apagar o seu charuto e como consequência dá-lhe um estalo, num estranho ato em defensa da saúde frágil do pobre protagonista...

Após este episódio o protagonista visita um evento social na casa da senhora de Villeparisis, dando-se então mais umas centenas de páginas de vida social entre aristocratas franceses. Discute-se literatura, política, arte, música e, talvez mais importante, mexericos sobre outros aristocratas franceses cujos nomes já me esqueci apesar de ter acabado de ler o livro muito recentemente. De importante notei como a senhora de Villeparisis refere-se ao protagonista como sendo um rapazinho apesar de ter muito interesse em convidá-lo a outros eventos, e mais tarde vemos Charlus, durante uma conversa em que recomenda evitar a indecência, a tocar no queixo do protagonista e comentando que em breve ele terá de desfazer a barba. Então a sua idade parece colocar-se no fim da adolescência apesar de em muitos outros aspetos ele ser independente e de a sua presença ser tão admirada por vários adultos nesta alta sociedade. Com Bloch acontece o mesmo, este cuja amizade com o protagonista parece desvanecida mas que ainda frequenta os mesmos eventos, e cujas maneiras desastradas e comentários desagradáveis causam constante constrangimento... Na minha opinião, não são estas as páginas que mais interessam neste volume e por isso, assim como porque não tenho qualquer retenção destes eventos, avanço-os.

E é sensivelmente a meio deste volume que o narrador se concentra de novo na saúde da avó, que parece agora estar a deteriorar rapidamente. No seu pessimismo ele fala sobre como vivemos acorrentados ao nosso corpo, o qual somos e ao mesmo tempo do qual não podemos escapar. A doença é do nosso corpo mas a doença é também parte de nós. E é então que o protagonista, num passeio pelos Campos Elísios com a avó, nota que ela enfraqueceu apesar de ainda se tentar mostrar forte, citando uma frase de Sévigné para provar a sua memória e erudição literária mas pronunciando as palavras com os dentes cerrados como que com vontade de vomitar. Por muito que ela tente proteger o seu neto da verdade, ele apercebe-se de que ela teve um ataque.

O LADO DE GUERMANTES II – CAPÍTULO PRIMEIRO

Este breve segmento centra-se completamente na saúde da avó. Aquelas páginas e páginas de vida social frívola e pretensiosa são agora substituídas por meditações sobre a morte, meditações que o narrador define como chegando numa hora incerta mas que consideramos sempre distante e longínqua, mesmo que possa acontecer no próprio dia em que vivemos. Até porque um dia acontecerá, um dia chegará o nosso último dia no mundo... Quanto à sua avó, esse dia está próximo. O ataque até nem a terá surpreendido, terá sido um evento que ela já tinha previsto e pelo qual esperava. E com pensamentos semelhantes, antecipando noções de algo que se assemelha a eutanásia, o protagonista relembra um dia em Balbec em que os habitantes salvaram uma mulher viúva que se atirara à água, um ato de coragem e misericórdia que no entanto a avó considerou cruel, esta ideia de salvar a vida de uma desesperada apenas para a devolver ao seu sofrimento.

O seu olhar mudou por completo; muitas vezes inquieto, queixoso, desvairado, já não era o seu olhar de antigamente, era o olhar mal-humorado de uma velha que repete disparates... – página 294

Uns dias mais tarde, mas ainda durante esta fase obscura de doença e morte, a mãe vem acordar o protagonista a meio da noite, e ele, fingindo que não estava a dormir, medita brevemente sobre esta sensação de ser acordado, de nos sentirmos abalados por uma súbita consciência, de nos apercebermos, no caso de estarmos a ter um sonho bom, de que o sonho não é realidade nem memória, e talvez até alguns sonhos maus são melhores do que a realidade que o acordar nos vem trazer.

E quando brilha aquela cintilante estrela que, no momento do despertar, ilumina atrás daquele que dorme o seu sono inteiro, ela faz-lhe crer durante alguns segundos que se tratava, não de sono, mas de vigília; estrela cadente a bem dizer, que arrasta com a sua luz a existência enganosa, mas também os aspetos do sonho, e apenas permite que aquele que desperta pense: «Dormi.»
Com uma voz tão suave que parecia recear magoar-me, a minha mãe perguntou-me se não me fatigaria muito levantar-me, e acrescentou com uma carícia nas mãos:
– Meu pobre pequeno, agora já só vais poder contar com o teu pai e com a tua mãe. – página 296

Depois de várias visitas e cartas, depois de várias tentativas de médicos e tratamentos de oxigénio, não há mais nada a fazer. Num último momento, o protagonista beija a avó, que num espasmo inteiramente físico, já sem vida, tenta defender a sua vida pela última vez. De impulso, a Françoise grita e o protagonista abraça-a num ato de tentar esconder as lágrimas... A avó morreu.

Mais tarde a Françoise preparava o cabelo da avó, e foi como se a cada gesto o corpo dela rejuvenescesse. Primeiro foi o cabelo ainda mal esbranquiçado, depois o rosto jovem como que subitamente vazio das rugas que lhe foram pintadas ao longo dos anos. Foi muito como se, na morte, todo o sofrimento acolhido pela avó ao longo dos seus muitos anos de vida se dissipasse, deixando-a pronta a deixar o mundo tal como ela era quando se apercebeu de que existia nele.

Como nos tempos longínquos em que os seus pais lhe haviam escolhido marido, tinha as feições delicadamente delineadas pela pureza e pela submissão, as faces a brilhar de uma casta esperança, de um sonho de felicidade, e até de uma inocente alegria, que os anos a pouco e pouco haviam destruído. A vida, ao retirar-se, acabava de levar as desilusões da vida. Parecia haver um sorriso poisado nos lábios da minha avó. Naquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a com a aparência de uma menina. – página 304

O LADO DE GUERMANTES II – CAPÍTULO SEGUNDO

Ironicamente, este segmento final não é particularmente marcado por tons funerários. Aliás, isso é talvez uma mensagem simbólica de todo o volume, este ideia de que, no cenário social do qual o protagonista tanto quer fazer parte, a morte é algo a ignorar... Ele encontra-se ainda em Paris mas apenas na companhia da Françoise. Os seus pais partiram para Combray, contrastando o protagonista do volume anterior que não aguentava a ausência da mãe e da avó. Mas acontece uma surpresa boa, pois ele é visitado por Albertine que, talvez sentindo pena pela morte da avó, entra sorridente para o animar, quase como se tivesse trazido consigo aquele verão em Balbec quando se conheceram pela primeira vez.

E ao contrário da frieza inicial desses dias passados, algo típico da escrita de Proust, aqui a Albertine chega muito doce, e o protagonista nota que a sua aparência está diferente, como uma estátua, e o seu rosto adquirira uma maturidade que por sua vez deu lugar a traços femininos... Em conversa ambos relembram brevemente Balbec, com Albertine a admitir erros infantis cometidos durante esse verão, de novo demonstrando a sua maturidade e inteligência. E depois, aproveitando alguma privacidade, o protagonista ainda deitado na cama, desafia Albertine a juntar-se a ele para fazer cócegas, mas algures no corredor a Françoise parece ter adivinhado e entra nesse preciso momento como que para os interromper. Ainda assim, quando a Françoise volta a sair, os mesmos impulsos persistem.

– Sabe de que é que tenho receio, é de que, se continuarmos assim, eu não possa deixar de lhe dar um beijo.
– Seria uma bela desgraça.
[...]
Que diferença existe entre possuir uma mulher a que só o nosso corpo se junta, já que ela não passa de um pedaço de carne, e possuir a rapariga que avistávamos na praia com as amigas, em certos dias, sem sequer sabermos porquê nesses dias e não noutros, o que nos fazia temer não tornar a vê-la! – páginas 318-319

E é só ao fim de mais uma ou duas páginas que esse beijo tão antecipado e interrompido por vários devaneios chega, como que numa inversão da cena final entre ambos em Balbec, agora com o protagonista mais tímido, mais fraco, deitado na cama à mercê de Albertine.

Mas como sempre em Proust, namorar nunca é assim tão fácil... Depois de Albertine sair, o protagonista recebe um bilhete da senhora de Stermaria, informando que aceitou o seu prévio convite para jantar, algo pelo qual ele anseia uma vez que, graças a umas palavras de sabedoria da mãe, ele já não ama a duquesa de Guermantes, até porque as suas perseguições eram tópico de conversa em sociedade. E apesar deste beijo de Albertine, ele não consegue deixar de pensar no encontro com a senhora de Stermaria, obviamente exagerando em antecipação.

E depois que os gerânios, intensificando a claridade das suas cores, lutaram inutilmente contra o crepúsculo ensombrecido, chega uma bruma que envolve a ilha que adormece; passeamos na húmida obscuridade ao longo da água onde, quando muito, a passagem silenciosa de um cisne nos espanta, como num leito noturno os olhos por instantes bem abertos e o sorriso de uma criança que não julgávamos acordada. E tanto mais então gostaríamos de ter connosco uma mulher amada, quanto mais sós nos sentimos e mais longe nos podemos crer. – página 339

Como não podia deixar de ser, revelam-se aqui dois detalhes que a esta altura já deviam ser previsíveis – primeiro, agora que o protagonista deixou de gostar da duquesa, ela está de súbito muito interessada nele e até convida-o a jantar, e segundo, a senhora de Stermaria, por quem o protagonista tanto ansiava, cancela o encontro sem grande cerimónia. Mas de novo aparece Saint-Loup para convidar o protagonista a vários jantares e noitadas, renovando o seu apoio nos dias em Doncières, tudo para apoiar o seu amigo melancólico sempre que ele fica categoricamente deprimido e, neste volume da obra, estranhamente agressivo.

Trouxeram-me os pratos lá acima, a uma salinha toda de madeira. O candeeiro apagou-se durante o jantar e a criada acendeu-me duas velas. Eu, fingindo que não via bem ao estender-lhe o meu prato, enquanto ela o servia de batatas, peguei-lhe no antebraço nu como que para a guiar. Vendo que ela não o retirava, fiz-lhe uma carícia, e depois, sem pronunciar uma palavra, puxei-a toda para mim, soprei a vela e disse-lhe então que me revistasse para conseguir algum dinheiro. – página 348

Estas páginas trazem mais do mesmo, ou seja, conversas aborrecidas durante as quais é difícil saber o que se está a passar, e quando se sabe é difícil querer saber, e quando se quer saber é difícil lembrar. E temos também mais instâncias de Saint-Loup, na sua nobreza, a ser demasiado doce para com o protagonista, fazendo uso das suas proezas físicas para buscar um casaco e o colocar sobre os ombros do seu amigo... A esta altura é quase como se o próprio Proust tivesse uma paixoneta por Saint-Loup, uma paixoneta que ele vive vicariamente através de uma doçura pouco usual de um homem militar para com um amigo. E a acrescentar a este tema platónico, o narrador admira a nobreza de Saint-Loup após este o remeter para um encontro em casa do seu tio Charlus.

Segue-se então a fase final do volume, cheia de soirées intermináveis na casa dos Guermantes, pelos quais o protagonista é finalmente aceite. E enquanto que ao falar com Saint-Loup os quadros de Elstir na posse dos Guermantes eram um pretexto para os conhecer, agora são um motivo de interesse genuíno, pois o protagonista ao entrar pede um momento sozinho para os contemplar, algo que ele faz até perder noção do tempo e ser chamado por um criado. E depois as conversas, quando inteligíveis, parecem basear-se em toda uma hipocrisia social. Por exemplo, ele conhece a princesa de Parma cuja mãe lhe terá dito para não desprezar a providência divina que a fez nascer num lugar elevado da sociedade, apesar de tudo no cristianismo mostrar que os mais adorados por Deus são os que mais abdicam do mundo. No entanto, e apesar da paixão anterior, o protagonista parece ainda considerar os Guermantes como uma raça superior, gente de uma nobreza inflexível e invejável, não obstante o casamento entre eles ser bastante falso e sustentado apenas por conveniência social, pois o senhor de Guermantes tem amantes, algo que a sua esposa sabe mas prefere ignorar.

À parte esses detalhes íntimos revelados mais pelo narrador do que pelo protagonista, a conversa prende-se mais com os típicos temas intelectuais que já podemos esperar. O protagonista ainda é considerado um jovem mas parece ser bastante valorizado por entre esta sociedade de adultos, em grande parte devido aos seus conhecimentos de literatura, aparentemente muito superiores aos conhecimentos dos outros intervenientes que se ficam por interpretações superficiais. Entretanto vamos observando todas as tais gafes que vão decorrendo ao longo do jantar, tal como a pronúncia errada da palavra “arqueólogo” da parte do príncipe de Von, um detalhe sonoro que Proust faz questão de referir, algo que na minha opinião subtrai à qualidade da leitura... Mas entre todo este aborrecimento ainda há alguns momentos bons.

As palavras não mudam tanto de significado ao longo dos séculos como para nós os nomes no espaço de alguns anos. A nossa memória e o nosso coração não são suficientemente grandes para poderem ser fiéis. Não possuímos espaço bastante no nosso pensamento atual para lá guardar os mortos ao lado dos vivos. – página 464

Como prometido anteriormente a Saint-Loup, depois do jantar em casa dos Guermantes, o protagonista visita Charlus, que age de maneira muito estranha... O barão recebe-o em fúria, revelando-se magoado por ter sido ignorado pelo protagonista, por este ter rejeitado as suas aparentemente óbvias ofertas de amizade. Afinal o livro de Bergotte oferecido no volume anterior, por trazer na encadernação a igreja de Balbec, era um sinal de que o protagonista não se podia esquecer do ilustre barão de Charlus... Então o protagonista, irritado pelas acusações e calúnias, destrói um chapéu de Charlus e exige sair, o que por sua vez acalma Charlus que decide antes levá-lo até casa, transmitindo-lhe sabedoria pelo caminho. Isto soa tudo muito estranho, e com razão, até porque não é muito usual que um jovem tenha este tipo de encontro à noite em casa de um homem adulto, e que o homem adulto tenha este tipo de reação, que talvez seja explicada com o próximo volume.

Uns meses mais tarde, e no último episódio do livro, o protagonista é convidado a um evento social pela parte da princesa de Guermantes. Nele temos mais do mesmo até que Swann entra em cena com uma aparência frágil e doente. E tal como a avó depois do ataque, Swann sorri e tenta esconder a sua doença, pelo menos em comportamento, porque em palavras ele admite-o abertamente ao rejeitar um convite da duquesa para que vá com ela e o marido em viagem a Itália, dizendo que nessa altura ele já terá morrido... Ela reage com estranheza, achando que um comentário desses numa situação de alta sociedade não pode ser nada exceto uma piada da mau gosto, e para além disso ela está a ser chamada pelo marido para um jantar, e naquele meio, as obrigações sociais sobrepõem-se à morte de um amigo. Apesar disso e de tanta pressa relativamente a Swann, o duque, ao notar o vestuário da mulher, insiste que ela vá buscar uns sapatos vermelhos, ilustrando que estar bem vestida e a condizer para um jantar é mais importante do que dispensar uns momentos para confortar um amigo doente. E depois, enquanto que a duquesa se retira, o duque convida o protagonista e Swann a sair, ignorando a doença deste último, dizendo-lhe que os médicos são idiotas e de que ele ainda viverá mais tempo do que todos os outros...

§

E é assim que chego ao fim deste volume, que achei que me ia causar bastante dificuldade em saber o que escrever mas agora vejo que escrevi bastante... Apesar de tudo, ou seja, apesar de este livro ser o mais extenso em conversas de sociedade que só se parecem aplicar ao tempo do próprio Proust, também se pode dizer que, ao prestar atenção por entre as páginas mais difíceis, ainda se encontra os bons momentos, sendo que os meus favoritos ficaram aqui relatados e até citados diretamente. Porque falar de sociedade, incluindo do tão omnipresente Dreyfus, que decidi ignorar neste artigo, não há de ser o grande motivo pelo qual Em Busca do Tempo Perdido é uma das melhores obras na história da literatura. Numa coleção de sete volumes é inevitável que algum teria de ser o pior...

Mas enfim. Caso isso seja verdade, posso agora dizer que atravessei o pior e, ainda que tenha mais um volume para ler e sobre o qual escrever muito em breve, começo já a ansiar pelo próximo verão que às vezes já se faz sentir, para que possa escrever sobre os últimos três volumes e dar esta obra, que tanto me marcou da primeira vez que a li, por terminada. O mais irónico é que este preciso momento no qual tanto anseio pelo futuro será um dia uma memória nostálgica, porque a constante procura pelo tempo perdido irá um dia ser também em si tempo perdido.

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