É costume ouvir-se dizer, como que de passagem, que quem participa em medidas de apoio social e de reinserção no mercado de trabalho está essencialmente numa relação de parasitismo para com o resto da sociedade. Considera-se que são gente que aproveita do espírito de caridade por detrás dessas iniciativas económicas para deturpar o seu objetivo final, ou seja, em vez de se tratar de dar apoios àqueles que precisam para que se elevem da sua situação presentemente precária, decidem em vez disso adquirir um certo equilíbrio nessa mesma situação para então permanecer nela o máximo de tempo possível, obtendo assim um considerável rendimento contínuo em troca de um esforço mínimo. E quanto a mim, que não sei nada de economia para saber se isto é ou não verdade, comecei a escrever estas palavras para atirar ao ar alguns pensamentos sobre natureza humana. Então, partindo do princípio que as minhas ideias pessimistas sobre as pessoas são verdade, mantenho que este tipo de caridade tem o seu valor? Não sei mas talvez, porque negar a sua utilidade é-me impossível uma vez que a minha vida melhorou objetivamente com o advento de algumas medidas de apoio social, e consequentemente negar o seu valor é-me muito difícil sem cair em hipocrisia, e por último, se concordar que quem participa neste tipo de medidas é gente que não contribui positivamente para a sociedade, então dentre eles eu sou o pior.
Para contextualizar, fui inspirado para escrever isto quando, no passado dia um de setembro, comecei um curso de francês sancionado pelo nosso estado português. E embora eu tenha decido ingressar nele por um simples motivo de pragmatismo financeiro, ao longo das várias aulas fui descobrindo que o valor desse curso era maior do que eu pensava, era muito mais abrangente... Em primeiro lugar, por ter começado em setembro, fez-me curiosamente pensar nessas aulas como equivalentes ao início de um novo ano letivo, uma nova fase na minha aparentemente eterna vida de estudante, e notei que teve a mistura estranha de ensino secundário e ensino superior em simultâneo – secundário porque eram aulas simples e de iniciação, superior devido à diferença de idades entre os vários estudantes e também devido às várias desistências que foram acontecendo ao longo das primeiras semanas, muito reminiscentes do primeiro semestre na universidade. Para além disso, eu que muitos problemas tive em manter o que quer que fosse por tempo suficiente, consegui manter isto, não só pela área em si, uma vez que sempre tive algum jeito para aprender línguas, mas também porque, acima de tudo, e talvez a razão principal pela qual este tipo de intervenção existe, eu precisava de alguma estrutura na minha vida.
Participar numa formação destas pode de facto parecer que é uma escolha motivada inteiramente por fins financeiros e, de novo, para algumas pessoas, incluindo eu próprio, talvez até seja. Mas para isso não tenho defesa exceto simples pragmatismo. Toda a gente precisa de dinheiro para se sustentar, ninguém sobrevive sem ele, e por isso obtê-lo é mais do que puro egoísmo. Quem não quer saber de dinheiro que me dê o dinheiro que tiver... Mas ainda assim, falar sobre a ambição por dinheiro traz consigo pensamentos inevitáveis de superficialidade. Mas se isso é verdade, porque por um lado parece ser, então é só mais uma das muitas frivolidades do mundo. Porque nada é de borla, tudo tem um preço porque tudo tem um valor, e esse valor nunca vem em troca de nada. O dinheiro não é mais do que a coisa mais concreta que os seres humanos encontraram para representar uma mistura intangível de esforço, talento e tempo... Mas estou a divagar, porque à parte tudo isso a simples verdade é de que toda a gente precisa de estrutura na sua vida, toda a gente precisa de algo a fazer na segunda-feira de manhã, e depois na terça, na quarta, quinta e sexta. Toda a gente precisa de planos, precisa de alguma coisa que sirva de horário que, mais do que nos encher a vida a cada dia, traz também consigo outras metas concretas, a cada semana, a cada mês, e a cada ano. Se prometeres a ti mesmo que um dia vais escrever um livro, irás mesmo escrevê-lo? Muito provavelmente não, mas se prometeres a ti mesmo que vais escrever um livro antes dos vinte e seis anos de idade terás certamente muita mais motivação. Numa palavra, nós nunca faríamos nada se fôssemos imortais.
Caso contrário simplesmente não há nada por onde começar a viver... Nos meus dias de absolutamente nada, nos dias em que nem escrevia os meus livros nem estes meus artigos, nesses dias estranhos reinava o desinteresse, e porque não haveria de reinar? Se tenho a semana toda livre, porque hei de começar um projeto na segunda-feira quando posso começá-lo na terça, ou no fim de semana, ou na próxima semana, ou até mesmo no próximo ano? Não, mais do que ocupar as pessoas fisicamente, uma vez que se possa argumentar que este tipo de intervenções sociais não fazem nascer grandes frutos, é necessário ocupar as pessoas mentalmente, é necessário quebrar a monotonia de uma vida em que estar desempregado, por ironicamente atrativo que pareça num primeiro momento, é na verdade uma fonte de bastante angústia... Faz-me lembrar alguns amigos meus que, após serem despedidos do seu emprego, ficam bastante contentes por poderem ficar em casa o dia todo, só a descansar, a dormir, a ver filmes, mas esse contentamento não dura mais do que dois ou três dias, ao fim dos quais o que mais querem é voltar a sentirem-se produtivos. Só que enfim, nem toda a gente quererá ser produtiva, algumas pessoas não quererão mais do que não fazer nada e em troca receber tudo. Assim, talvez o inevitável da caridade é que algumas pessoas a aproveitarão de forma feia... mas talvez sejam essas pessoas que mais precisem dela.
E por falar em amigos, embora não possa propriamente dizer que fiz alguns com este meu curso, se bem que gosto de pensar que algumas pessoas do curso tenham uma predisposição para pensar de forma diferente sobre mim, diria ainda assim que pela simples interação, ainda que numa proximidade não imediata, valeu a pena. Houve um tempo na minha vida em que, por estar tanto tempo sozinho, a ideia de ver caras e ouvir vozes tornou-se-me estranha. É triste de admitir mas é verdade. E então como é que posso crer numa sociedade saudável na qual uma pessoa desempregada não tem sequer a ilusão de participar ativamente nela? Tal coisa não existe, provavelmente nem pode existir, e a caridade, que eu defino assim porque de certa forma alude para uma ideia mais do que económica, é só uma parte do puzzle, uma parte que um dia, caso possa, terei de aceitar como uma cruz a carregar para que pessoas na minha situação tenham também a sua oportunidade. Porque na verdade não mereci nenhuma das ajudas sociais que obtive ao longo da vida, deram-mas porque sim, e no meu íntimo achei-os estúpidos por me darem o que quer que fosse. Mas deram, e agora eu talvez pense de maneira diferente por causa disso.
Talvez esteja a exagerar isto tudo, talvez evitar considerações económicas não seja conducente a uma análise correta sobre este assunto. Mas também não é isso que me proponho a fazer, o que me proponho a fazer com isto é dizer que, mais do que dinheiro fácil, uma sociedade saudável não pode ter ninguém na periferia, e as pessoas que mais dificuldades têm em integrar a sociedade, tal como eu, são as que mais precisam dessa ajuda. E não é como se toda a gente com quem fiz o curso seja assim, são na verdade gente com um passado muito mais produtivo do que o meu, e provavelmente com um futuro mais produtivo também. Mas estatisticamente, em todos os cursos semelhantes em todo o país, as pessoas não hão de ser todas assim... A verdade racional, uma verdade que me ocorreu a mim mesmo várias vezes ao longo do curso, era esta coisa de chegar ao final do dia e pensar que tinha recebido dinheiro que não foi absolutamente nada merecido, dinheiro que nunca me teria sido atribuído numa sociedade perfeita e justa. E então até poderia concordar que uma sociedade destas, e uma medida de apoio e reinserção social destas, é pura e absolutamente injusta, mas se assim o é, é porque quem nelas participa terá no futuro de a retribuir.
E quanto a mim, que infelizmente posso dizer ter mais resistência para aguentar longos períodos de isolamento e até de inércia do que a maioria das pessoas com quem participei neste curso, ainda assim encontrei nesses dias uma estabilidade que já invejava sem saber bem o que era, e foi com essas aulas simples e breves que passei um bom inverno que caso contrário teria sido terrível... À parte disso, gosto de pensar que se um dia tiver sucesso poderei ajudar quem ainda não o teve, e até se me perder pelo caminho, gosto de pensar que nem toda a gente será como eu, e de que embora as pessoas falhem, a caridade nunca falha.
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