Houve um dia nos meus tempos de liceu em que, como sempre era costume, a última questão do teste de português consistiu em escrever um texto criativo. Então eu dei o meu melhor, se bem que agora já não me recorde de quase nada do que escrevi, e algumas aulas depois, quando fizemos a correção do teste, eu vim a descobrir que o meu texto só tinha único um erro – eu tinha utilizado a palavra “coisa” que a professora considerou ser uma palavra feia... Mas eu não concordei e, no que me foi uma atitude rara, contestei, ainda que muito ligeiramente, e argumentei que a palavra “coisa” é usada constantemente pelo Fernando Pessoa, e que como estávamos precisamente a estudar Fernando Pessoa, fez-me todo o sentido escrever de forma inspirada por ele. Mas a professora respondeu – Ah, mas o Fernando Pessoa é o Fernando Pessoa, tu és tu...
E eu, que sou eu, calei-me. De certa forma, a palavra “coisa” não é particularmente agradável, até soa um pouco estranha e talvez não seja assim tão bonita. E para além disso, em oralidade é frequentemente usada quando nos escapa uma palavra mais adequada para descrever a coisa que queremos no momento, ou seja, é usada por falta de vocabulário. E talvez o Fernando Pessoa a tenha usado para descrever conceitos filosóficos mais profundos e difíceis de definir do que aqueles que eu queria no meu texto, não sei, talvez ele possa usar essa palavra porque ele está num nível muito acima do meu, ou talvez a palavra seja uma característica típica do português dele e hoje em dia não já seja lida ou ouvida da mesma forma... Pode ser tudo isso ou mais, mas a verdade é que eu lembro-me de que, ao escrever aquele texto, hesitei sobre que palavra usar e decidi escrever “coisa” com uma impulsividade que quase que descreveria como artística. E por isso, ao ver a minha decisão, que é tão adorada em outros artistas, ser rejeitada com assim tanta confiança foi deveras estranho.
Por um lado, esse tipo de mentalidade faz todo o sentido. Aliás, o próprio Fernando Pessoa concorda. Ele diz algures no Livro do Desassossego que não gosta daqueles artistas alternativos, daqueles que, dito na gíria corrente, se põem a inventar. Ele considera que essa nova arte que fazem não é necessariamente uma nova forma de fazer arte a sério, mas sim uma incapacidade de fazer arte como os outros a fazem. Porque uma coisa é pintar em abstrato por encontrar na pintura abstrata algo que não existe nas outras correntes artísticas, é criar algo de novo, é ser verdadeiramente revolucionário com a arte, é ser-se um génio, um prodígio, e outra coisa é pintar em abstrato por ser absolutamente incapaz de pintar um cesto de fruta... Em escrita é igual. Se pesquisares conselhos sobre como escrever um romance vão-te certamente dizer para seres breve, para iniciares a ação quase de imediato, para não atribuíres nomes semelhantes às tuas várias personagens, para não te alongares muito com descrições dos cenários, e por aí fora... Mas no entanto, Em Busca do Tempo Perdido quebra todas essas regras e é dos livros mais famosos na literatura mundial... Então se o Proust se tivesse submetido a essas regras teríamos agora um livro completamente diferente, talvez melhor, talvez pior, ou não teríamos livro nenhum, mas uma coisa é certa – não teríamos o Proust como o conhecemos agora.
Esta coisa da arte requer então um equilíbrio delicado. Por um lado não podemos ser tão abertos a ponto de cair num relativismo absoluto segundo o qual tudo que alguém faz e lhe chama de arte é mesmo arte. Mas por outro lado, não podemos cair num objetivismo absoluto segundo o qual as regras que compõem a arte estejam encerradas e nada lhes possa desobedecer. Incidentalmente, por isso é que tirar boas notas a português é uma coisa incerta. As professoras, porque costumam sempre ser professoras, repetem constantemente que a interpretação das obras é subjetiva, e como tal, caso os estudantes interpretem de uma forma com a qual há discordância, as professora terá na mesma de valorizar a resposta, caso esta esteja bem argumentada... Está bem, isso é tudo muito bonito, mas podemos mesmo esperar um critério objetivo neste meio inerentemente subjetivo? Porque eu pelo menos nunca compreendi como é que as professoras sempre falavam de interpretação como se fosse uma ciência.. De onde é que vem esta confiança no objetivismo em literatura? De onde é que vem esta ideia que os professores de línguas e humanidades têm de que se conseguem tão completamente separar de si próprios?
Na minha opinião, tal coisa não existe. É impossível que uma pessoa nessa posição seja inteiramente objetiva a avaliar os méritos de uma composição literária ou filosófica. Se concordar com o que está escrito irá certamente favorecer, irá valorizar a mais os aspetos positivos e ignorar os aspetos negativos. Se não concordar então irá certamente ler o texto com muito mais atenção, irá veementemente procurar argumentos para refutar os aspetos positivos e irá considerar os aspetos negativos como razões objetivas em defesa da sua posição. Uma professora que adora Proust consegue ser objetiva ao ler o ensaio de um aluno que o detesta? Uma professora vegetariana consegue ser objetiva ao ler o ensaio de um aluno que visa refutar o vegetarianismo?... E em tudo isto, o que acontece à criatividade? Como é que podemos fomentar um ambiente em que os estudantes têm liberdade para se espraiar e inventar, com alguns limites, sem no entanto serem penalizados de forma desmoralizante? E como é que fazemos com que um professor compreenda que o seu método não está a ser assim tão objetivo e imparcial quanto isso? É outra vez o mesmo equilíbrio necessário entre aprender o método corrente para que depois os estudantes criativos tenham a liberdade para inventar. Mas podemos esperar dos professores uma mente aberta para isso?
No meu caso eu não pude, pelo menos na ocasião que descrevi. E isso é uma idiossincrasia das humanidades. Ninguém que está a ser injusto pensa que está a ser injusto, na verdade pensam que estão bem, que estão corretos e que estão a argumentar uma posição que julgam verdadeira. E então o que acontece às humanidades? Talvez venham a perder algum do respeito que esperam obter das ciências. Porque em ciência a interpretação pessoal do professor não interessa para nada, se a resposta for treze então é treze, mas em humanidades se a resposta for que o relógio do protagonista simboliza o tempo então pode simbolizar também o passado ou o futuro, ou a história da vida ou o medo da morte. Aliás, mesmo que o autor ressuscitasse, aparecesse na sala de aula e desse a sua opinião, ele poderia perfeitamente não estar correto. Porque a dada altura o significado da arte torna-se público, transcende o próprio artista, e talvez até a própria arte. Por tudo isso, a ideia de que professores de português conseguem ser objetivos relativamente a perguntas de interpretação fica, a meu ver, muito aquém da realidade.
Quanto à criatividade também não sei. Mas lembro-me de nos anos de exame final as aulas de português serem reduzidas a aborrecidas correções do trabalho de casa e depois, com toda a ironia do mundo, durante as perguntas de interpretação não fazíamos muito mais do que copiar para o caderno exatamente aquilo que a professora ditava... A sério que há alguém neste mundo que se julga capaz de escrever textos perfeitos, um após outro após outro, sem quaisquer erros, sem frases que ficariam melhor desta ou daquela maneira, textos que capturam completamente tudo aquilo que um escritor do século passado quis dizer? É uma coisa deveras engraçada que os professores pareçam favorecer repetição e memorização em vez de procurarem treinar o espírito crítico dos estudantes. Imagina só o que é tentar memorizar as respostas aos problemas matemáticos do manual inteiro em vez de aprender a resolver equações... Não faria qualquer sentido, e eu pessoalmente, num único semestre de filosofia aprendi muito mais sobre interpretação de texto do que em três ou quatro anos de português no liceu. Na verdade passei o liceu inteiro sem saber uma coisa que deveria ter aprendido logo no início, até porque com essa habilidade, com esse espírito crítico, tudo o resto no mundo académico teria sido mais fácil.
Então o que diz isso sobre o estado do ensino, nomeadamente em humanidades? Diz coisas não muito boas, certamente... Mas quem critica tem de estar pronto a oferecer alternativas, ou no mínimo tem de admitir a sua ignorância quanto a isso. Então o que é que eu sugiro? Penso que o melhor talvez seja manter uma discussão aberta, deixando claro que toda a gente vai eventualmente dizer coisas estúpidas e que isso não faz mal, deve-se manter uma discussão que pode e talvez até deva ficar acesa de vez em quando, uma discussão na qual o professor deve ser o moderador mas deve também aceitar que tem sempre algo a aprender. Quanto aos estudantes, o objetivo deve ser mentalizarem-se de que têm de aprender o básico, a sabedoria corrente, na forma o mais justa possível, para que depois, se quiserem, inventem à vontade.
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