Skip to main content

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido II – À Sombra das Raparigas em Flor”

A minha ideia original era passar este mês de agosto a ler este segundo volume de Em Busca do Tempo Perdido. Queria tê-lo lido com calma para conseguir desfrutar de cada página, justamente a maneira como Marcel Proust deve ser, ou tem de ser, lido. Em certos aspetos gosto de dizer que fiz isso, mas a verdade é que não consegui, como frequentemente não consigo, deixar que o tempo passasse com cada página. Quis passar este verão a ler este volume sobre o verão, e agora, com ainda mais um mês inteiro de verão para viver, já o acabei... Persegui o livro à espera que a história acontecesse, a história aconteceu, acabou, e agora, como se costuma dizer, nem dei por ela. Por isso é que ler Proust é uma experiência tão surreal. Toda a sua obra está escrita num ritmo que nem sempre faz o sentido de uma história tradicional, mas é um ritmo que imita perfeitamente a vida real. Passamos a vida à espera de um dia específico, esse dia chega e depois vem o dia seguinte, um amanhã que não concebemos, um amanhã que ontem era só um número no calendário sem qualquer anotação ao lado. Então aqui estou eu, a escrever sobre este livro de verão, a relembrar verões antigos, ocasionalmente a olhar pela janela e a perguntar-me se o sol lá fora é o mesmo das minhas memórias.

“The Schoolgirl” de Philip Wilson Steer

O que posso então dizer sobre este volume? A primeira página começa em quase direta continuidade temática com o volume anterior, sendo que não há uma demarcação claramente delineada, nem no início deste nem no fim do anterior. Em Busca do Tempo Perdido tem a característica recorrente de que o último parágrafo é sempre belo e eloquente, é um fim quase definitivo, mas depois, como é tão típico da vida, chega o volume seguinte, algo que, em comparação com a nostalgia do passado, nos deixa quase melancólicos. Uma diferença significativa é de que neste volume não temos uma quebra narrativa semelhante à do volume anterior, aquele segmento relativo ao passado de Swann, mas em vez disso notamos que as alternâncias entre os narradores são inesperadas, são uma constante troca entre um narrador omnisciente e típico de um romance, um narrador feito sábio pelos anos e que agora recorda o seu passado de uma idade que considera ridícula, e um narrador jovem e tão ingénuo na sua constante busca de amores da adolescência.

§

EM TORNO DA SENHORA SWANN

Este volume começa com o senhor de Norpois, um diplomata que foi convidado para jantar em casa da família do protagonista. Somos desde logo reintroduzidos aos mesmos cenários sociais aos quais já devíamos estar habituados, e se ainda não estamos então o terceiro volume vai doer ainda mais... A vida boémia que o próprio Proust viveu, pelo menos até se exilar para escrever esta obra, é nitidamente refletida em cada página da sua obra – esta ideia de frequentar eventos sociais todos os dias, de desejar ser introduzido a pessoas de nobreza, todos aqueles almoços e jantares que duram horas e horas, as discussões intelectuais com músicos, escritores, pintores, e por aí fora. Parte do motivo do convite a Norpois é de que os pais do protagonista querem que o seu filho se torne um diplomata, ainda que ele prefira ser escritor. Contudo, ao longo de toda a obra, nunca surgem quaisquer preocupações financeiras ao protagonista, que sempre viveu esse tipo de vida boémia sem grandes pressões de criar uma carreira. E se parece que escrevo isso com inveja é porque escrevo... Mas em vez de falar de diplomacia, Norpois sugere que ser escritor é uma boa carreira, algo que agrada bastante aos pais do protagonista assim como a ele próprio, mas quando este entrega a Norpois uns versos que escreveu quando vivia em Combray, ele devolve-os sem uma única palavra. Mais tarde, Norpois critica o escritor Bergotte e, ao descobrir que é o escritor favorito do protagonista, compreende então a fraqueza literária dos versos. Assim, os sonhos do protagonista de se tornar escritor são inicialmente abalados e não serão recuperados até ao último volume.

Um outro tema de conversa é o teatro, nomeadamente Fedra, uma peça protagonizada por uma atriz chamada Berma, por quem o protagonista está obcecado. Mas os seus pais proíbem-no de ir ao teatro devido a recomendações do médico Cottard. Os problemas de saúde do protagonista, aos quais já fomos introduzidos, ainda persistem, sendo até agravados pelo seu estado mental caso ele se coloque em situações demasiado excitantes. Contudo, mais uma vez, Norpois entra em defesa do protagonista, argumentando que ele devia ir ao teatro e de que, nos dias correntes, a experiência não seria assim tão perturbante como se possa pensar. Então o protagonista finalmente vai ao teatro com a avó, vê a Berma representar e, como não podia deixar de ser, fica desapontado. É só mais tarde, ao ler uma crítica sobre essa representação no jornal, que ele muda de ideias. Mais uma vez temos uma instância desta recorrência segundo a qual exageramos experiências na nossa mente, ficamos desapontados no momento em que são concretizadas, e só mais tarde, na união da experiência artística com a memória, é que as conseguimos finalmente apreciar.

Entretanto, e algures por entre estas conversas, a mesma família do primeiro volume revela-se ainda como um grande objeto de interesse para o protagonista – os Swann. O protagonista parece admirar Charles Swann, parece ter uma paixão platónica por Odette e uma paixão menos platónica por Gilberte. Por isso é que fica sempre contente quando essa família é tema de conversa. E é com Gilberte que se iniciará a primeira relação de namoro adolescente nesta obra, a primeira sombra de uma rapariga em flor, ainda que a noção de adolescência seja algo estranha... Isto porque, em toda a obra, a idade do protagonista não é propriamente especificada, e por vezes parece até contraditória. Neste volume ele recebe uma herança da tia Léonie, uma quantia que o pai guarda até que o seu filho seja maior de idade, sendo essa a referência mais exata acerca da sua idade que eu encontrei. Quanto a Gilberte, essa é descrita por Norpois como uma rapariga encantadora de catorze ou quinze anos. Por essa lógica seria seguro assumir que o protagonista tem mais ou menos a mesma idade, mas por outro lado acontecem coisas estranhas como, por exemplo, Norpois, durante esse jantar, sugerir ao protagonista que o casamento de Swann envolve adultério, ou então coisas mais caricatas, pelo menos para mim, como o protagonista ser frequentemente convidado para encontros com pessoas adultas que demonstram um profundo interesse pela sua opinião acerca dos mais diversos assuntos intelectuais. Talvez isso seja algo característico da época ou talvez seja uma idiossincrasia típica da vida do próprio Proust, mas no contexto da obra cria-se uma certa ambiguidade, talvez muito natural da circularidade da memória.

De qualquer das formas, Norpois afastar ideias sobre uma possível carreira diplomática vem mesmo a calhar porque o protagonista não se quer afastar de Gilberte. Ele quer-se manter próximo dos Campos Elísios, quer cair nas boas graças de Odette e anseia pela introdução de Norpois para isso. Quando Norpois promete fazê-lo, o protagonista sente-se tão grato que quase lhe beija as mãos, uma ação que julgou não ter sido captada por mais ninguém até que, mais tarde na sua vida, o impulso lhe foi constatado por outros. No entanto, a introdução nunca chega, pelo menos não da parte de Norpois. O protagonista anseia por uma nova amizade com Gilberte depois do ano novo, algo que vê como uma espécie de mudança aleatória na qual a passagem de um dia de dezembro para um dia de janeiro, que ele passa sozinho, não o faz sentir particularmente diferente. Por um momento ele até se esquece da cara de Gilberte, misturando assim essa paixão adolescente com uma espécie de platonismo da memória. Mas os Swann nunca ficam muito longe do seu interesse.

Através deste jantar com Norpois, o narrador entra em mais digressões sobre Swann e Odette. Parece demonstrar um certo pessimismo sobre a ideia de casamento, sugerindo que em todos os casamentos tem de haver um sacrifício da parte de um cônjuge ou do outro, algo que Swann, talvez mais do que Odette, teve de fazer. Entretanto, Odette está a enveredar por uma vida social mais ativa e, tendo aprendido várias lições com a senhora Verdurin, quer criar o seu próprio salão. Swann já não tem mais ciúmes de Odette mas de vez em quando ainda lhe ocorre a memória daquele dia, descrito no primeiro volume, em que a foi visitar e ela não lhe abriu a porta, presumivelmente porque estaria com Forcheville... Enfim. E entre todas as variadas digressões de Norpois, cito agora a minha favorita.

O senhor de Norpois sabia que nada há mais natural que o prazer de contemplar mulheres bonitas, que logo que alguém nos fala calorosamente de uma, é de bom-tom fingir acreditar que ele está apaixonado por ela, brincar a esse respeito e prometer-lhe apoiar os seus desígnios. – páginas 48-49

Depois do ano novo, o protagonista reestabelece uma amizade com Gilberte mas a experiência não é exatamente o que ele antecipava. Antes de ela regressar ele até se tinha momentaneamente esquecido da cara dela e ficou desapontado por não receber nenhuma carta. Pior ainda é quando Gilberte lhe diz que os seus pais, que o protagonista tanto admira, não aprovam que ela mantenha essa amizade com o protagonista, aliás, consideram-no uma má influência sobre ela. Então o protagonista, chocado por descobrir que Swann tinha essa opinião, escreve-lhe uma longa carta na qual defende a sua inocência e proclama um interesse honroso por Gilberte. Mas carta não tem grande efeito, Swann não a leva muito a sério. Gilberte então encontra-se com o protagonista nos Campos Elísios e propõe devolver-lhe a carta. Mas ele, sentido-se tão atraído por ela, inicia uma brincadeira adolescente que por sua vez gera uma situação curiosa – eles começam uma luta a brincar, ela a tentar esconder a carta e ele a tentar roubá-la.

Eu tentava puxá-la para mim e ela resistia; as faces incendiadas pelo esforço estavam vermelhas e redondas como cerejas; ria-se como se eu lhe tivesse feito cócegas; segurava-a agarrada entre as pernas como um arbusto por onde quisesse trepar; e, no meio daquela ginástica, e sem que com isso aumentasse por aí além a respiração ofegante que o exercício muscular e o ardor da brincadeira me causavam, derramei, como se fossem algumas gotas de suor arrancadas pelo esforço, o meu prazer, no qual nem sequer me pude deter o tempo de o saborear; agarrei logo na carta. Então Gilberte disse-me generosamente:
– Olha, se quiseres, podemos lutar mais um pouco. – página 63

A madalena do primeiro volume é aquela instância que toda a gente, mesmo quem nunca leu, conhece da obra proustiana, e com razão, mas este episódio da luta e da acidental experiência sensual é um momento talvez tão icónico. O momento oferece-nos uma excelente caracterização das duas personagens envolvidas – demonstra os impulsos que o protagonista tem quando absorvido em admiração estética, e demonstra uma atitude decididamente provocadora de Gilberte, tudo capturado por um impulso de descoberta adolescente. E essa última frase de Gilberte, que eu tomei a liberdade de alterar para um tom mais informal, é uma daquelas passagens que, num livro de três mil páginas, não se esquece.

Nos dias que se seguem a amizade entre os dois é gradualmente aprofundada mas os Swann ainda não aprovam da relação que o protagonista travou com a sua filha. No entanto, a dedicação dele é clara. Mesmo com os seus problemas de saúde, mais especificamente febre, ele sai para os Campos Elísios apenas para se encontrar com Gilberte, o que só piora o seu estado. A propósito das aflições de saúde ele começa a tomar certas bebidas alcoólicas, nomeadamente conhaque, uma decisão que os pais não aprovam mas que a avó aprova porque a bebida parece ter um efeito positivo nos ataques de asma do protagonista. E num outro momento icónico, a avó, vendo que o seu neto está com falta de ar, sai de casa durante a noite precisamente para lhe comprar conhaque.

Quase todos os dias tive crises daquelas, de sufocação, durante a minha convalescença. Uma noite em que a minha avó me deixara bastante bem, regressou ao meu quarto já o serão ia adiantado e, percebendo que me faltava o ar, exclamou de rosto transtornado: «Meu Deus, como tu estás a sofrer!» Deixou-me imediatamente, ouvi o barulho do portão, e ei-la que regressa um pouco mais tarde com conhaque que tinha ido comprar, porque já não o havia em casa. Não tardei a começar a sentir-me feliz. A minha avó, um pouco corada, parecia incomodada, e os olhos tinham uma expressão de cansaço e de desânimo. – página 66

Quanto a mim, que não tenho uma opinião muito favorável de álcool, consigo entender nessa passagem a dedicação típica de quem, como se costuma dizer, é mãe duas vezes. E essa dedicação será muito mais vincada no segundo segmento do livro, e a sua súbita ausência em volumes posteriores justificará a mágoa intensa do jovem neto.

O estado de saúde do protagonista agrava-se temporariamente. O doutor Cottard é chamado a uma visita lá a casa e recomenda uma dieta de apenas leite. Tanto o protagonista como a sua família ouvem o doutor com deferência mas não tencionam seguir os conselhos de um homem que consideram idiota. Só que mais tarde, depois de o protagonista piorar, decidem seguir os conselhos do doutor à letra e notam logo uma melhoria, algo que o narrador nos relata perdendo-se em digressões sobre o jeito como uma pessoa desinteressante em tantos aspetos, uma pessoa sem quaisquer opiniões inteligentes ou minimamente controversas sobre arte ou música ou literatura, pode, não obstante, ser um mestre na sua profissão.

Durante a doença e débil recuperação, o protagonista recebe boas notícias, notícias que queria ter recebido durante os dias da passagem de ano, um tempo durante o qual os Swann estavam longe – Gilberte envia-lhe uma carta afirmando que a própria senhora Swann deseja a sua presença assim que ele se sinta recuperado. Mais tarde ele considera que a carta chegou como uma demonstração de pena, talvez a sua mãe tenha escrito aos Swann para que, dado o estado de saúde do protagonista, lhe demonstrem o interesse que ele tanto desejava. De qualquer das formas, a reação imediata dele é feliz.

A felicidade, a felicidade por intermédio de Gilberte, era uma coisa com que sonhara incessantemente, uma coisa toda em pensamentos, era, como Leonardo dizia da pintura, cosa mentale. Uma folha de papel coberta de caracteres é coisa que o pensamento não assimila imediatamente. Mas, mal terminei a carta, pensei nela, ela tornou-se objeto de devaneio, tornou-se, também ela, cosa mentale, e já a amava tanto que de cinco em cinco minutos tinha de a reler, de a beijar. Conheci então a minha felicidade. – página 69

A casa dos Swann abre-se finalmente ao protagonista. Nas páginas que se seguem ele é aceite por Swann, Odette e Gilberte, aprofundando a sua amizade e fazendo aquilo que, no seu contexto histórico e social, se possa chamar de namoro. Em termos de narração temos várias instâncias das duas vozes prosaicas assim como a origem do motivo pelo qual às vezes falo em protagonista e outras vezes falo em narrador. A voz é sempre em primeira pessoa, sempre este estilo circular e livre semelhante ao ato de recordar, quase um fluxo de consciência à James Joyce, mas não faz sentido narrativo que essa voz em primeira pessoa, a do protagonista, tenha acesso a tantos detalhes íntimos, nomeadamente sobre o casamento dos Swann. Mas por outro lado, talvez faça sentido que ele tenha alguns desses conhecimentos na sua idade adulta, no momento da primeira página do primeiro volume, quando o protagonista, ao tentar adormecer, relembra a sua vida inteira.

O casamento dos Swann é agora um pouco frio, ou talvez sempre o tenha sido. Porque Swann não parece amar nem desgostar Odette... O impulso para se casar com ela foi algo semelhante a um ciúme que já não sente apesar de ainda se perder a relembrar as passadas mentiras e indiscrições de Odette. Por sua vez, ela parece mais preocupada em entreter convidados e em construir o seu salão apesar de ser ignorada por várias senhoras de classe. De qualquer das formas, o protagonista desfruta dos convites, das conversas que tem com Swann no seu escritório, e admira sempre os detalhes da senhora Swann como o estilo com que ela decora a casa, o que traz vestido, o seu perfume... Num desses encontros, Odette senta-se ao piano e toca uma música especial, a peça de Vinteuil, a mesma através da qual Swann se apaixonou. A peça não tem o mesmo efeito no protagonista mas faz com que ele se perca em devaneios filosóficos sobre a relação entre a música e a memória.

Mas é frequente não se ouvir nada quando se trata de uma música um pouco complicada que se escuta pela primeira vez. E, no entanto, quando mais tarde me tocaram duas ou três vezes aquela sonata achei que a conhecia perfeitamente. Por isso, não deixa de estar certo dizer-se «ouvir pela primeira vez». Se verdadeiramente, como julgámos, nada distinguimos na primeira audição, a segunda, e a terceira, seriam outras tantas primeiras, e não haveria razão para se compreender alguma coisa mais à décima. Provavelmente o que falta, da primeira vez, não é a compreensão, mas a memória. Porque a nossa, relativamente à complexidade das impressões que tem de enfrentar enquanto escutamos, é ínfima, tão breve como a memória de um homem que enquanto dorme pensa mil coisas que imediatamente esquece, ou de um homem meio caído na infância que não se recorda no minuto seguinte do que acabaram de lhe dizer. – página 94

Nas páginas seguintes vai-nos sendo revelada a caracterização de Gilberte e, infelizmente para o nosso protagonista, os sinais problemáticos vão-se acumulando. Swann diz que Gilberte tem um coração grande mas que não o mostra assim tão facilmente, é talvez mais reservada emocionalmente, deixando passar apenas uma frente provocadora, tal como no momento daquela luta juvenil. Quanto ao passado da sua mãe, Gilberte parece estar ciente dele mas nunca o censura... Eventualmente chega o dia em que o avô de Gilberte morre e o dia do seu funeral coincide com um dia em que o grupo planeava assistir a um concerto. Obviamente, Swann muda de ideias mas Gilberte não, ela insiste em ir ao concerto com o protagonista, algo que ele sentiu que não devia ter concordado. Em retrospetiva esse foi um dos momentos mais reveladores da natureza egoísta de Gilberte, um daqueles momentos aos quais o protagonista devia ter prestado mais atenção.

Entretanto, e numa espécie de típico aparte proustiano, um dos muitos apartes que tão facilmente fazem com que o leitor perca o fio narrativo, o protagonista reencontra-se com o seu amigo Bloch que o leva a um bordel. Temos de novo, para além de uma ambiguidade narrativa, uma ambiguidade acerca da idade do protagonista, porque num momento ele parece um jovem ingénuo a desfrutar de um namoro inocente, e noutro momento ele frequenta um bordel e fica encantando com uma prostituta chamada Rachel que irá reaparecer mais à frente na história. Evelyn Waugh até comentou, em tons depreciativos de Proust, que no mesmo verão em que Gilberte oferece ao protagonista um berlinde e que Françoise o tem de levar à casa de banho, ele visita um bordel... Adicionalmente, temos aqui um novo detalhe caricato do protagonista – ele conta que doou à dona desse bordel alguma da mobília que herdou da tia Léonie e descreve com nostalgia um dos canapés no qual teve a sua primeira experiência sexual, ainda que num contexto incestuoso.

Aliás, como a nossa memória não nos apresenta habitualmente as nossas recordações na sua ordem cronológica, mas como um reflexo em que a ordem das partes está subvertida, apenas muito mais tarde me lembrei de que fora naquele mesmo canapé que, muitos anos antes, eu conhecera pela primeira vez os prazeres do amor, com uma das minhas priminhas, com quem não sabia onde me meter e que me dera o conselho bastante perigoso de aproveitar uma hora em que a minha tia Léonie andava a pé. – página 135

Entretanto nesta história circular, o namoro com Gilberte continua e acrescentam-se os presságios. O protagonista, ou talvez o narrador, devaneia sobre a existência de duas Gilbertes, apontando para uma espécie de batalha entre as duas naturezas no interior dela, uma oriunda do pai e a outra da mãe, sendo tudo isso um detalhe relevador de um possível desfecho indesejável, semelhante ao casamento de Swann e Odette. Ainda a título de presságios, mas num sentido diferente, temos uma pista do que irá acontecer mais tarde no sexto volume – a propósito de uma peça de teatro, Swann discursa, com uma certa ironia, sobre temas de ciúme, não se apercebendo de que fala do seu próprio casamento e talvez também da relação que o protagonista irá estabelecer com Albertine.

«Porém, o perigo deste género de amores é que a sujeição da mulher acalma por momentos os ciúmes do homem mas torna-os também mais exigentes. Ele chega a pôr a amante a viver como aqueles prisioneiros que estão iluminados de noite e de dia para serem mais bem vigiados. E isso geralmente acaba em dramas.» – página 123

E eventualmente um desses dramas acontece. O protagonista visita a casa dos Swann num dia de chuva. No entanto, Gilberte estava de saída para uma aula de dança, algo do qual foi impedida pela chegada do protagonista. Por insistência da senhora Swann, eles acabaram por passar a tarde juntos mas Gilberte esteve sempre muito silenciosa e carrancuda, obviamente irritada por não poder ter ido à aula, e a partir daí, a amizade é gradualmente quebrada. A má disposição de Gilberte nesse dia causa ao protagonista um tremendo desgosto por ela, começa a considerá-la feia e desagradável, tenta afastá-la dos seus pensamentos e por vezes consegue mesmo atingir uma espécie de indiferença. Mas por outro lado, ela surge-lhe nos pensamentos como uma memória e ele perde-se em fantasias sobre uma carta que ela lhe enviará, muito emocional e profunda, um grande pedido de perdão.

Eu bem sabia o que tal esperança possuía de quimérico. Era como um pobre que deixa cair menos lágrimas sobre o seu pão seco quando pensa que talvez não tarde que um estrangeiro qualquer lhe deixe toda a sua fortuna. Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar em nós algumas pequenas loucuras. – página 147

Ele continua perdido nesse limbo entre afastar-se de Gilberte forçosamente, querendo na verdade um reencontro, mas por outro lado apercebe-se de que tal reencontro não vai acontecer e de que a distância é a melhor opção. No entanto, e numa atitude estranha, ele continua a visitar os Swann, geralmente quando Gilberte não está em casa. Um dia ele sente-se tão confiante numa possível reconciliação que decide vender uma jarra que lhe foi deixada pela tia Léonie, adquire dez mil francos e planeia gastá-los em flores e presentes para Gilberte. Então ele viaja na sua carruagem, com intenção de comprar flores nos Campos Elísios a uma florista que visitara com Gilberte, mas depois, perto da casa dos Swann, avista Gilberte a caminhar na direção oposta, durante o anoitecer, ao lado de um rapaz...

Como um breve aparte acrescento uma das minhas memórias falsas sobre este livro – eu estava absolutamente convencido de que esta cena decorria ao final da tarde, numa rua movimentada, impossivelmente à beira-mar, com um pôr do sol quente, e quase que diria português, brilhando sobre as águas, e de que o protagonista viajava num comboio elétrico, rodeado de gente que não se apercebeu do seu coração partido...

O protagonista inicialmente considera parar e confrontá-la mas não diz uma palavra, deixa apenas que o seu cocheiro o leve para longe até que o casal desapareça na distância. Ele fica obviamente devastado e, quase à maneira de Swann, começa-se a aperceber de que Gilberte não era quem ele pensava... Começou-se a aperceber de detalhes nas suas reações à presença dele que denotavam um certo desinteresse, compreendeu as mentiras sobre as aulas de dança, foi relembrado do desagrado dela no dia em que foi impedida de sair por causa da visita do protagonista, provavelmente porque queria ir ter com o outro rapaz... Tudo isso apagou para o protagonista qualquer possibilidade de um reencontro, algo que ele aceita, pelo menos por agora, e então Gilberte não será particularmente relevante na história, pelo menos além de breves ressurgências da memória, até muito mais tarde.

NOMES DE TERRAS: A TERRA

Ao reler este segundo segmento do livro fui logo confrontado com uma outra armadilha da memória – na minha antecipação, estava absolutamente convencido de que este verão em Balbec decorria imediatamente após a separação com Gilberte. Achei que tinha sido um verão terapêutico de esquecimento da paixão antiga e de descoberta de uma paixão nova. Na verdade, este verão decorre dois anos mais tarde, uma das raras e concretas informações temporais no livro, algo bastante estranho tendo em conta que no primeiro volume, o pai do protagonista refere um possível verão que o seu filho passará em Balbec. É um pouco confuso que assim seja, uma vez que esse verão aludido na infância é só agora cumprido na adolescência, talvez no precipício da idade adulta.

Tal como Combray, Balbec é outro dos lugares imaginados por Proust. É uma cidade à beira-mar, cheia de hotéis que dependem do turismo de pessoas como o nosso protagonista. Ele irá passar o seu verão na companhia da avó, por quem ainda se sente muito dependente, mais uma vez criando uma ambiguidade da sua idade, ou talvez apenas da sua maturidade. As primeiras páginas neste segmento consistem nas meditações que o protagonista faz durante a viagem de comboio – ele pensa sobre os vários lugares, reais e imaginados, sendo que os lugares reais, ao serem relembrados mais tarde, são feitos imaginários através da memória, ele contempla outros viajantes e detém-se em observação detalhada deles, ele imagina Balbec como repleta de paisagens de um mar tempestuoso, e por aí fora... Após chegar ao hotel, o protagonista fica num quarto adjacente ao da avó, e ela, para o assegurar, diz-lhe que dê três toques na parede caso se sinta mal ou precise de alguma coisa. Isso pode parecer um detalhe insignificante mas esse ritual será revelado, no quatro volume, como algo muito semelhante às madalenas, ainda que com um tom muito diferente.

Nos primeiros dias destas férias o protagonista e a sua avó encontram-se várias vezes com a senhora de Villeparisis que várias vezes os convida para jantar e para passeios de carruagem. Num desses passeios, o protagonista avista uma rapariga bonita e sente um impulso de abandonar a sua presente companhia para correr atrás dela, demonstrando desde logo o impulso para paixões de verão. No entanto, ele relembra uma ocasião em que viajava com um amigo do pai, avistou uma mulher que considerou tão bela que até o fez saltar fora da carruagem para ir atrás dela, apenas para descobrir que era a velha senhora Verdurin, agradecida pelo esforço dele em a cumprimentar. Mais uma vez temos presente esta ideia proustiana de que tudo na memória e na recordação é mais belo do que na realidade, um conceito que, se presente em toda a obra, é aqui capturado constantemente, envolto por uma estupidez adolescente certamente conhecida por todos nós.

Juntamente com este impulso para a paixão há também um impulso para a amizade. O protagonista avista pela primeira vez Robert Saint-Loup, um jovem nobre, de alta classe social, aparentemente de um caráter impecável exceto pelo facto de ter uma amante de baixa reputação. Num primeiro momento, Saint-Loup ignora o protagonista por completo, apesar de ser sobrinho da senhora de Villeparisis, da qual o protagonista aguarda por uma introdução. Saint-Loup parece rude e arrogante mas eventualmente o encontro é estabelecido e ele torna-se um verdadeiro amigo do protagonista, de certa forma tomando o lugar de Bloch.

Isso porque neste segmento do livro, o caráter de Bloch é aprofundado, denotando certas questões de anti-semitismo nas quais ele aparentemente comparticipa, apesar de ser judeu, em tentativas de subir na classe social. Ele aparece frequentemente acompanhado das suas irmãs que se riem de tudo o que ele diz, e faz constantes referências de eloquência exagerada e demasiado teatral ao helenismo que finge como sua religião. Em muitos aspetos faz-me lembrar o Buck Mulligan mas muito menos, ou nada, engraçado. Ele tenta jogar os dois lados da amizade que o protagonista tem com Saint-Loup, dizendo mal de um ao outro, mas nada disso resulta. E o protagonista, perdendo alguma amizade com Bloch, fica no entanto incapaz de guardar rancor.

Com Saint-Loup temos uma instância interessante de homossexualidade na obra. Em primeiro lugar, ele conta uma história do seu tio Palamède que, tido por todos como um homem amigável e bondoso, quando abordado por um homem interessado nele romanticamente, agrediu-o violentamente com ajuda de dois amigos. Um pouco mais tarde, e numa cena talvez estranha quando lida pela primeira vez, é-nos introduzido o barão de Charlus, e a coincidência, aludindo a um certo aspeto da natureza do barão, torna-se óbvia. De início ele é descrito como apenas um homem que parece estar a fazer horas, a fingir-se de ocupado, quase como um espião, para tentar inciar uma conversa privada com o protagonista. Essa conversa não decorre, pelo menos não entre os dois apenas, porque a senhora de Villeparisis entretanto junta-se à cena e introduz devidamente o barão.

A avó do protagonista fica encantada com Charlus assim que ouve os seus discursos sobre temas como nobreza, arte e mulheres. Ele critica os jovens da época por serem demasiado efeminados, demonstrando ele próprio muitas ideias masculinas como por exemplo, não usar acessórios tais como anéis, mas a avó identifica nele um tom feminino, nomeadamente quando ele favorece uma das escritoras favoritas das suas escritoras favoritas, madame de Sévigné, pelo amor que esta tinha pela sua filha, revelado numa série de cartas publicadas em livro. Adicionalmente, algo de muito interessante que Saint-Loup diz sobre Charlus é que quaisquer rumores sobre ele ter sido amante de Odette são bastante ridículos. Apenas em Combray é que se pensa assim, um detalhe que marca uma das muitas alusões a Combray como uma cidade pequena e fechada, pelo menos em comparação com a apressada vida social de Balbec e Paris, uma vida que o protagonista começa a descobrir e que descobrirá mais aprofundadamente nos dois volumes seguintes. Mais tarde, Charlus altera bruscamente entre interesse e desgosto pelo protagonista, entregando-lhe um livro de Bergotte, exigindo-o de volta depois de ficar irado mas logo arrependendo-se e voltando-o a entregar através de um empregado do hotel.

De um ponto de vista mais pessoal, este verão em Balbec vem aprofundar a relação entre o protagonista e a sua avó. É engraçado ver como em toda a obra, a presença patriarcal é gradualmente reduzida, e a matriarcal, sempre mais vincada tal como vimos no volume anterior, aliás, é quase omnipresente no caráter do protagonista. E numa passagem que quase que caracterizaria como cinemática, temos um breve diálogo interessante entre o protagonista e a avó que parece apelar-lhe que desenvolva uma certa independência, um apelo que eventualmente faz surgir a questão da morte, eloquentemente evitada.

Uma vez disse-lhe: «Sem ti não seria capaz de viver.» «Nada disso», respondeu-me ela numa voz perturbada. «Temos de criar dentro de nós um coração mais duro. Se não, que seria de ti se eu me fosse embora em viagem? Pelo contrário, espero que venhas a ter muito juízo e a ser muito feliz.» «Eu era capaz de ter juízo se te fosses embora por alguns dias, mas ficaria a contar as horas.» «Mas se eu me fosse embora para uma ausência de meses... (bastava esta ideia para eu sentir o coração apertado), de anos... de...»
Calávamo-nos os dois. Não nos atrevíamos a olhar um para o outro. No entanto, eu sofria mais com a angústia dela que com a minha. Por isso, aproximei-me da janela e disse-lhe distintamente desviando os olhos:
– Sabes como eu sou um ser de hábitos. Nos primeiros dias depois de me ver separado das pessoas de quem mais gosto fico feliz. Mas sem deixar de as amar muito, acostumo-me, e a minha vida torna-se calma, suave; era capaz de suportar ser separado delas durante meses, anos...
Tive de me calar e de olhar frontalmente pela janela. A minha avó saiu por um instante do quarto. – página 266

Este momento alude para o ritual de dar uns toques na parede para que a avó venha em seu auxílio. Mais tarde o protagonista voltará a Balbec, e o instinto de bater na parede ressurgir-lhe-á outra vez mas, sem a avó do outro lado, a memória do hábito deixará uma dor que não se sente no momento da ausência. É um dos momentos de memória involuntária, dos quais o livro está cheio, mas sobre isto falarei mais em volumes futuros.

Depois de tantas páginas de vida social chego agora a outra das memórias falsas que tive sobre este volume, nomeadamente a de que a maior parte deste segundo segmento consistia nos acontecimentos capturados pelo título, ou seja, as raparigas à beira-mar que o protagonista tanto admira. Aconteceu-lhe frequentemente avistá-las, todas elas raparigas sem nome e sempre em grupo, o que misturava a beleza de cada uma num conjunto tão indescritível como distante.

E quando, depois de a carruagem ter feito a curva, lhes virei as costas e deixei de as ver, enquanto a senhora de Villeparisis me perguntava porque estava eu com aquele ar pensativo, sentia-me triste como se acabasse de perder um amigo, de morrer para mim mesmo, de recolher um morto ou de ignorar um deus. – página 259

Eu estava num daqueles períodos da juventude sem um amor concreto, vazios, em que por toda a parte – como um apaixonado a mulher amada – desejamos, procuramos, vemos a Beleza. Basta que um simples e real traço fisionómico – o pouco que de uma mulher se distingue de longe, ou de costas – nos permita projetar a Beleza diante de nós, e logo imaginamos reconhecê-la, bate-nos o coração, apressamos o passo, e, se a mulher desapareceu, para sempre ficaremos meio convencidos de que era ela: só se pudermos alcançá-la compreenderemos o nosso erro. – página 318

A obsessão com as raparigas à beira-mar torna-se omnipresente. O protagonista não consegue deixar de pensar nelas e tenta reestruturar o seu dia a dia para as avistar, para saber a que horas e em que dias é que elas passam por aquela rua. E sempre que passam, ele tenta relembrar a cara da cada uma delas e fixar os seus detalhes. No entanto, não alcança qualquer contacto com elas, não antes de a última personagem de relevância ser introduzida neste volume, um pintor chamado Elstir, que o protagonista conhece através da senhora de Villeparisis. Em tempos passados Elstir frequentou o salão dos Verdurin, algo que o protagonista descobre com alguma apreensão e que Elstir não nega mas do qual também não se orgulha, argumentado que todos nós temos facetas do nosso passado que gostaríamos de eliminar mas que não o podemos fazer, caso contrário não seríamos hoje a pessoa que somos... A avó do protagonista insistiu várias vezes que o seu neto cumprisse o seu dever social de se encontrar com Elstir, algo que ele procrastinou precisamente para poder avistar as raparigas. Mas talvez ele não devia ter procrastinado porque foi com essas visitas, nas quais Proust se alonga por páginas e páginas de descrições dos quadros de Elstir, nos quais está capturada uma beleza da terra e do mar, tanto de uma França real como de uma Balbec imaginada, que o protagonista descobriu que uma das raparigas que ele tanto observava conhecia Elstir. Essa rapariga é Albertine Simonet, que é finalmente introduzida na história, apesar de ser ter sido referida já no primeiro segmento, tanto por Swann como por Gilberte, e que terá uma grande relevância até ao penúltimo volume do livro.

Nesta fase final do livro, o protagonista é gradualmente introduzido ao grupo de raparigas que sempre via passar pelo caminho da praia. Seria de pensar que aquela que o protagonista mais gosta e que acha mais bonita seja Albertine mas na verdade, como é comum em todo o livro, ele apaixona-se por todas ao mesmo tempo... Ele adora as bochechas da Albertine, adora que ela use o advérbio “perfeitamente” em vez de “inteiramente” e, como quando conheceu Gilberte e lhe confundiu a cor dos olhos, identifica em Albertine um sinal na cara que parece mudar de lado. Também conhece Andrée, que inicialmente o impressionou quando, numa brincadeira juvenil, saltou por cima de um homem idoso distraído no meio da rua, e Gisèle que parece menos favorecida pelo grupo porque quando se afasta para completar os estudos, envia uma composição académica que o grupo critica em tons desagradáveis. E nestas páginas temos o protagonista cada vez mais a negligenciar a avó e Saint-Loup para em vez disso passar mais tempo com as raparigas, eventualmente tornando-se parte do seu grupo, gostando ora de uma ora de outra, tecendo considerações estéticas sobre as suas aparências, algumas agradáveis e outras nem tanto, como por exemplo, quando ele compara as raparigas adolescentes às suas mães ou tias, tentando então prever os desapontamentos que lhes esperam com os anos.

O protagonista eventualmente decide que favorece Albertine mas, para lhe fazer ciúmes, finge preferir Andrée que na verdade não prefere porque a considera demasiado intelectual e nervosa, ou seja, demasiado igual a si mesmo. E chega uma ocasião em que Albertine pede que lhe forneçam lápis e papel, escreve uma mensagem que proíbe todas as outras raparigas de ver e entrega-a ao protagonista que, desdobrando o papel, descobre a mensagem – Gosto muito de ti.

Apesar dessa declaração, a relação subsequente não é assim tão óbvia. Quando o grupo se reúne no bosque para jogar um jogo típico da época, o protagonista sente ciúmes ao ver Albertine de mãos dadas a um rapaz e então abusa das regras do jogo para trocar de lugar com ele, passando para o lado de Albertine e podendo assim tocar-lhe nas mãos. Em certos aspetos ela parece deixar de gostar dele, parece querer deixar de lhe estender convites, mas ele persegue-a, interpreta as suas palavras como intenções de um encontro no hotel, encontra-a com um penteado precisamente no estilo que ele gosta e, consumido por uma atração semelhante à que teve por Gilberte no momento da luta, toma a decisão impulsiva de a tentar beijar.

«Acaba com isso ou eu toco a campainha!», exclamou Albertine vendo que eu me lançava sobre ela para a beijar. Mas eu dizia de mim para mim que não é para não fazer nada que uma rapariga manda vir um rapaz às escondidas, arranjando maneira de a tia não saber, e que além disso a audácia traz bons resultados aos que sabem aproveitar as ocasiões; […] Ia conhecer o cheiro, o gosto, daquele desconhecido fruto rosado. Ouvi um som precipitado, prolongado e estridente. Albertine havia tocado a campainha com todas as suas forças. – páginas 440-441

O romance entre os dois fica por aqui, pelo menos por agora, mas como eu já disse, Albertine será relevante ao longo de toda a obra, tornando-se aliás a personagem central no quinto e sexto volumes. Em muitos aspetos temos aqui os mesmos temas recorrentes – esta ideia de uma paixão inicial muito intensa, uma obsessão com a rapariga antes de sequer a conhecer, uma subsequente obsessão em querer conhecê-la e à sua família, a preferência por ela, como a de Swann por Odette, por ela ser de uma classe social um pouco abaixo da do protagonista uma vez que Albertine é órfã, esta ideia de ignorar certos detalhes reveladores da natureza dela que terão um desenlace triste mais à frente, e por último, esta recorrência de relembrar a sua aparência como diferente de como a rapariga é na realidade...

O verão aproxima-se do fim e como tal, os turistas começam a abandonar Balbec. As raparigas partiram uma a uma e o protagonista é consumido por aquela sensação, certamente conhecida por todos nós, de voltar a estranhar um lugar inicialmente estranho quando se aproxima a hora de partida. Porque quando chegamos ao fim de uma viagem temos de conhecer tudo e todos pela primeira vez, temos de conhecer os cantos à casa, somos turistas, estranhos e estrangeiros. Mas depois, no final da nossa estadia, a hora da partida faz-nos sentir, ou talvez relembrar, justamente essa mesma estranheza, redescoberta no momento em que se antecipa o regresso, que em si mesmo é uma nova partida. Sabemos que nunca haveremos de lá voltar porque mesmo que voltemos seremos pessoas diferentes rodeadas de pessoas diferentes. Mas no entanto, Balbec lá permanecerá, aguentando todos os invernos e prosperando em todos os verões, à espera de um verão qualquer em que o protagonista, para cumprir a sua promessa, lá regresse.

E enquanto a Françoise tirava os alfinetes das bandeiras das janelas, soltava os tecidos, puxava os cortinados, a luz de verão que ela desvelava parecia tão morta, tão imemorial, como uma sumptuosa e milenar múmia à qual a nossa velha criada apenas estivesse desatando cuidadosamente as ligaduras que a envolviam, até por fim a fazer surgir, embalsamada na sua veste de ouro. – página 458

§

E é com essa bela e quase fenoménica descrição de um último sol de verão esgueirando-se pela janela que Marcel Proust encerra este segundo volume, e que eu encerro este artigo. Numa palavra, o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido é leitura obrigatória mas o segundo talvez também o seja. A história que de certa forma nos parece tão final no primeiro volume, continua aqui quase como se a divisão em volumes não fosse mais do que pragmatismo. Porque em Proust quase que não há fases nem momentos concretos. Os finais, embora decisivos e eloquentes, são reiniciados no volume seguinte sem qualquer esforço, e apercebemo-nos de que se a história não ficou resolvida nas últimas páginas é porque ainda falta muito para ler. Digo isso porque, como me é característico, cheguei ao fim deste volume cheio de pressa, ansioso que a história atingisse uma resolução mesmo sabendo que isso não iria acontecer. Em muitos aspetos isso é uma vontade natural, esta necessidade de que uma história acabe perfeitamente resolvida e enlaçada. E digo natural porque essa vontade também se aplica às nossas vidas... Relembramos o passado em fases, em círculos cujo início só notamos quando terminou o círculo anterior. Mas na verdade isso é só uma forma confortável de compartimentalizar o passado, porque na verdade a vida é uma constante progressão, cheia de detalhes que podem parecer irrelevantes num momento mas que são vitais noutro, cheia de pessoas que podem ser estranhas num momento mas que são amigas e amantes noutro, cheia de círculos que, quando se fecham, só se reabrem com a memória nascida de um novo momento. Mas como eu sempre digo, Proust escreve num círculo que não se fecha, talvez nem com o último volume.

Quanto a mim devo descansar de Proust durante uns tempos. Gostaria de escrever sobre o terceiro e quarto volumes algures nos próximos meses mas não vou especificar quaisquer datas, ou até mesmo meses. Gostaria de resolver esta série no próximo verão, simplesmente por uma questão de simetria. Mas até lá não sei... Por agora fico-me por aqui, a pensar nas Gilbertes e Albertines do meu passado.

Comments

Popular posts

A Minha Interpretação Pessoal de “Às Vezes, em Sonho Triste” de Fernando Pessoa

Já há muito tempo que não lia nada que o Fernando Pessoa escreveu, e talvez por esse motivo, mas principalmente porque buscava ideias sobre as quais escrever aqui, decidi folhear um livro de poemas dele. E enquanto o fiz, tomei especial nota das marcas que apontei na margem de algumas páginas, significando alguns poemas que gostei quando os li pela primeira vez, há cerca de sete anos atrás. Poderia ter escolhido um poema mais nostálgico ou até mais famoso, mas ao folhear por todo o livro foi este o poema que me fez mais sentido escolher. Agora leio e releio estes versos e comprometo-me a tecer algo que não me atreverei a chamar de análise, porque não sou poeta nem crítico de poesia. Mas como qualquer outro estudante português, fui leitor de Fernando Pessoa e, ainda que talvez mais a uns Fernandos Pessoas do que a outros, devo a este homem um bom pedaço dos frutos da minha escrita, que até à data são poucos ou nenhuns. Mas enfim, estou a divagar... O que queria dizer a jeito de introduç...

Meditations on The Caretaker's “Everywhere at the End of Time”

I have always been sentimental about memory. Nostalgia was surely one of the first big boy words I learned. And all throughout my life I sort of developed a strong attachment memory, and subsequently to things, which became an obsession almost. I never wanted to see them go, even if they had lost any and all useful purpose, because they still retained a strong emotional attachment to me. I had a memory forever entwined with those old things, so I never wanted to see them go. However, in my late teens I realized I was being stupid, I realized there was no memory within the object itself, it was only in me. So I started to throw a bunch of stuff out, I went from a borderline hoarder to a borderline minimalist, and it was pretty good. I came to the realization that all things were inherently temporary. No matter how long I held on to them, eventually I would lose them one way or another, and if someone or some thing were to forcefully take them from me, I would be heartbroken beyond repai...

10 Atheist Arguments I No Longer Defend

I don't believe in God, I don't follow any religion. And yet, there was a time in my life when I could have said to be more of an atheist than I am now. In some ways I contributed to the new atheism movement, and in fact, for a little while there, Christopher Hitchens was my lord and savior. I greatly admired his extensive literary knowledge, his eloquence, his wit and his bravery. But now I've come to realize his eloquence was his double-edged sword, and because he criticized religion mostly from an ethics standpoint, greatly enhanced by his journalism background, some of the more philosophical questions and their implications were somewhat forgotten, or even dealt with in a little bit of sophistry. And now it's sad that he died... I for one would have loved to know what he would have said in these times when atheism seems to have gained territory, and yet people are deeply craving meaning and direction in their lives. In a nutshell, I think Hitchens versus Peterson wo...

Mármore

Dá-me a mão e vem comigo. Temos tantos lugares para ver. Era assim que escrevia o Bernardo numa página à parte, em pleno contraste com tantas outras páginas soltas e enamoradas de ilustrações coloridas, nas quais eram inteligíveis as suas várias tentativas de idealizar uma rapariga de cabelo castanho-claro, ou talvez vermelho, e com uns olhos grandes que pareciam evocar uma aura de mistério e de aventura, e com os braços estendidos na sua frente, terminando em mãos delicadas que se enlaçavam uma à outra, como se as suas palmas fossem uma concha do mar que guarda uma pérola imperfeita, como se cuidasse de um pássaro caído que tem pena de libertar, como se desafiasse um gesto tímido... Mas tal criação ficava sempre aquém daquilo que o Bernardo visualizava na sua mente. Na verdade não passava sequer de um protótipo mas havia algo ali, uma intenção, uma faísca com tanto potencial para deflagrar no escuro da página branca... se porventura ele fosse melhor artista. E embora a obra carecesse ...

A Synopsis Breakdown of “The Wandering King”

A collection of eight different short stories set in a world where the malignant and omniscient presence of the Wandering King is felt throughout, leading its inhabitants down a spiral of violence, paranoia and madness. That is my book's brief synopsis. And that is just how I like to keep it – brief and vague. I for one find that plot-oriented synopses often ruin the whole reading, or viewing, experience. For example, if you were to describe The Godfather as the story of an aging mafia don who, upon suffering a violent attempt on his life, is forced to transfer control of his crime family to his mild-mannered son, you have already spoiled half the movie. You have given away that Sollozzo is far more dangerous than he appears to be, you have given away that the Don survives the attempt, and you have given away that Michael is the one who will succeed him... Now, it could well be that some stories cannot be, or should not be, captured within a vague description. It could also be t...

In Defense of Ang Lee's “Hulk”

This movie isn't particularly well-liked, that much is no secret. People seem to dislike how odd and bizarrely subdued it is, especially considering the explosive nature of its titular superhero. In a nutshell, people find this movie boring. The criticism I most often hear is that it is essentially a very pretentious take on the Incredible Hulk, an ego-driven attempt to come up with some deep psychological meaning behind a green giant who smashes things. And it's tempting to agree, in a sense it's tempting to brush it off as pretentious and conclude that a film about the Hulk that fails to deliver two action-packed hours is an automatic failure. But of course, I disagree. Even when I was a kid and went into the cinema with my limited knowledge, but great appreciation, of the comics, I never saw the Hulk as a jolly green giant. At one point, the character was seen as a mere physical manifestation of Bruce Banner's repressed anger awakened by gamma radiation, but eventual...

Meditações sobre “Em Busca do Tempo Perdido I – Do Lado de Swann”

Estou a ler Marcel Proust pela segunda vez... Há quem diga que é comum da parte dos seus leitores iniciarem uma segunda leitura logo após a tortura que é a primeira. Quanto a mim posso dizer que seja esse o caso. Quando li este primeiro volume pela primeira vez decidi que não tinha interesse em ler os outros seis, mas depois mudei de ideias e li-os. Mas li quase como que só para poder dizer ter lido. Então o objetivo seria não mais pensar no livro mas isso afigurou-se estranhamente impossível. Surgia uma crescente curiosidade em ler sínteses ou resumos e ficava-me sempre aquela surpresa depois de ler sobre um acontecimento do qual já não tinha memória. Por isso é que me proponho agora a uma segunda e muito, muito mais demorada leitura, para que possa compreender o livro pelo menos o suficiente para dizer qualquer coisa interessante sobre ele. Em relação ao título deste artigo, do qual planeio fazer uma série, decidi usar o termo que usei porque nenhum outro me pareceu mais correto. Nã...

The Gospel According to Dragline

Yeah, well... sometimes the Gospel can be a real cool book. I'm of course referencing the 1967 classic Cool Hand Luke, one of my favorite films of all time. And, as it is often the case with me, this is a film I didn't really care for upon first viewing. Now I obviously think differently. In many ways, this is a movie made beautiful by it's simplicity. It is made visually striking by its backdrop of natural southern beauty in the US – the everlasting summer, the seemingly abandoned train tracks and the long dirt roads, almost fully deserted were it not for the prisoners working by the fields... It almost gives off the impression that there is no world beyond that road. And maybe as part of that isolation, the story doesn't shy away from grit. It is dirty, grimy and hence, it is real. Some modern movies seem to have an obsession with polishing every pixel of every frame, thus giving off a distinct sense of falsehood. The movie then becomes too colorful, too vibrant, it...

A Minha Interpretação Pessoal de “Sou um Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro

Em continuação com o meu artigo anterior, comprometo-me agora a uma interpretação de um outro poema do mesmo poeta... mais ou menos. Porque os vários heterónimos pessoanos são todos iguais e diferentes, e diferentes e iguais. Qualquer leitor encontra temas recorrentes nos vários poemas porque de certa forma todos estes poetas se propuseram a resolver as mesmas questões que tanto atormentavam o poeta original. Mas a solução encontrada por Alberto Caeiro é algo diferente na medida em que é quase invejável ao próprio Fernando Pessoa, ainda que talvez não seja invejável aos outros heterónimos. Por outro lado, talvez eu esteja a projetar porque em tempos esta poesia foi deveras invejável para mim. Ao contrário do poema anterior, do qual nem sequer tinha memória de ter lido e apenas sei que o li porque anotei marcas e sublinhados na margem da página, este poema é um que li, que gostei e que apresentei numa aula qualquer num dia que me vem agora à memória como idílico. Mas em típico estilo d...

Martha, You've Been on My Mind

Perhaps it is the color of this gray rainy sky at the end of spring, this cold but soothing day I hoped would be warm, bright and the end of something I gotta carry on. Or maybe it's that I'm thinking of old days to while away the time until new days come along. Perhaps it's all that or it's nothing at all, but Martha, you've been on my mind. I wouldn't dare to try and find you or even write to you, so instead I write about you, about who I think you are, because in truth I don't really know you. To me you're just a memory, a good memory though, and more importantly, you're the very first crossroads in my life. I had no free will before I saw you and chose what I chose... Two roads diverged in a yellow wood, you would have led me down one, and yet I chose the other. But I never stopped looking down your chosen path for as long as I could, and for a fleeting moment I could have sworn I saw you standing there, and then you just faded, almost as if you ...